Cientistas da Unicamp obtêm avanço usando cepas fúngicas recombinantes por meio de manipulação genética
Um dos grandes desafios para tornar mais competitiva a produção de produtos biotecnológicos, como o etanol de segunda geração, é a redução dos custos das enzimas capazes de degradar a biomassa vegetal. Esse tem sido o enfoque de diversos estudos no mundo todo, atualmente. No Brasil, pesquisadores da Unicamp conseguiram duplicar a produção de enzimas utilizando cepas fúngicas recombinantes. O resultado chamou a atenção de André Ricardo de Lima Damasio, líder do projeto de pesquisa e coordenador do Laboratório de Enzimologia e Biologia Molecular de Microorganismos (LEBIMO) do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. “O objetivo da pesquisa é bastante ambicioso e de longo prazo, mas demos o primeiro passo”, declarou.
Produzido a partir do bagaço e da palha da cana-de-açúcar, o etanol de segunda geração, também conhecido como bioetanol ou etanol celulósico, é capaz de aumentar em 50% a geração desse biocombustível, sem ampliar a área de cultivo. Além de ser obtido por meio de um processo sustentável, aproveitando-se de subprodutos da cana-de-açúcar, insumos já disponíveis nas unidades de produção, trata-se de um combustível renovável e mais limpo do que a gasolina, emitindo até 15 vezes menos carbono na atmosfera. Líder em área e produtividade de cana-de-açúcar, o Brasil possui o maior potencial de produção de bioetanol do mundo, sendo responsável, com a Índia, por mais da metade da cana produzida mundialmente.
No entanto, existem gargalos a serem ultrapassados para que o potencial produtivo do etanol celulósico, e de outros bioprodutos, seja atingido no País, como os elevados custos de enzimas, cujo mercado bilionário é, atualmente, dominado por três empresas estrangeiras – Novozymes, DSM e DuPont. Estudos demonstram que o valor das enzimas correspondem de 20% a 40% do custo total para produção de um litro de etanol de segunda geração. “Se conseguirmos gerar cepas fúngica super-produtoras de enzimas de forma racional e, assim, reduzir esse preço, será importante. Estamos falando de um potencial de produção de 10 bilhões de litros de etanol de segunda geração”, ressalta Damasio.
Nesse sentido, os estudos realizados pelo LEBIMO da Unicamp, com o financiamento do Programa de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), tem o objetivo de gerar cepas fúngicas superiores para a produção de enzimas. Ou seja, desenvolver, a partir de manipulações genéticas, uma linhagem do fungo modelo Aspergillus nidulans capaz de produzir grandes quantidades de enzimas, propiciando redução de custos. É sabido no meio acadêmico que esse gênero de fungo, se em contato com a biomassa vegetal, produz enzimas capazes de quebrar estruturas do bagaço denominadas polissacarídeos, gerando açúcares simples utilizados, posteriormente, para produzir, por exemplo, etanol. No entanto, a quantidade de enzimas secretadas por esse microrganismo ainda não é o suficiente para atender a demanda em escala industrial de produtos provenientes da biomassa. “Essa cepa laboratorial produz, com sorte, duas gramas de enzimas por litro de biomassa”, explica o pesquisador. “Precisamos de muita enzima para fazer a hidrólise desse bagaço e isso ainda é muito caro”. De acordo com Damasio, os fungos do gênero Trichoderma reesei, utilizados pela maior fornecedora mundial de enzimas, Novozymes, chegam a produzir 100 gramas por litro de cultura. Esse resultado foi obtido após mais de 20 anos de melhoramento genético, e como essas empresas chegaram a esse patamar é segredo industrial protegido por patentes.
“Estamos longe dos números industriais, mas conseguimos avançar e ainda há muito o que fazer. Temos muitos dados e vários processos celulares que queremos analisar agora, manipulando genes”, relata. O projeto de pesquisa, que teve início em novembro de 2013, será finalizado em junho de 2018. Segundo o coordenador, mesmo com o término desse projeto, ainda haverá muitas questões a serem respondidas e novos estudos devem ser iniciados a partir de desdobramentos desses resultados.
Damasio explica que o projeto partiu da análise biológica de sistemas, ou seja, do que está acontecendo no interior da célula no momento em que é induzida a produção de várias enzimas. Através de estudos científicos de proteômica e transcriptômica, ferramentas da biologia de sistemas, foram identificados vários genes-alvo para manipulação genética. Em um primeiro experimento, 15 genes-alvo do fungo foram deletados. Com isso, foi possível obter um aumento de duas a três vezes na produção de enzimas-alvo para pelo menos três dos mutantes gerados. Todo esse processo está sendo desenvolvido de forma racional, permitindo que seja reproduzido futuramente, ao se alcançar uma plataforma eficaz de produção de enzimas.
Até o momento, os fungos filamentosos são os que produzem maior quantidade de enzimas em nível industrial. Comum na natureza e conhecido no meio acadêmico, o gênero Aspergillus nidulans é um modelo genético de fungo filamentoso e existem diversas ferramentas capazes de manipular o genoma desse microorganismo. Além de naturalmente ser capaz de secretar enzimas para a degradação de biomassa vegetal. Segundo o pesquisador, cientificamente, existem três possíveis caminhos de se reduzir o custo das enzimas: por manipulação de microorganismos, produzindo maior quantidade de enzimas; engenharia de proteínas, aumentando a eficiência delas; ou por meio de engenharia de processos, utilizando-se das variáveis do processo para aumentar a produção dessas proteínas.
Para os próximos passos, os pesquisadores que atuam nesse projeto de pesquisa pretendem estender os estudos de manipulação genética para fatores de transcrição, genes relacionados à parede celular fúngica e modificações pós-traducionais, processo que permite que a enzima saia da célula, visto que resultados preliminares demonstram grande potencial. Segundo o coordenador do LEBIMO, em alguns anos será possível obter cepas fúngicas mutantes capazes de produzir enzimas com preço competitivo, visto que o Brasil ainda não produz enzimas em larga escala.
CRISTIANE BERGAMINI (LABJOR) | ESPECIAL PARA O JU O pesquisador Leandro Vieira dos Santos, autor da tese Da ciência à indústria – engenharia metabólica e evolutiva de Saccharomyces cerevisiae para a produção de etanol de segunda geração, desenvolvida no Laboratório de Genômica e Expressão (LGE), do Instituto de Biologia da Unicamp, foi o grande vencedor do prêmio Jovem Talento em Ciências da Vida, promovido pela Sociedade Brasileira de Bioquímica (SBBq) e GE Heathcare, tradicional competição científica internacional que já está em sua 21ª edição. A pesquisa foi orientada pelo professor Gonçalo Amarante Guimarães Pereira. De acordo com o autor da tese, durante sua produção, parte da tecnologia desenvolvida foi protegida com 10 patentes submetidas ao INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial). Algumas foram depositadas internacionalmente nos Estados Unidos e Europa, e duas estão em utilização na indústria. Além das patentes, foram produzidos também dois artigos já publicados e mais quatro em elaboração, dois capítulos de livros e recebidas cinco premiações. Para o pesquisador, o prêmio representa o reconhecimento da realização de um trabalho original e inovador. “Fiquei extremamente honrado, principalmente após de ter visto a alta qualidade científica dos trabalhos finalistas. Fizemos a ponte da ciência básica com a indústria. Começamos na bancada, com descobertas científicas básicas e, além de gerar um conhecimento não presente na literatura que aumentou nossa visão sobre a fisiologia C5 microbiana, geramos também um produto pronto para ser utilizado na indústria”, explica o autor. O objetivo principal do trabalho foi o desenvolvimento de linhagens geneticamente modificadas da levedura Saccharomyces cerevisiae para a produção do etanol de segunda geração (2G). Para isso, foram necessários procedimentos de engenharia metabólica e adaptação evolutiva para a obtenção de linhagens capazes de produzir etanol 2G eficientemente a partir de xilose (açúcar presente em madeiras e associado à hemicelulose) e para tolerância a inibidores presentes no processo fermentativo. Um dos grandes destaques para a premiação foram as mutações identificadas que permitem à célula consumir xilose sem a necessidade do procedimento de evolução, fornecendo novos alvos metabólicos para a engenharia racional de leveduras, além de reforçar a compreensão da base genética e da interação da complexa rede metabólica envolvida na fermentação de xilose em S. cerevisiae. O sequenciamento genômico de cepas isoladas de experimentos de evolução adaptativa identificou mutações (SNPs e CNVs) relacionadas ao consumo de xilose e tolerância ao inibidor ácido acético. “Obtivemos cepas com alta eficiência fermentativa, altos rendimentos de etanol a partir de xilose e tolerantes à presença de altas concentrações de inibidores do processo fermentativo, especialmente o ácido acético. Fomos da criação e testes de leveduras em escala de bancada até a escala industrial”, diz Leandro. Uma linhagem derivada desse trabalho está sendo utilizada industrialmente na fermentação de açúcares provenientes da biomassa renovável em etanol de segunda geração. A linhagem é utilizada na fermentação do hidrolisado, produzido a partir de palha de cana, em etanol 2G. Tal linhagem foi a primeira levedura integralmente desenvolvida no Brasil que teve sua liberação comercial aprovada pelo CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança). Atualmente, a indústria de biocombustíveis brasileira é baseada principalmente na produção de etanol obtido a partir da extração e fermentação de açúcares presentes no caldo da cana, o chamado etanol de primeira geração (1G). Já o etanol de segunda geração, etanol celulósico ou bioetanol, caracteriza-se por possuir molécula idêntica à do etanol comum, porém extraída do bagaço da cana-de-açúcar, normalmente descartado pelo processo comum. A perspectiva é que esse aproveitamento do bagaço e de parte das palhas e de pontas da cana-de-açúcar eleve a produção de álcool. Porém, o desenvolvimento tecnológico do etanol de segunda geração não exclui a tecnologia em uso atualmente. A ideia é que sejam complementares, pois além do uso de resíduos agrícolas, a possibilidade de implementação de culturas dedicadas e mais produtivas, como a cana-energia, aumentaria o rendimento do processo de produção, não competindo com culturas destinadas à produção de alimentos. O processo de produção de etanol 2G ainda apresenta grandes desafios nas pesquisas, como as etapas de liberação de açúcares e no desenvolvimento de coquetéis enzimáticos para a desconstrução da biomassa vegetal. A principal motivação para o desenvolvimento desse trabalho se deve à questão ambiental, pois, como se sabe, há um consenso mundial quanto à necessidade de substituir o petróleo por fontes alternativas de energia, especialmente as advindas de fontes renováveis. “Por isso, optamos por trabalhar com biocombustíveis e bioquímicos a partir de fontes renováveis. A partir do conhecimento adquirido durante o doutorado na Unicamp, hoje eu continuo e amplio o trabalho de desenvolvimento de leveduras para processos 1G e 2G como pesquisador do CTBE [Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol], um dos laboratórios de pesquisa que integram o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). Além do etanol 2G, vamos utilizar os micro-organismos que construímos para a produção de outros compostos bioquímicos a partir de uma matriz renovável de energia”, informa Leandro. Uma apresentação sobre a pesquisa será realizada no Workshop On Second Generation Bioethanol and Biorefining, um dos mais importantes eventos do CTBE, que já está em sua sétima edição e acontece nos dias 29 e 30 de novembro, em Campinas (SP).
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