Se em outros campos de estudo predomina a corrida desenfreada pela liderança, a colaboração é essencial no caso do continente gelado
Todo ano a Antártida segue seu ritmo binário. Durante o inverno, predomina o frio intenso e a escuridão total. No verão, com a luz do sol constante, a região se anima com o retorno de várias espécies de baleias, pássaros e focas. Outro grupo também segue para a Antártida nos meses mais amenos: cientistas que passam a temporada nas bases, navios e acampamentos de pesquisa.
O biólogo Flávio Dias Passos, da Unicamp, que até 2007 participou de expedições, conta sobre o cotidiano no verão antártico: “No dia-a-dia, conversávamos muito com os pesquisadores alojados nas estações vizinhas”. O espírito colaborativo internacional permeava as iniciativas científicas e até eventos sociais.
O acordo que regulamenta essa colaboração internacional foi pioneiro. “O tratado antártico foi montado na década de 1950, no auge da Guerra Fria. Foi a primeira vez que se considerou a ciência como atividade essencial de um tratado internacional”, explica o glaciologista Jefferson Cardia Simões, diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera e vice-presidente do Scar (Scientific Committee on Antartic Research). O tratado regulamentou o uso da região antártica para fins pacíficos e não comerciais, visando à pesquisa científica e o livre acesso às descobertas.
Doze países assinaram o tratado em 1959, incluindo EUA e União Soviética, apenas dois anos antes da construção do muro de Berlim. Enquanto a competição acirrada já movia os avanços da corrida espacial, no continente gelado a ciência progrediu com as colaborações internacionais. Hoje, 53 países fazem parte do tratado antártico, incluindo o Brasil, que assinou o documento em 1975.
Padrões climáticos registrados no gelo
Um dos principais focos da pesquisa antártica é o entendimento do histórico de variações climáticas do planeta e de como o clima está mudando com as ações humanas. Para essa investigação há uma busca pelo gelo antártico antigo, que contém informações sobre o clima e a atmosfera de centenas de milhares de anos.
Para recuperar esse registro climático, Simões e colegas coletam testemunhos: grandes cilindros de gelo antigo que são extraídos através de perfurações. “Os testemunhos de gelo nos dão a melhor resolução temporal, são mais precisos que anéis de árvore ou análise de sedimentos, só perdem para dados meteorológicos medidos diretamente, que são muito recentes”, explica o pesquisador. “São dezenas de parâmetros que analisamos. Conseguimos determinar atividade solar no passado, temperaturas médias, erupções vulcânicas, fontes dessas erupções, tempestades, variação na umidade, eventos de micrometeoritos, gases de efeito estufa, e mais”, continua.
Com toda essa informação, os climatologistas podem reconstruir o clima do passado e testar suas predições para o futuro. Hoje, cientistas já possuem testemunhos de gelo com informação dos últimos oitocentos mil anos e uma iniciativa europeia tenta escavar gelo ainda mais antigo, de um milhão e meio de anos.
O Brasil não participa da procura por gelo de um milhão e meio de anos, mas o país é parte de uma colaboração internacional buscando o maior detalhamento possível das variações climáticas mundiais nos últimos 2000 anos. “Buscamos testemunhos nas regiões polares, mas também em outros lugares do globo, como na Bolívia. Podemos fazer uma ciência de vanguarda, mas com menos recursos, contando com muita colaboração internacional”, diz Simões.
Falta de financiamento é ameaça
Para participar do tratado antártico e ser membro votante nas decisões, cada país tem que manter um programa contínuo e qualificado de pesquisa. “Cada país tem somente um voto, mas o status nesse sistema é dado pela qualidade da ciência. E aí entra a questão do uso diplomático da ciência”, expõe Simões. “Quem tem uma ciência de qualidade tem mais voz nas negociações políticas, tem mais status e mais a dizer. O Brasil muitas vezes acaba se acanhando porque não tem um programa mais forte”.
A estação antártica brasileira foi queimada num incêndio trágico em 2012. Mesmo assim, grande parte das pesquisas brasileiras continuou. Uma nova base está sendo construída, com inauguração prevista para março de 2018. “Entretanto o financiamento da pesquisa antártica está seriamente comprometido”, afirma Simões. “Mesmo que a estação seja inaugurada, só temos dinheiro para manter a parte científica do programa até março”. O financiamento da pesquisa antártica vem sofrendo grandes cortes desde 2014. “Tentamos fazer novos editais, mas o governo alega falta de recursos”, continua.
A professora Elisabete Braga, do Instituto Oceanográfico da USP, participou do programa antártico brasileiro desde a primeira expedição, em 1982. “Fizemos seis viagens marítimas para assegurar a participação no tratado antártico”, conta Braga. “Uma crise econômica pode comprometer este ritmo. O governo tem que assegurar que a pesquisa antártica é um compromisso permanente. Mesmo que seja reduzida, não pode parar. Se o Brasil abrir mão do programa, perde o seu voto”.
Mudanças ecoam no resto do planeta
Além de ser crucial para o clima, a Antártida também é importante para sustentar a vida nos oceanos. “Em geral, o número de espécies que existe na Antártida é bem inferior ao de ambientes tropicais, mas a biomassa, o número de indivíduos, é muito grande”, conta Flávio Dias Passos. “As nuvens de krill são impressionantes”, continua. Animais grandes, como baleias, migram para a Antártida todo ano para se alimentarem, consumindo enormes quantidades desses pequenos crustáceos.
Uma variação pequena na temperatura do oceano pode acarretar consequências drásticas para a fauna dos mares antárticos, que está acostumada com temperaturas baixas e relativamente estáveis o ano todo. “Por exemplo, em regiões quentes, já vemos o decaimento dos corais com aumento de temperaturas em apenas 1-2oC”, aponta Passos. Já Elisabete Braga lembra que a poluição no mar e na atmosfera também tem consequências negativas para o ecossistema antártico. “As próprias bases de pesquisa na Antártida têm critérios rígidos para manejo de resíduos”, explica.
Alterações no ambiente antártico acabam tendo consequências diretas e indiretas para o Brasil e o mundo. Sejam essas mudanças do nível do mar, colapsos nas cadeias alimentares marinhas, ou alterações climáticas. “Para o sistema climático global a Antártida é tão importante quanto a Amazônia. Existe circulação de água e atmosfera entre os trópicos e as regiões polares. Interferindo em um, todo o sistema é afetado”, alerta Jefferson Simões.
Sarah Azoubel Lima é doutora em biologia pela Universidade da Califórnia em San Diego e mestre pela Unicamp. Atualmente está se especializando em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.
Este texto integra o dossiê Ritmos do Conhecimento da revista eletrônica ComCiência, cujo conteúdo pode ser acessado aqui:
http://www.comciencia.br/confira-aqui-todo-o-conteudo-do-dossie-ritmos-do-conhecimento/