Para Ildeu Moreira, presidente da SBPC, “há baixa apropriação da ciência pela cadeia produtiva”
Na entrevista que segue, o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu de Castro Moreira, aborda pontos fundamentais da política científica e tecnológica do Brasil, opina sobre os desafios frente aos drásticos cortes de verbas e aponta caminhos para que a ciência dê subsídios ao crescimento e desenvolvimento do país. Ildeu de Castro Moreira é professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e trabalha nas áreas de física teórica, história da ciência e comunicação científica.
Há uma velocidade ideal para a ciência? Quão distante estamos em relação a esse ideal e quais desafios precisamos enfrentar para nos aproximar dele?
Velocidade é a variação de algo em relação ao tempo, e esse algo precisa ser medido. Que indicadores usamos para a ciência? Podemos elencar três. O primeiro seria em termos da quantidade de artigos publicados. O Brasil cresceu muito em relação ao restante da América Latina, mas a taxa ainda é menor do que países como a China e a Coreia do Sul. Também cresceu na formação de recursos humanos qualificados. O Brasil forma, a cada ano, cerca de 16 mil doutores, embora não tenha crescido o bastante a formação nas áreas de ciências exatas e engenharias. Formamos, proporcionalmente, mais nas áreas de direito e administração. São importantes, mas há distorções, pois o Brasil forma mais advogados que a Europa. Mas com a restrição de recursos, bolsas e projetos de pesquisa, é quase certo que o número de pessoas altamente qualificadas vá diminuir nos próximos anos.
Deve ser considerado também o aspecto qualitativo da produtividade, medido por alguns indicadores que também não são perfeitos, mas que refletem o grau de impacto frente à própria comunidade científica. O Brasil cresceu nesse aspecto, mas está bem abaixo no geral – com exceção da agricultura tropical. Uma das razões é que a ciência brasileira é pouco internacionalizada. Outro fator são os recursos financeiros, que vinham crescendo nas últimas décadas, mas começaram a cair a partir de 2014. Em 2013, foram 0,7% de investimentos públicos e 0,5% de investimentos privados. Em outros países a contribuição do setor privado é muito significativa, próximo a 3%.
O terceiro fator é o impacto social da pesquisa produzida, ou seja, como o conhecimento é fracionado em produtos, patentes, inovação. A capacidade inovadora no setor industrial brasileiro é pequena em relação a outros países. Há um grave descompasso, que se reflete no baixo impacto econômico da ciência nacional, com exceção de algumas áreas – aeronáutica, agricultura, petroquímica, indústria mecânica etc. Nessas áreas, a ciência teve uma participação significativa, que mudou a produtividade e a capacidade inovadora.
No conjunto, há baixa apropriação da ciência pela cadeia produtiva, que resulta em uma enorme dependência tecnológica, como nas áreas da indústria química, eletrônica e farmacêutica. Importamos e pagamos muito caro por produtos dessas áreas, e exportamos outros de muito menor valor agregado.
Publicar para não perecer, e rápido. Esta expressão reflete a produção científica atual?
Eu diria que sim, é uma norma que se espalhou pelo mundo, perigosa. É importante que se chame atenção para a necessidade de publicar, de as pessoas estarem ativas e em um ambiente competitivo, estimulante, para que se produza. Mas esse ritmo alucinante, em que frequentemente só conta o número de trabalhos publicados, gera distorção. Produz muito, mas sem qualidade, e também se torna um empecilho para o surgimento de ideias novas, pois as pessoas tendem a fazer o que já dominam.
Muitas das ideias novas da ciência surgiram através de um processo difícil e vagaroso. É preciso tempo para que ideias mais elaboradas, integradoras, interdisciplinares, surjam e amadureçam. Uma fruta que é amadurecida artificialmente antes do tempo não fica tão boa, tão gostosa. Precisamos de um sistema que permita que trabalhos de mais longo prazo sejam valorizados.
A ciência brasileira vive um momento delicado em termos de financiamento, tanto em termos de bolsas de pesquisa, insumos e equipamentos, como em relação às verbas às universidades. Por que é importante defender esse financiamento?
Ciência e tecnologia são essenciais para a soberania de um país. Quem as domina controla muitos setores da economia mundial, como a indústria farmacêutica, telecomunicações, energia, e políticas públicas de meio ambiente, de saúde individual e coletiva. Um país que abre mão de ter uma ciência e tecnologia de nível razoável será um comprador de produtos externos.
O Brasil tem riquezas, imensa biodiversidade, Amazônia e outros biomas, água potável. Sem ciência e tecnologia você não as aproveita e deixa de melhorar a vida dos brasileiros, melhorar a economia, gerar um novo ciclo de desenvolvimento. Além disso, a ganância natural do mundo – veja as guerras pelo petróleo – virá. Alguém tem dúvida de onde vão olhar quando faltar água potável no mundo?
Do ponto de vista social, tem implicações nas políticas públicas de saúde, energia, meio ambiente, enfrentamento e diminuição de desastres naturais e a fome – que infelizmente hoje no Brasil volta a ser uma questão. Para alimentar a população imensa do mundo é preciso ter uma agricultura bem desenvolvida. A ciência também contribui para a elevação da qualificação e renda média da população.
Por fim, é importante para o cidadão individualmente. A cultura científica é essencial para que ele entenda o mundo em que vive, tenha percepção das grandes teorias – que são conquistas da humanidade. E o povo brasileiro apoia a sua ciência. A última pesquisa feita pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) do MCTIC [Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações] revelou que 80% apoiam alocação de mais recursos nessa área. Esse percentual é elevado em todas as camadas de renda e níveis de escolaridade. Ou seja, o povo brasileiro está defendendo a ciência mais que o Congresso Nacional, que está cortando pela metade os recursos para a ciência e tecnologia.
Quais caminhos podemos percorrer para evitar um colapso no sistema nacional de ciência e tecnologia?
O principal hoje é manter uma postura de resistência e de oposição aos cortes drásticos. Esses movimentos precisam ganhar mais força e incorporar primeiro a própria comunidade científica e acadêmica. Temos entre 100 mil e 200 mil doutores, um número maior ainda de professores universitários, mais de 2 milhões de estudantes nas universidades públicas e institutos federais. Todos atingidos fortemente por essas políticas de cortes. Se 10% desse conjunto fizer discussões e manifestações públicas, teríamos um impacto significativo.
Além disso, é preciso envolver outros setores da sociedade. Há ações de diferentes grupos, mas localizadas e desarticuladas. Há a necessidade da criação de um movimento mais amplo, com maior repercussão. A mídia, que às vezes defende apenas interesses de determinados setores, tem dado respaldo à discussão sobre ciência.
Nos próximos anos, é importante discutir propostas para o país, que a comunidade acadêmica construa, apresente e convença candidatos e partidos políticos. É importante que a sociedade se mobilize para que esses políticos incorporem ou se comprometam com algumas grandes questões básicas para a ciência e tecnologia. Países que se desenvolveram tiveram, por décadas, políticas de investimento em ciência. No Brasil, raramente os governantes utilizam a ciência e tecnologia para a definição de políticas públicas, como na área de saneamento, meio ambiente e saúde pública, salvo exceções.
A atual crise tem exigido a manifestação cada vez mais frequente de cientistas no país, mas é comum a crítica de que essa manifestação não deve incomodar a população (como ocorreu na última Marcha pela Ciência, em São Paulo) e que deve ser apartidária. O que você pensa sobre isso?
Acredito que haja dois motivos principais para essa dificuldade da participação em atos políticos, e temos que mudar isso. A primeira é que não há uma cultura de participação política, e não só em relação à ciência. Nossa sociedade nunca teve práticas democráticas na base, que sempre viveu uma história de exploração por elites. Para se ter uma ideia, foi proibido ter livros ou imprensa durante 300 anos da nossa história (tendo a chegada dos portugueses como referência), e depois ainda houve muita censura. Assim, a sociedade civil brasileira é frágil e isso se reflete também na ciência e tecnologia.
Além dessa questão, é importante reconhecer que muitas vezes os atos são convocados por setores partidários. É justo que os partidos convoquem manifestações, mas alguns não se sentem à vontade. Temos dificuldade de fazer atos mais integradores. Um discurso polarizado ou sindical estreito é o que normalmente predomina nas manifestações. E isso precisa ser mudado, precisamos entender que para incorporar novos setores precisamos ter uma prática mais ampla. Devemos ser apartidários – não no sentido que setores da mídia e a direita jogam, de ser contrários à organização e manifestações. Mas é importante perceber que uma luta pela educação, ciência e tecnologia percorre vários setores da sociedade, de um amplo espectro ideológico.
É um desafio que esses setores partidários precisam enfrentar, ter maior abertura, novas práticas convocatórias. Se não pensarmos nisso, a culpa será sempre de quem não vem, e deixamos de pensar que muitas vezes quem organiza tem uma postura estreita. É fácil apontar quem não se envolve, mas a pergunta é se as associações da sociedade civil estão se renovando, se estão mais abertas para incorporar outros setores da sociedade, ou não.
Os partidos podem e devem participar, mas as manifestações coletivas devem superar, estar acima dessas divisões ideológico-partidárias, porque incorporam questões mais amplas, que precisam envolver mais gente e mais setores da sociedade para evitar o colapso. Os setores que estão promovendo esse desmonte podem ter pouca expressão na sociedade e alta rejeição às suas ideias, mas são fortes. Para se contrapor a isso é preciso um movimento mais amplo, e para isso é preciso superar essas outras divisões que são naturais, mas que neste momento não devem ser predominantes.
A universidade brasileira tem cumprido o seu papel na superação das crises econômicas e no desenvolvimento do país?
Em partes. A universidade brasileira tem uma trajetória muito recente, com fundação há cerca de 100 anos, e cuja pesquisa é ainda mais recente, a partir da década de 1930. Nesse período, viveu duas ditaduras, uma no Estado Novo e outra em 1964, que duraram em torno de 20 anos cada, e que tem impacto de repressão à circulação de ideias.
No momento de sua fundação, as universidades serviram à formação de uma elite, associada aos interesses dos dominantes da sociedade. Somente nos últimos anos é que vêm se abrindo. Meus colegas e professores na universidade eram todos brancos e de classe média. Hoje tenho muitos alunos de setores populares, como negros e mulheres, que vinham pouco para a física. Esse processo de ampliar a base de estudantes universitários e enfrentar as desigualdades regionais, espalhando campi pelo interior do Brasil, foi muito positivo, incluiu e permitiu acesso a muitos.
Mas ainda estamos longe! O Brasil é um dos países da América Latina que têm menor formação superior da população. Esse é um indicador importante do nosso atraso. Precisamos elevar muito ainda os índices de formação superior, e neste momento, com essas políticas restritivas, isso está ameaçado a diminuir.
Também é preciso que a universidade seja ciosa de sua autonomia, mas que interaja com o setor produtivo. Isso tem impacto na sociedade. Se o país se desenvolve economicamente, melhora o emprego e condições de vida das pessoas.
Como a divulgação da ciência se insere frente à demanda de um certo ritmo de produção e ao desafio de contribuir para o desenvolvimento e emancipação da sociedade?
A educação científica precisa fazer uma revolução, principalmente na educação básica, que é muito ruim. E o problema se agrava, porque as mudanças que estão sendo colocadas vêm na direção oposta.
Na educação não formal, a comunicação da ciência é essencial. No Brasil, houve melhoria significativa na visitação a museus, casas de ciência e planetários, mas que continuam poucos e mal distribuídos nas regiões do país. Existe um enorme desafio de prosseguir com esse trabalho e ter uma política pública para essa área – e estamos enfrentando muitos retrocessos. Os setores responsáveis no ministério foram rebaixados, estão com financiamento bastante reduzido e com direcionamento distorcido, pois às vezes colocam pessoas não qualificadas para assumir tais posições. Com isso, atividades importantes ficam comprometidas.
Voltamos a ter editais para as feiras de ciência, mas com valor reduzido; não estamos tendo editais para divulgação da ciência, para espaços de ciência; a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia está sofrendo muitos percalços; temos uma inserção muito pequena na mídia; e faltam políticas e ações mais intensas na internet. Por falta de visão, de política e de recursos, há muitos desafios para a criação de uma cultura científica na sociedade.
Este texto integra o dossiê Ritmos do Conhecimento da revista eletrônica ComCiência, cujo conteúdo pode ser acessado aqui:
http://www.comciencia.br/confira-aqui-todo-o-conteudo-do-dossie-ritmos-do-conhecimento/