Ao ser convidada para escrever o prefácio de Vozes e silenciamentos em Mariana: crime ou desastre ambiental? aceitei sem titubear. Pela honra do convite, por saber da importância do material para os autores e por ver que o livro gestado na disciplina Linguagem: Jornalismo, Ciência e Tecnologia, sob a supervisão da Profa. Dra. Graça Caldas, estava finalmente terminado. Os cuidados com a edição, em revisões e checagens, leva a acreditar que nunca estará pronto. Mas essa sensação se dá também pela ausência de soluções para as famílias dos municípios de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Barra Longa, soterrados pela lama de dejetos da mineração da Samarco, empresa controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton. Talvez um desejo de que algo poderia acontecer de melhor para essas pessoas, produzindo um outro final.
Depois da leitura, consegui mensurar a relevância do livro em si. Apesar de não ter ligação com a disciplina, acompanhei a idealização da obra, a viagem dos alunos a Mariana e a emoção do grupo em torno do tema, mas não tinha a dimensão do volume e diversidade de informações que encontraria.
Baseado em um fato deveras marcante para toda a sociedade, o livro traz textos de 35 alunos, que fizeram entrevistas com as vítimas dos distritos afetados, moradores de Mariana, pesquisadores de várias universidades, prefeito, promotor de justiça de defesa do meio ambiente e jornalistas. Realizaram também uma extensa análise da cobertura da tragédia nas mais diferentes mídias – impressa, online – nacionais e internacionais. Examinaram documentos, legislação, fizeram uma linha do tempo com as primeiras notícias logo após o rompimento da barragem de Fundão, analisaram as capas dos jornais e o impacto em redes sociais. Alguns trechos aproximam a temática da literatura, com inspiração em Machado de Assis e lembranças de poemas de Carlos Drummond de Andrade ou do rapper Gabriel, o Pensador.
A obra apresenta também uma grande quantidade de fotos, imagens que dão a dimensão do que já é considerado o maior desastre ambiental no Brasil. Um desastre que poderia não ter ocorrido: o simples soar de uma sirene teria poupado a vida de 19 pessoas que foram soterradas pela lama. Mas a sirene não soou. Apesar de prevista nos planos apresentados pela empresa em caso de acidente, ela não existia.
O próprio rompimento da barragem de Fundão, que além das perdas humanas ainda causou impactos imensuráveis na fauna e na flora da região, com a contaminação de mais de 600 quilômetros de recursos hídricos nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, também não deveria ter acontecido. O descaso com o ambiente, a falta de medidas de prevenção, a ausência de fiscalização e o próprio modelo de produção e do aproveitamento dos saberes científicos e tecnológicos na exploração do ambiente são alguns dos pontos tratados no livro.
Em vários momentos aparece a questão da irresponsabilidade da empresa. Fica claro que eles sabiam dos riscos, mas a ganância se sobrepôs à garantia de vida daquelas pessoas e daquele lugar. E o que dizer das autoridades – prefeitura, Secretaria de Meio Ambiente, Ministério Público – responsáveis pela aprovação das obras e da fiscalização, que também não cumpriram com o seu dever? É como diz o professor André Santos, da Universidade Federal de São Carlos, em uma das entrevistas para os alunos: “O Estado controlado pelo capital sempre vai evitar a fiscalização, ainda mais em atividades sabidamente impactantes” (p. 162). Também fica clara essa visão quando o ministro das Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, se refere a esse crime ambiental, uma tragédia sem tamanho, como “acidente” e “fatalidade” (O Estado de S. Paulo, 20 de setembro de 2017).
O livro também tem o mérito de trazer as vozes dos moradores dos distritos, poucas vezes ouvidos pela imprensa, até pelo cerceamento feito pela Samarco. Aos poucos vamos conhecendo suas histórias, através das entrevistas como as que foram dadas aos alunos do Labjor, e por meio do jornal Sirene, criado pelo Coletivo Um Minuto de Sirene. Esse trabalho é importante para tentar romper com o estigma que essas pessoas têm sofrido na cidade, que os responsabiliza pela desativação da Samarco e queda de arrecadação no município. O próprio prefeito defende a volta da atividade, apesar de ainda existir risco de novos desastres.
Este é um caso que deve servir de exemplo. No meio acadêmico já tem sido apresentado em aulas em que se debatem os riscos advindos da exploração do ambiente ou da introdução de determinadas tecnologias ou aplicações científicas. E Vozes e silenciamentos em Mariana: crime ou desastre ambiental? será certamente uma referência para quem vier a estudar esse tipo de situação, seja sob o ponto de vista da sociologia da ciência, dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, da comunicação, do jornalismo científico, da análise do discurso e outras disciplinas.
O registro feito logo após a tragédia, ainda em período de comoção não só na região, mas em todo o País, trazendo a voz dos moradores, de cientistas e de pessoas que acompanharam as primeiras horas após o rompimento da barragem, dá o tom de urgência para se repensar certas opções econômicas.
Mas nem todas as vozes poderão ser ouvidas e a história desses distritos não será mais contada da mesma forma, assim como a natureza da região não voltará a ter sua exuberância, como os alunos revelam nos textos. Por outro lado, o trabalho de mineração irá continuar, diante da demanda da sociedade, por geração de empregos e pelo ganho econômico que a atividade permite, apesar de seus riscos.
Simone Pallone - Pesquisadora do Labjor e Coordenadora do Nudecri/Unicamp
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JU publica livro sobre a tragédia de Mariana