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A aristocracia vai ao paraíso

Editora da Unicamp publica versão inédita de “A Cidade Feliz”, utopia do renascentista Francesco Patrizi da Cherso

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O livro A cidade feliz, traduzido para o português por Helvio Moraes, professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UEMT), é uma versão inédita da obra do ítalo-croata renascentista Francesco Patrizi da Cherso (1529-1597). Datado de 1553, o texto foi o primeiro publicado pelo autor, poucos anos após interromper seus estudos em medicina.

Nesta utopia, da Cherso constroi uma cidade que, distintamente de outras utopias de sua época, configura-se como uma proposta política de cunho prático: uma classe aristocrática, habituada no exercício da virtude, "caminha em direção às felizes águas do vórtice celestial" (p.106), onde encontrará a felicidade, o "último e sumo bem, [...] e não é possível alcançar nesse mundo bem algum maior do que esse" (p.68).

Foto: Reprodução
Praça de São Marcos, em Veneza, em 1697 | Gaspar van Wittel | commons.wikimedia.org

Na tradução, Moraes agrega dez anos de seu estudo sobre o pensamento patriziano, em particular sobre A cidade feliz, objeto de pesquisa de seu mestrado. Seus comentários, tanto nas notas, quanto na introdução, enriquecem a leitura com uma realidade antes desconhecida. Desse modo, na tradução de Moraes, conseguimos compreender o pensamento político veneziano e retirar desse universo reflexões para pensar o nosso.

Afinal, a utopia não é a fantasia de uma realidade distante e impossível, mas é a reflexão presente que expande o nosso horizonte imaginário, impulsionando mudanças e impedindo que vivamos sempre o mesmo. Como já apontou Renato Janine Ribeiro, uma vida sem utopia “é medíocre”. Na visão dele, não fossem as utopias, haveria ainda a escravidão, a jornada de trabalho de 16 horas, a submissão da mulher ao marido. Em síntese, não haveria as liberdades civis ou políticas.

Fundados a partir da Utopia de Thomas More, os textos utópicos costumam ser apresentados por meio de um relato (ou sonho) de viagem e pela presença de diálogos, uma formalização da qual Patrizi se esquiva, ao conceber sua utopia a partir do tratado de matriz aristotélica, o que leva Maria Muccilo a afirmar que a obra possui um caráter mais de tratado filosófico do que político. Simultaneamente, a atipicidade de A cidade feliz deve-se a sua cumplicidade ao pensamento aristocrático veneziano, característica da fase concordista do jovem filósofo, o que é percebido por seu projeto se configurar numa organização social de molde estritamente aristocrática. Curiosamente, ele não propõe a extinção das classes sociais, nem o comunismo de bens, como é comum em outras utopias, mas defende a divisão da sociedade em duas classes, "uma servil e mísera, outra senhora e beata" (p. 109).

Assim, Francesco Patrizi da Cherso estrutura o seu texto a partir de duas concepções chaves, uma, da divisão da natureza humana em alma e corpo, e, outra, de origem aristotélica, que vê a felicidade  "como uma operação conforme à virtude perfeita, sem impedimento, em vida completa" (p. 68), ou seja, a felicidade só é possível pelo exercício das virtudes morais e intelectuais, as quais têm, em sua base, todas as condições materiais de subsistência satisfeitas e uma vida que se estende da infância à velhice.

Como a manutenção do vínculo que une a alma e o corpo depende, principalmente, de uma condição material ideal, Patrizi dedica grande parte de sua obra a uma minuciosa descrição de todas as condições necessárias, desde a localização da cidade, até a constituição dos tipos de ofícios, instituições e leis. Observaremos a formação de uma cidade desde as suas bases mais primordiais e veremos, sobre um solo novo, o surgimento gradual de complexas relações sociais.

Ao mesmo tempo, na divisão dos homens em seis tipos - camponeses, artesãos, mercadores, guerreiros, magistrados e sacerdotes -, compreenderemos o centro da visão aristocrática que concede aos três últimos o direito à cidadania e aos três primeiros a submissão de uma condição servil. Estes, enquanto estão banidos e privados da felicidade, por não poderem "ascender ao seguro e inabalável monte, em cujo topo a felicidade tem seu paraíso e suas delícias", possibilitam que os outros, as três ordens de cidadãos, doem "todo o ânimo às virtudes civis e contemplativas", e, assim, estanquem a sua sede das águas supracelestiais (p. 108).


Helvio Moraes sintetiza a complexidade da obra de Patrizi da seguinte maneira:

Todos os elementos que até então elencamos conferem à sua utopia um tom aristocratizante e politicamente conservador, que parece destoar daquele clamor pela justiça social, comumente considerado um dos pilares do gênero utópico. A cidade feliz é ao mesmo tempo defesa e propaganda das instituições políticas venezianas e o cidadão patriziano é somente aquele a quem se concede o direito de ativa participação em tais instituições. (p. 26).

Apesar da distância temporal com a qual frequentemente nos deparamos, A cidade feliz dá amostras de que a nossa atual sociedade não difere tanto de outras que já existiram. Meio milênio depois, o pensamento desse filósofo ainda ecoa em nossa época, por trás de discursos reacionários e de uma falsa idealização de nossos políticos, valorizados quando provenientes de uma elite econômico-intelectual. Pensar nas discussões explícita e implícitas propostas pelo jovem filósofo significa pensar em como nossa realidade foi constituída; e pensar nas utopias, é pensar em como e para onde podemos mudar.

 

Foto: Reprodução
SERVIÇO

Título: A cidade feliz

Autor: Francesco Patrizi da Cherso

Tradução: Helvio Moraes

Páginas: 136

Preço: R$ 40,00

www.editoraunicamp.com.br/produto_detalhe.asp?id=767

 

 

 

Imagem de capa JU-online
Praça de São Marcos, em Veneza, em 1697 |  Imagem: Gaspar van Wittel | commons.wikimedia.org

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