As lições de casa da primeira quilombola mestra pela Unicamp
Letras acalcadas pela força de vontade em cascas de palmito. À beira da canoa, o abecedário se desenhava como a descoberta de um mundo, mas sem qualquer pretensão de deixar o Vale do Ribeira. A voz de Maíra Rodrigues da Silva ganha cor ao replicar a história de letramento do avô, Benedito Velho (Benedito Rodrigues da Silva), contada com orgulho pela mãe e pelas tias. Primeira representante dos quilombolas a se tornar mestre pela Unicamp, em geociências, a bióloga sorri espontaneamente ao relembrar as reações do avô diante das páginas da enciclopédia Barsa. “Perguntávamos onde ficava a China e ele, feliz, respondia que ficava do outro lado do mundo”. Estas foram as primeiras linhas inspiradoras para Maíra tecer sua história de bióloga, professora de escola pública e mestre em geociências dentro e fora do Quilombo de Ivaporunduva, localizado em Eldorado (São Paulo), na região do Vale do Ribeira.
Espontânea, relembra o refresco do Ribeira no dia quente da entrevista, em Campinas, mas com a convicção de que a distância é necessária, inclusive, para proteger a região onde nasceu. A mãe de Maíra, professora, e os tios, também graduados, precisaram se distanciar do Ribeira desde a fase escolar, pois as escolas rurais também ficavam longe. Sua mãe, assim como suas tias e outras meninas da região, teve de sair cedo para trabalhar como empregada doméstica em Santos, mas mesmo trabalhando, desde os 12 anos, conseguiu fazer o magistério e foi uma das primeiras professoras da comunidade.
Tudo o que Maíra verbaliza sugere suavidade e força. Em 2015, entrou no programa de mestrado em geociências e, com orientação do professor Alfredo Borges de Campos, do Instituto de Geociências (IG), e a coorientação de Sara Adrián López de Andrade, do Instituto de Biologia (IB), começou a estudar o potencial fitorremediador do feijão de porco em solos (neossolos flúvicos) contaminados por chumbo, arsênio, e zinco, no Vale do Ribeira. “A presença de contaminantes sempre me intrigou, então vim pesquisar na academia a contaminação em áreas agrícolas para buscar uma possível solução para minimizar o problema no Vale do Ribeira.”
Maíra chegou a Campinas aos 18 anos, em 2010, com o sonho de estudar e se tornar uma pesquisadora. De lá pra cá e daqui pra lá, a ponte da extensão universitária a aproximou de universitários do Programa de Comunidade Quilombolas, o PCQ, coordenado pelo professor Celso Lopes, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA). Com tanto a fazer, não tinha como não construir uma rede de amigos. Nesta época, foi acolhida pela professora Luísa Alonso, falecida em 2017. Aprovada em um processo seletivo da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), passou a desenvolver atividades a partir do cooperativismo, autogestão e da educação popular com pequenos grupos e cooperativas da cadeia de resíduos sólidos, construção civil e agricultura familiar, ao lado de um grupo de alunos da Universidade. “Este contato me permitiu proporcionar a troca conhecimento entre jovens universitários e minha comunidade.”
“Até 2014, trabalhei com dois grupos de mulheres de assentamentos e pré-assentamentos da reforma agrária da região de Campinas.” Neste momento, iniciava a fiação de sua trajetória acadêmica, pois, inspirada na rotina da época, formou-se em biologia como bolsista do Prouni pela Universidade Paulista (Unip) e, com o pesquisador Antônio Junqueira, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), pesquisou pela primeira vez a concentração de chumbo e zinco em Neossolos Flúvicos oriundos de antiga mineração na sua região do Vale do Ribeira. Como complemento a suas investigações, frequentou um curso de especialização de Agroecologia e Educação no Campo pela Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), no qual, com orientação do professor Wilon Mazalla Neto, estudou a Agricultura Quilombola nas comunidades de Eldorado.
Maíra se considera uma heroína pela conquista, pois como mulher negra quilombola sabe que lutou muito para essa realização, mas atribui seu sucesso à família. “Não conquistaria mais essa etapa se não fosse minha família quilombola do Vale, assim como todas as pessoas generosas que aparecem em meu caminho, como os grandes amigos da extensão e fora da universidade, como a família campineira a qual pertenço hoje, a Comunidade Jongo Dito Ribeiro, que me acolheu com muito carinho na Casa de Cultura Fazenda Roseira, e todos outros amigos que fiz em Campinas.”
O Quilombo de Ivaporunduva surgiu no século 16 e hoje conta com mais de 300 habitantes. De acordo com Maíra, a região do Vale do Ribeira é economicamente pobre, mas é extremamente preservada e repleta de comunidades tradicionais, como quilombolas, ribeirinhos, indígenas e caiçaras. Foi lá que Maíra aprendeu a “pescar” seus desejos, mas nunca deixou de se oferecer para tornar mais justo o acesso de outros jovens a direitos básicos. Sua trajetória é sempre ressaltada aos alunos da escola pública onde leciona para que sintam também o desejo de obter formação superior e, se possível, numa universidade pública de qualidade.
Mais sobre o Quilombo de Ivaporunduva
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/outubro2003/ju233pag06.html