Historiador é referência nas pesquisas sobre escravidão
A tradição historiográfica brasileira do século XX sobre escravidão considerava que o escravo era incapaz de desenvolver junto a seus semelhantes uma identidade pessoal e uma cultura autônoma e plena de vitalidade. Segundo essa visão, o regime escravocrata esgotaria a existência dos indivíduos submetidos a ele, transformando-os em vítimas de forças externas e, portanto, incapazes de atuar como sujeitos.
A partir dos anos 1980, essa abordagem começa a mudar, na medida em que historiadores incorporam metodologias capazes de apreender a cultura e o cotidiano dos escravos. Nessa perspectiva, a cultura é tratada como um campo de conflitos, ao invés de um campo no qual forças dominantes suprimem os esforços de uma classe subalterna. Nessa revolução, o nome do historiador Robert Slenes, ligado ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, surge como referência para a historiografia sobre escravidão e da cultura africana e afrobrasileira.
Essa é a história contada no documentário Malungos de Viagem, produzido pela Secretaria de Comunicação (SEC) da Unicamp. Dirigido pela jornalista Patricia Lauretti, com edição de Guilherme Rodrigues, aluno do Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo (Labjor), o documentário revisita a trajetória e o pensamento de Bob Slenes – como prefere ser chamado –, a partir de sua própria perspectiva e da visão de orientandos e colegas de trabalho.
“A ideia do documentário partiu de uma entrevista com Robert Slenes no contexto do debate sobre a implantação das cotas étnico-raciais na Unicamp, a partir do livro em homenagem a ele”, explica Patrícia, referindo-se ao livro Escravidão e Cultura Afro-Brasileira – Temas e problemas em torno da obra de Robert Slenes, organizado por quatro orientandos do historiador.
Além da entrevista com Slenes, feita pelo jornalista Álvaro Kassab, editor do Jornal da Unicamp, foram coletados depoimentos de duas descendentes de escravos, Nadir Oliveira Rocha Cury e Eglê Rocha Nascimento, sobre suas memórias ligadas à escravidão em Campinas. Essas entrevistas ficaram a cargo da jornalista Maria Alice da Cruz. O documentário também contém depoimentos dos historiadores Ricardo Pirola, Lucilene Reginaldo e Maisa Faleiros.
O título é uma referência à maneira como Slenes refere-se aos estudantes e orientandos que o acompanharam: malungo é uma palavra de origem africana, usada pelos escravos para se referir aos companheiros que viajavam no mesmo barco que eles. “Malungo é, basicamente, uma canoa gigantesca. É uma metonímia”, explica ele. É dessa maneira que enxerga aqueles que seguiram as mesmas trilhas que ele na pesquisa histórica. “Não são alunos ou orientandos simplesmente, são malungos de viagem, com quem o professor vai aprendendo”.
Vida de historiador
Nascido nos Estados Unidos, Slenes graduou-se em Liberal Arts no Oberlin College (1965), fez mestrado em Literatura Espanhola e Hispanoamericana na Universidade de Wisconsin e doutorou-se em História pela Universidade de Stanford (1976), com uma tese sobre a demografia da escravidão no Brasil entre 1850 e 1888.
Veio para o Brasil no final da década de 1970, com uma bolsa de pós-doutorado para estudar os senhores de escravo do Oeste Paulista e acabou radicando-se no país.
Lecionou na Universidade Federal Fluminense (UFF) e, em 1984, tornou-se professor do Departamento de História da Unicamp, onde se aposentou em 2013. Atualmente, atua como professor colaborador da Unicamp e pesquisador do Centro de Pesquisas em História Social da Cultura (Cecult), na mesma universidade.
Em seu pós-doutorado, Slenes queria compreender como pensavam os senhores de escravo do Oeste Paulista, em interface com pensadores como Florestan Fernandes, que defendiam que esses proprietários de escravos eram alinhados com o capitalismo e, por isso, teriam adotado uma política de dispersar as famílias escravas, a fim de romper os vínculos sociais e a resistência dos cativos.
Nos arquivos, a pesquisa mudou de foco para os documentos de matrículas de escravos, que permitiam identificar, através de números, seus vínculos familiares. Cruzando esses dados com outras fontes de informação, aplicando técnicas da demografia histórica e apoiando-se na historiografia inglesa de Edward P. Thompson e autores norte-americanos que seguiam essa linhagem, Slenes foi pioneiro no uso do método conhecido como ligação nominativa de fontes na área da história da escravidão no Brasil.
O método permite a reconstituição da trajetória de pessoas, famílias e de grupos – como os escravos -, tornando visíveis características, traços culturais e diferenças que permaneciam ocultas em estudos baseados, por exemplo, exclusivamente em dados demográficos.
“Prevalecia na época, com algumas exceções, a ideia do escravo ‘coisificado’, aniquilado culturalmente pela extrema violência do tráfico e do escravismo”, analisa Slenes. Desse modo, continua o historiador, defendia-se que o escravo era “jogado na ‘anomia’ (uma absoluta falta de normas para o comportamento), sem possibilidade de elaborar nexos sociais na senzala (por exemplo, formar famílias) e contestar, coletivamente, a escravidão”.
Renovação da historiografia
Autor de obras que se tornaram referência para a compreensão da escravidão e da presença da África no Brasil – como o livro Na senzala, uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava e o artigo “Malungu, ngoma” vem!: África coberta e descoberta no Brasil –, Slenes impulsionou o surgimento de diversas pesquisas que olhavam para o escravo como um sujeito ativo diante de sua realidade.
“Os estudos de Slenes foram fundamentais para a história da família escrava no Brasil e para as análises sobre a herança da cultura centro-africana na sociedade brasileira do século XIX”, afirma o historiador Ricardo Pirola, professor do Departamento de História da Unicamp.
Para a historiadora Lucilene Reginaldo, também da Unicamp, as pesquisas de Slenes contribuíram para “uma historiografia da escravidão atenta à experiência dos escravizados” e que leva em conta as origens africanas dos escravizados. “Elas são vistas como pontos de partida para novas identidades que dialogam criativamente com contextos políticos e sociais, com a experiência da escravidão e da liberdade”.
“Esta perspectiva reconhece a força e confere dignidade à história dos malungos sobreviventes dos tumbeiros que, tendo por referência suas origens africanas, constituíram famílias (por isso na senzala havia flores), jongos que zombavam dos senhores e feitores, línguas secretas como a do Cafundó”, analisa ela, referindo-se à comunidade quilombola de Salto do Pirapora (SP), que se comunica usando uma língua de origem africana, pesquisada por Carlos Vogt, Peter Fry e, também, Bob Slenes.
Livro traz artigos sobre pesquisas do historiador Luís Fernando M. Costa | Especial para o JU Em 2014, para homenagear o historiador Robert Slenes, que havia se aposentado, quatro orientandos do historiador – Gladys Sabina Ribeiro, Jonis Freire, Martha Campos Abreu e Sidney Chalhoub – organizaram um seminário em sua homenagem na Universidade Federal Fluminense. O seminário resultou no livro Escravidão e cultura afro-brasileira: temas e problemas em torno da obra de Robert Slenes, publicado pela Editora da Unicamp em 2016. Os artigos do livro apresentam e refletem acerca de temas e problemas presentes na obra do historiador. Dividido em cinco eixos temáticos, o livro começa com artigos que tratam da “África no Brasil”. A partir da influência historiadores como Stanley J. Stein e Warren Dean, Slenes propôs uma inovação ao mostrar como os africanos vindos para o Brasil construíram uma própria visão de mundo que, além de uma fusão da cultura de origem e da experiência do cativeiro, eram a base de suas ações, políticas ou não. Já em sua segunda parte, a obra trata da principal contribuição de Robert Slenes à historiografia brasileira e demonstra, com maior clareza, a revolução encetada pelo historiador. Nomeada de “Família”, esse recorte traz a longa discussão acerca da família escrava, foco de grande parte de sua pesquisa. Segundo Ricardo Pirola, historiador e orientando de Robert Slenes, na época de sua defesa de doutorado, havia uma tendência na historiografia de negar que havia famílias nas senzalas brasileiras. Slenes não apenas provou o contrário, como ressaltou a importância desses laços para a formação de comunidades de cativos. Na terceira parte, “Rebeldia e tráfico”, discute-se a desorganização de comunidades escravas e a reação violenta dessas populações às diversas circunstâncias de vida. Num salto histórico, a quarta parte – “Abolição” – discute, comparativamente, o período pré e pós abolição, no qual é introduzido a hipótese de Slenes do “arco descendente”, ou seja, o fechamento das oportunidades dos escravos recém-libertos de se inserirem na sociedade; em contrapartida à imigração dos portugueses que ocupavam os postos de trabalho. Por fim, a quinta parte - “Visões de História” - diferencia-se das outras por trazer textos singulares, como o artigo de Tiago de Melo Gomes sobre o desenvolvimento da historiografia brasileira e o surgimento da história social, e uma longa e bela entrevista com o próprio Robert Slenes sobre a trajetória de sua carreira e os eventos que levaram um estudante de literatura espanhola clássica para um papel de referência dentro dos estudos de escravidão brasileira e de cultura africana e afro-brasileira. Apesar da inovação trazida pelo historiador, a historiografia já passava por um processo de mudança de abordagens, as quais, na década de 1980, seriam revolucionadas pela história social. Anteriormente, nas décadas de 1960 e 1970, a historiografia era dominada pela “análise estrutural”, que via nas estruturas o papel determinante na configuração histórica. Ou seja, aspectos como “capitalismo”, “escravidão”, “modernização conservadora” e “capitalismo tardio” eram os motores da sociedade. Isso retirava das classes subalternas um papel de sujeito histórico. A historiografia brasileira desse período, em particular, tinha como chave explicativa não o protagonismo das ações dos participantes, mas um aspecto exterior a eles. No caso da não completa inserção dos escravos libertos no mercado de trabalho, e do surgimento de atividades culturais diversas que fugiam do binômio capital-trabalho – como o samba, a capoeira, o futebol –, acreditava-se que a causa seria “a alergia ao trabalho causada pelos anos de cativeiro”. Da mesma forma, a futura inserção dessa população ao trabalho assalariado, e a redução dessas práticas, decorreria da industrialização e da política repressiva do Estado Novo. A partir da década de 1980, e com o renascimento dos movimentos sociais, quando reaparece o papel decisivo da classe trabalhadora para além dos fatores estruturais, uma mudança de perspectiva é exigida. Robert Slenes atua nesse processo trazendo para o Brasil o pensamento do historiador Edward P. Thompson, cujo nome torna-se essencial para os historiadores sociais do Brasil. Junto a ele, Slenes se utiliza dos antropólogos Genovese e Gutman a fim de promover uma revisão da escravidão brasileira. A partir daí, os escravos, cujo protagonismo era negado, ganham espaço para que suas vozes sejam ouvidas. Busca-se compreender como a experiência desses sujeitos era moldada por suas próprias percepções e subjetividades. Desse modo, um novo mundo se abre. |
SERVIÇO
Título: Escravidão e cultura afro-brasileira
Organizadores: Gladys Sabina Ribeiro, Sidney Chalhoub, Jonis Freire e Martha Campos Abreu.
Páginas: 456
Editora da Unicamp
Sidney Chalhoub fala sobre a obra