Especialista analisa os rumos das pesquisas em História e Arqueologia medieval
O Laboratório de Estudos Medievais (LEME) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-Unicamp) recebeu, no último mês de junho, o professor Stéphane Gioanni, da Universidade Lumière Lyon 2, França. Responsável científico de publicações da Maison de l’Orient et l’Occident de la Méditeranée Jean Pouilloux, Gioanni é especialista em língua e literatura latina tardo-antiga e medieval, estando seus estudos voltados para a hagiografia, a epistolografia e as coleções patrísticas da Dalmácia e da Croácia Medievais. Foi Diretor de Estudos Medievais da Escola Francesa de Roma entre 2010 e 2016.
No âmbito do projeto “O Mediterrâneo medieval reconsiderado” coordenado pela professora Néri de Barros Almeida, o professor ministrou entre 28 e 30 de junho o seminário “A autoridade pontifical na Dalmácia (séculos V a XI): um exemplo regional da Reforma Gregoriana?”. Ao longo de três sessões, o seminário apresentou as atuais pesquisas sobre a Dalmácia medieval, enfatizando as relações de poder entre autoridades locais e o papado. A abordagem teórica e metodológica proposta por Gioanni possibilita a ampliação das discussões para diferentes contextos medievais e também para outros períodos históricos. Nessa entrevista o professor fala sobre os rumos das pesquisas em História e Arqueologia medieval e das contribuições desses estudos para o conhecimento histórico em geral.
O senhor estuda a Dalmácia medieval, que corresponde hoje a uma parte da Croácia, um país pouco conhecido pelo público brasileiro. O senhor poderia falar um pouco sobre o interesse que existe no estudo da Dalmácia medieval para os dias de hoje em que essa região é conhecida pelos conflitos ali existentes? [1]
Stéphane Gioanni – Primeiramente é preciso tranquilizar a todos. Os conflitos que despedaçaram os Bálcãs nos anos 1990 terminaram há mais de vinte anos e, mesmo que alguns problemas ainda persistam, essa região apresenta hoje uma real estabilidade política e social, particularmente graças ao processo de integração europeia. A Dalmácia (região costeira da atual Croácia), e mais amplamente os Bálcãs (da Croácia até a Turquia atual), encontram-se no coração do Mediterrâneo. Ao proporcionar a coabitação de comunidades sociais, étnicas, linguísticas e religiosas diferentes, essa região representa um observatório ideal para compreender a história do Mediterrâneo medieval, uma vez que ela constitui um espaço de trânsito, de confrontações e de trocas.
O estudo dos Bálcãs da Alta Idade Média é, entretanto, difícil pela raridade das fontes disponíveis, pelas carências na documentação e pelas interpretações modernas, por vezes contaminadas pelas memórias nacionais e pelo estreitamento identitário. As guerras que despedaçaram a ex-Iugoslávia nos anos 1990 são um dos melhores exemplos disso. Por um lado elas mostraram a importância da Idade Média para compreender os conflitos entre os diferentes povos e para compreender, por exemplo, por que os croatas são majoritariamente católicos, os sérvios majoritariamente ortodoxos e os bósnios, por sua vez, muçulmanos. Mas por outro lado, essas guerras suscitaram também manipulações ou desvios de fontes medievais em detrimento da verdade histórica.
Hoje, mais de vinte anos após esses terríveis conflitos, a situação mudou. Os programas de pesquisa pluridisciplinar, que combinam história e arqueologia, permitiram, à custa de uma profunda renovação historiográfica, precisar a cronologia e compreender melhor a história dos Bálcãs no contexto geopolítico da Europa e do Mediterrâneo medieval.
A região da Dalmácia Medieval possui uma particularidade por se encontrar no cruzamento entre aquilo que se convencionou chamar de “Oriente” e “Ocidente” tardo-antigo e medieval. De que forma essas relações entre Ocidente e Oriente contribuíram para a constituição do Reino da Dalmácia?
Stéphane Gioanni – Sim, você tem razão, a Dalmácia-Croácia situa-se em uma região atravessada por numerosas vias de comunicação que ligam os Bálcãs ao conjunto do mundo mediterrâneo. No plano historiográfico, essa situação geográfica “intermediária” tem duas consequências: inicialmente, ela explica porque a Dalmácia-Croácia medieval permaneceu tão pouco estudada até os dias de hoje. Os ocidentalistas desinteressam-se dessa região “demasiadamente oriental”, enquanto que os bizantinistas a veem como “demasiadamente ocidental”… Esse relativo desinteresse dos pesquisadores tem, no entanto, um ponto positivo: há muito a ser feito por historiadores e arqueólogos de hoje e de amanhã! Por outro lado, essa anomalia deve fazer com que questionemos os limites das noções geopolíticas “Oriente” e “Ocidente” que têm, por vezes, consequências nefastas sobre nossa compreensão dos mundos medievais e modernos. De fato, a complexidade dessas regiões de cruzamentos não se presta aos conceitos gerais: os vizinhos Montenegro, Bósnia e Albânia, onde coabitam católicos, ortodoxos, judeus e muçulmanos, são países orientais ou ocidentais? Do outro lado da península itálica, o que dizer da Sicília muçulmana dos séculos IX e X? Oriente ou Ocidente?
Enfim, essas regiões com história compósita mostram os limites de noções geopolíticas excessivamente englobantes e nos convidam a nos libertarmos das representações tradicionais. Do ponto de vista da história medieval, a centralidade dessa região suscita o interesse de todos os poderes presentes no Mediterrâneo da alta Idade Média (Bizantinos, Carolíngios, Venezianos, Normandos, califados muçulmanos… sem esquecer o papado). Isso aparece claramente na Dalmácia medieval, pois, apesar da constituição progressiva do Reino Croata, a região esteve formalmente sob a administração bizantina até o século XII. Ela se constituiu, então, como um dos principais eixos de rivalidade religiosa, jurisdicional e cultural entre a Igreja de Roma e os patriarcados orientais até a ruptura com Bizâncio em 1054. Essa situação está exatamente na origem da ascensão do Reino da Dalmácia-Croácia que, no século XI, apoiou-se no papado e na rede de mosteiros beneditinos para se libertar da tutela do patriarcado de Constantinopla e da administração bizantina.
Qual a realidade, na França e na Itália, a respeito do conhecimento do Oriente Medieval?
Stéphane Gioanni – Para responder sua pergunta é preciso saber o que se entende por “Oriente”? Trata-se da Ásia, da Mesopotâmia ou do Mediterrâneo oriental, que os europeus chamam de Oriente Próximo? O nível de conhecimento desses territórios varia na Itália e na França. Para o que diz respeito ao Mediterrâneo oriental, é preciso ser prudente para não associar Oriente medieval e Islã. Não esqueçamos a importância do islamismo no Mediterrâneo ocidental em Ifríquia (no Magrebe atual), [2] na Sicília e principalmente em El-Andaluz (termo utilizado para designar o conjunto de territórios na Península Ibérica sob dominação muçulmana do século VIII ao XV). Esses últimos anos foram marcados por uma explosão de programas de pesquisa sobre as vias de comunicação entre Oriente e Ocidente, sobre as trocas comerciais, culturais e linguísticas, assim como sobre as mobilidades de mercadorias e homens (mercadores, peregrinos, monges, viajantes, eruditos…).
Graças a esses programas, o conhecimento sobre o Mediterrâneo oriental progrediu muito. Infelizmente, esses progressos foram também manchados por polêmicas pesadas, inclusive no meio dos medievalistas franceses. Mencionarei um exemplo: as discussões recentes sobre a recepção de Aristóteles no Ocidente. De forma resumida, a comunidade científica admitia, há muito tempo, a importância dos centros culturais orientais e muçulmanos na transmissão da filosofia grega no Ocidente. Ora, um pequeno livro publicado em 2008 afirmava o contrário, – muito precipitadamente, em minha opinião – que o Ocidente nunca tinha deixado de conhecer Aristóteles e que os pensadores árabes tinham desempenhado um papel marginal no processo de formação da cultura ocidental. Se esse assunto atraiu tanto interesse, a violência das discussões demonstrou que, por vezes, falta serenidade à pesquisa sobre o Oriente medieval no contexto político atual.
O seu trabalho enfatiza uma abordagem múltipla para incluir diferentes tipos de documentação integrando História, Arqueologia, Diplomática, Epigrafia. O senhor vê isso como uma tendência crescente nas pesquisas históricas atuais? Qual a importância desse tipo de abordagem para os resultados de pesquisa e para o ofício do historiador?
Stéphane Gioanni – A questão do método é essencial. Eu acredito, de fato, que o estudo global de fenômenos sociais exige que se levem em conta todas as fontes disponíveis: arqueológicas, epigráficas, arquivísticas e textuais. Isso não significa dizer que um pesquisador medievalista deva ser ao mesmo tempo arqueólogo, historiador e filólogo! É indispensável se especializar em uma competência precisa. Entretanto, eu milito para que todos os medievalistas tenham uma especialidade e um conhecimento elementar de outras disciplinas, em outras palavras, que um historiador receba uma formação básica em arqueologia e que ele domine um tanto, ainda que pouco, as línguas medievais dos espaços que ele estuda. Isso lhe permitirá manter um diálogo constante com os especialistas de outras disciplinas, integrar as problemáticas arqueológicas em suas reflexões e abordar os fenômenos históricos de forma global.
No que diz respeito ao meu trabalho, eu sou, originariamente, especialista em línguas medievais, mas eu não poderia progredir em meu estudo sobre a Croácia medieval se não colaborasse de forma estreita com os arqueólogos que produzem, sem cessar, fontes inéditas e esclarecem as fontes textuais com novos conhecimentos. É indispensável cruzar as fontes e as análises arqueológicas, arquivísticas e textuais se quisermos produzir um saber crítico original sobre um fenômeno histórico global. Essa exigência supõe adaptar a formação dos estudantes a fim de que eles possam desenvolver pesquisas coletivas e pluridisciplinares. Foi isso que eu procurei fazer nas formações doutorais pluridisciplinares que eu organizei enquanto era diretor de estudos medievais na Escola Francesa de Roma de 2010 a 2016.
Quais alguns dos mais recentes avanços em termos de exploração arqueológica na atual Croácia?
Stéphane Gioanni – É difícil resumir em poucas palavras a riqueza das pesquisas arqueológicas recentes na Croácia. Durante as últimas décadas, as principais descobertas vieram da arqueologia antiga, que permitiu conhecer melhor os lares de povoamentos, os santuários pagãos, os primeiros vestígios cristãos e o habitat aristocrático da província romana da Dalmácia e de sua capital, a cidade de Salona. A memória da Antiguidade é onipresente nessa região que conserva ainda numerosas lembranças das cidades imperiais, das vilegiaturas aristocráticas e dos cultos pagãos… O fórum de Jadera, no coração de Zadar, o anfiteatro de Salona, metrópole dálmata, o Augusteum de Narona sobre um promontório do rio Neretva ou o palácio de Diocleciano, onde se desenvolveu mais tarde a cidade medieval de Split, são os sinais mais visíveis, entre muitos outros, de um passado imperial que fez da Dalmácia uma terra romana. Uma terra que deu a Roma o imperador Diocleciano, [3] o papa Caio, [4] São Jerônimo [5] etc. Nesse sentido, o estudo arqueológico de Zadar e Salona enriqueceram consideravelmente nosso conhecimento sobre a colonização grega e latina do Adriático oriental, mas também sobre os eixos de comunicação na Ilíria [6] antiga (como indicam, por exemplo, os quatro volumes da série Salona, publicados pela Escola Francesa de Roma entre 1994 e 2010). Hoje, as pesquisas mais inovadoras dizem respeito à Idade Média e giram em torno de três problemáticas: os sítios monásticos das ilhas croatas; as residências da corte do Reino Croata e os lares de povoamento; as necrópoles. Eu participo da missão arqueológica que estuda os mosteiros insulares de Kvarner e da Dalmácia, particularmente o mosteiro São Pedro de Osor (século XI), na ilha de Cres, que era considerado pela tradição como o centro da difusão das ideias reformadoras promovidas pelo papado (entre os séculos XI e XII). Essa missão tem por objetivo traçar um mapa preciso de todas as fundações monásticas beneditinas nas ilhas e nas costas croatas durante a alta Idade Média (séculos VI a XI).
Sua pesquisa toca em um tema importante para a historiografia atual que é o debate acerca da Reforma Gregoriana. O senhor poderia explicar de forma geral, do que se trata essa noção de Reforma Gregoriana, tal como a historiografia a interpretou tradicionalmente e qual a importância dessa reforma para entender a Cristandade?
Stéphane Gioanni – A “reforma gregoriana” – nome dado à reforma universal da Igreja conduzida pelo papa Gregório VII (1073-1085) – constitui o horizonte das minhas pesquisas sobre a autoridade pontifical na Dalmácia-Croácia. O conceito de “reforma gregoriana” – que conheceu uma profunda renovação historiográfica nos últimos anos – foi forjado na Alemanha no fim do século XIX em um contexto confessional (protestante), político (a construção da nação prussiana) e científico particular (o surgimento da “história constitucional” e depois da sociologia weberiana). Sublinhando os limites de uma abordagem global que desconhecia as variantes regionais e que conferia importância demasiada ao papado do século XI, surgiram alguns trabalhos, na segunda metade do século XX, que questionavam a pertinência da noção de “reforma gregoriana” como uma revolução eclesiástica global que a revista italiana Studi gregoriani estudava sob as diferentes facetas nos mínimos detalhes.
Mais recentemente, outras pesquisas propuseram conservar esse conceito epistemológico e periodização, mas propondo uma nova abordagem da cronologia, dos processos e das variantes regionais de uma “reforma” universal que partisse não apenas da história religiosa, mas também da história política e social no sentido mais amplo. O 48º Colóquio de Fanjeaux de 2012 foi uma etapa essencial dessa nova abordagem historiográfica. [7] Ao esforço de redefinição da reforma “gregoriana”, juntam-se diferentes contribuições sobre a ideologia da reforma, sobre as transferências patrimoniais, sobre as funções de certas práticas de escrita, do discurso e da administração além do estudo da reforma em certos espaços regionais (particularmente na Espanha e na Sardenha) que fornecem vários exemplos e ferramentas para abordar a reforma “gregoriana” como um “fenômeno social total”.
Nos últimos anos, esse conceito de Reforma Gregoriana tem sido questionado e recriado por diversos historiadores. De que forma o senhor entende a chamada Reforma Gregoriana e como o estudo sobre a Dalmácia contribui para a reformulação do conceito e para uma nova compreensão das transformações das relações entre a Igreja e a sociedade como um todo?
Stéphane Gioanni – Eu devo muitíssimo a meus predecessores, de tal forma que meu trabalho pretende contribuir para uma releitura crítica dessa noção ao colocar maior atenção no período anterior (que eu qualificaria de “pré-gregoriano”) e nas condições políticas, sociais e culturais do estabelecimento da reforma na Dalmácia-Croácia. O exemplo dessa antiga província romana é ainda mais importante porque ela se situa na fronteira da cristandade romana e apresenta características inéditas para o papado: primeiramente, a Dalmácia permaneceu formalmente como uma região sob administração bizantina até o século XII, o que significa que o papa procurou, sem cessar, reforçar sua autoridade sobre uma região que representava uma questão central do magistério cristão e da rivalidade jurisdicional, cultural e linguística entre a Igreja de Roma e os patriarcas orientais, desde a época dos grandes concílios ecumênicos até a ruptura de 1054. [8]
Em segundo lugar, a Dalmácia era também o palco de outros confrontos suscitados pela cobiça e ambição das principais potências do Adriático (bizantinos, francos, venezianos e normandos) até o fim do século XI. Em terceiro lugar, a Dalmácia foi a partir dos séculos IX-X o teatro de afirmação progressiva de um poder local: o Ducado (ducatus) e depois o Reino (regnum) croata, do qual a Igreja de Roma tentou ser a interlocutora privilegiada. Essa estratégia foi um sucesso, mas um sucesso tardio, como mostra o coroamento do rei croata Zvonimir pelo legado do papa Gregório VII em setembro de 1075 e o juramento de fidelidade do soberano croata a Gregório VII.
Esse evento maior, que marca o nascimento simbólico de um laço de feudalidade do reino dalmato-croata para com o papado, contém numerosos elementos característicos da reforma “gregoriana”: por intermédio de seu legado, o abade do mosteiro beneditino Sant’Alessio de Roma, Gregório VII fez coroar o rei croata diante do povo e das elites do reino e lhe ofereceu sua proteção; em troca, o rei croata declarou solenemente sua fidelitas a “seu” papa Gregório, aos sucessores deste e a seu legado e ofereceu ao bispo de Roma o mosteiro de Vrana, fazendo essa casa prestigiosa e todas as suas possessões entrarem para o patrimônio de são Pedro. Mesmo sendo tão simbólico para o poder croata, esse coroamento não impediu, uma década mais tarde, a queda inevitável de um reino minado por querelas de sucessão e, possivelmente, pela resistência, de uma boa parte das elites, em ver o poder pontifical reforçado na Dalmácia. Mas a queda da dinastia dos Tirpimirović – nome da dinastia à qual teria pertencido a maioria dos reis croatas, se acreditarmos na memória nacional – não colocou em questão nem a ação da diplomacia pontifical junto aos novos poderosos, os reis húngaros, nem a supremacia da metrópole de Split sobre seus sufragâneos, nem a influência de Monte Cassino [9] sobre os mosteiros beneditinos da região. Vale dizer que o reforço progressivo da autoridade pontifical na região bizantina da Dalmácia, entre os séculos IX e XI, marcou de forma durável a história e a identidade dessa região que permaneceu durante séculos, apesar da história movimentada da região, uma fronteira da cristandade católica desde os assaltos otomanos até as guerras balcânicas do século XX.
Quais seriam os próximos passos para avançarmos nosso conhecimento sobre a Croácia medieval?
Stéphane Gioanni – Após a queda do muro de Berlim em 1989, a abertura progressiva dos países comunistas do leste europeu teve duas consequências para o estudo da história medieval nesse país. Em primeiro lugar, nos Bálcãs ocidentais, e mais precisamente na ex-Iugoslávia, esses eventos permitiram reconsiderar a história particular de cada um dos povos cujas especificidades eram voluntariamente negligenciadas pela historiografia iugoslava que insistia, ao contrário, na coerência da história dos eslavos do sul da Europa e recusava qualquer forma de etnogênese croata. Essa abertura científica também permitiu organizar programas de pesquisa internacionais pluridisciplinares que permitiram a colaboração dos melhores especialistas dos Bálcãs ocidentais, especificamente na Croácia, Sérvia, Montenegro e na Albânia, onde a Escola Francesa de Roma e várias universidades europeias estão muito envolvidas.
Esses programas têm dois projetos complementares: primeiro, eles se traduzem em missões em arquivos e bibliotecas antigas que tenham documentos e manuscritos medievais que escondem tesouros inéditos. Eu mesmo participo de missões regulares nos arquivos de Zadar, Zagreb e Split (na Croácia) e de Tirana (Albânia); segundo, eles se lançam sobre os campos arqueológicos nas zonas de importância maior (por exemplo, em Salona, na Croácia, Caricin Grad, na Sérvia, ou ainda Komani, na Albânia). A importância e a qualidade dos sítios encontrados permitem obter resultados novos, por vezes espetaculares, que renovam profundamente a historiografia e nosso conhecimento das sociedades balcânicas medievais. Os programas também permitem organizar nesses sítios as chamadas “escolas de verão”, durante as quais os estudantes trabalham com pesquisadores e recebem um ensino de história e arqueologia em locais carregados de história. Nem precisa dizer que essas formações são uma experiência extraordinária para os estudantes. Eu espero que os estudantes brasileiros possam também desfrutar dela. O futuro dessas pesquisas e dessas formações passa, na minha opinião, por duas condições: a primeira é o reforço das colaborações científicas internacionais que são por vezes ameaçadas pelo retorno identitário que privilegia, às vezes, o romance nacional sobre a verdade histórica. As colaborações científicas internacionais apoiam o trabalho dos pesquisadores locais lhes assegurando financiamentos e locais de publicação para suas pesquisas, o que lhes dá certa liberdade contra todas as formas de pressão não-científica. A segunda condição é o reforço dos laços entre a pesquisa científica e a formação dos estudantes. Isso implica que os pesquisadores adaptem suas publicações a leitores menos especializados e, sobretudo, que eles associem estudantes, desde o mestrado e doutorado, a seus seminários e a suas missões de pesquisa arquivística e arqueológica.
Carolina Gual da Silva é pós-doutoranda em História Medieval junto ao Departamento de História da Unicamp.
[1] A Croácia é um dos países que se formou com a desintegração da Iugoslávia. A Iugoslávia havia sido formada ao final da Primeira Guerra Mundial e permaneceu como importante potência na região dos Bálcãs por boa parte do século XX. Durante o período da Guerra Fria, a Iugoslávia destacou-se no bloco comunista sob o comando do Marechal Tito. Mas a região sempre foi extremamente complexa, composta por uma grande variedade de povos com elementos culturais, linguísticos, religiosos e étnicos diferentes, o que implicou na formação de seis repúblicas distintas: Croácia, Sérvia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia. Após a morte de Tito, em 1980, houve ascensão dos movimentos nacionalistas e as tensões entre as repúblicas aumentaram progressivamente. Entre o final dos anos 1980 e início de 1990, as crises políticas se agravaram e culminaram em violentas guerras civis. Croácia, Eslovênia, Macedônia e Bósnia entraram em guerra contra a dominante Sérvia e decretaram suas independências: as três primeiras em 1991 e a Bósnia três anos mais tarde. A Croácia foi reconhecida internacionalmente como país independente em 1992.
[2] Na história do islamismo medieval, Ifríquia correspondia à região do norte da África que correspondem hoje à Tunísia, ao noroeste da Líbia e ao nordeste da Argélia. Essa região fazia parte, originalmente, da Província Africana sob o Império Romano.
[3] Imperador romano entre 284-305, provavelmente nascido em Salona.
[4] Papa de origem croata que ocupou o trono romano entre 283 e 296.
[5] Sacerdote e eremita cristão, teólogo do cristianismo, tradutor da Bíblia para o latim e considerado um dos quatro grandes padres da Igreja junto com Santo Agostinho, Santo Ambrósio e São Gregório Magno. Viveu entre 347-420.
[6] Antiga província romana cujo território incluía o que hoje é o norte da Albânia, a Itália, a Croácia, a Eslovênia e parte da Bósnia. A capital era a cidade de Salona, na Croácia.
[7] Os colóquios de Fanjeaux acontecem anualmente nessa cidade no sul da França e reúnem os mais prestigiosos historiadores em torno de um tema específico. Todos os colóquios geram a produção de uma publicação que recebem o nome de Cahiers de Fanjeaux. Em 2012, o colóquio foi dedicado à questão da reforma gregoriana e gerou a publicação do volume: La réforme "grégorienne" dans le Midi (milieu XIe-début XIIIe s.), sob direção de Florian Mazel.
[8] Em 1054, ocorreu o rompimento entre a Igreja Católica do Ocidente e a Igreja Católica do Oriente. Esse evento ficou conhecido como “Grande Cisma” ou “Cisma do Oriente”. Embora tivessem duas sés, uma em Roma e uma em Constantinopla, até o século XI as duas constituíam uma só igreja cristã. Desde o período romano, possivelmente já a partir do final do século II, ocorreu uma série de cismas e rupturas devido às diferenças eclesiásticas, disputas teológicas, bem como conflitos políticos e culturais entre o ocidente latino e o oriente grego. As disputas se acirraram por questões de jurisdição e autoridade, principalmente entre o patriarca de Constantinopla, Cerulário (a partir de 1043) e o papa Leão IX (1049-1054). Em julho de 1054, após uma série de disputas entre o papado romano e o patriarcado bizantino no contexto do avanço normando sobre o Mediterrâneo, a Sé Romana produziu uma bula de excomunhão de Cerulário e seus seguidores. Esse, por sua vez, excomungou os legados papais.
[9] Abadia localizada na região do Lácio, na Itália. Foi fundada em 529, por Bento de Núrsia, e é considerada o berço da ordem beneditina. Monte Cassino era, junto com Roma, um dos principais polos da reforma “gregoriana” e um dos mais importantes motores da produção artística e cultural do século XI.