Estudo feito em comunidades de pescadores constata que um terço das principais espécies pescadas está ameaçado e põe em risco a segurança alimentar
O esgotamento mundial dos cardumes, a redução na diversidade do que é pescado e a diminuição no tamanho dos peixes capturados são grandes desafios para a atividade pesqueira. O enfrentamento dessas questões envolve o desenvolvimento de políticas de conservação de cardumes e de pesca sustentável.
Tais problemas não estão apenas ligados ao aspecto macroeconômico da indústria pesqueira e da aquicultura, responsáveis pelo abastecimento do mercado mundial com proteína animal marinha. Há os aspectos econômico-ecológicos ligados à pesca em pequena escala e que escapam às estatísticas dos organismos de fiscalização governamentais.
Esses aspectos envolvem a pesca artesanal em pequenas comunidades tradicionais, muitas delas espalhadas pelo litoral da Mata Atlântica brasileira, como revela um estudo que vem sendo desenvolvido ao longo dos últimos 20 anos em sete comunidades de pescadores artesanais no litoral sul do Rio de Janeiro e no litoral norte do Estado de São Paulo.
O estudo liderado por Alpina Begossi, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), registrou que boa parte das espécies de peixes capturadas por pescadores artesanais se encontra em situação de ameaça. Begossi é também professora na Universidade Santa Cecília e diretora do Fisheries and Food Institute (FIFO), ou Instituto para a Pesca, Diversidade e Segurança Alimentar, do qual é uma das fundadoras.
A pesquisadora atua desde os anos 1980 na área de ecologia humana das comunidades de pescadores artesanais na costa da Mata Atlântica e de populações ribeirinhas da região amazônica. Seu método de trabalho consiste em combinar conceitos e modelos de biologia, ecologia e antropologia para entender as relações entre a população e o uso dos recursos naturais.
Begossi e colegas acabam de publicar a primeira radiografia da situação dos pescadores artesanais nos litorais de São Paulo e do Rio de Janeiro e dos pesqueiros dos quais eles dependem. O trabalho foi publicado na revista Ambio e está inserido em um Projeto Temático coordenado por Begossi e financiado pela FAPESP.
“A pesquisa resume uma série de projetos iniciados nos anos 1990, com pesquisadores do Brasil e, atualmente, com outros da França e da Croácia que vêm trabalhando comigo desde então”, disse Begossi.
Ela se refere aos coautores do artigo Natalia Hanazaki, da Universidade Federal de Santa Catarina, Priscila Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Renato Silvano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Gustavo Hallwass, da Universidade Federal do Pará, e Svetlana Salivonchyk, do Institute for Nature Management da Bielorrússia.
“Temos reunidos 20 anos de dados de consumo da pesca artesanal. No período, fizemos o registro das espécies de peixes consumidas e constatamos a sua crescente escassez com o passar dos anos, o que está em concordância com os indícios de que algumas espécies estavam sendo superexploradas, enquanto outras entravam para a lista vermelha das ameaçadas”, disse.
Com o enorme conjunto de dados de que dispunha, o grupo resolveu reuni-lo no trabalho agora publicado. Entre 1986 e 2009, foram realizadas centenas de entrevistas com pescadores artesanais de sete comunidades nas ilhas de Búzios, Vitória, Jaguanum e Itacuruçá e em três localidades costeiras (Puruba, Picinguaba e Praia Grande/Paraty).
O questionário aplicado nas entrevistas com os pescadores era de respostas abertas e envolvia perguntas do tipo “Você comeu peixe no jantar de ontem?”, “Qual peixe?”, “E no almoço?”.
Entre 70 e 110 espécies de peixes são alvo de captura pela pesca artesanal e comercial na região. As oito espécies mais frequentemente mencionadas pelos entrevistados foram a anchova (Pomatomus saltatrix), pescada (Cynoscion sp.), corvina (Micropogonias furnieri), garoupa (Epinephelus marginatus), peixe-espada (Trichiurus lepturus), xarelete (Caranx sp.), tainha (Mugil curema) e imbetara ou betara (Menticirrhus americanus).
De um total de 65 espécies mencionadas pelos pescadores em 347 entrevistas e mais de 1,5 mil coletas sobre consumo, cerca de 33% tiveram redução de população desde o início do estudo em 1986, enquanto para 54% das espécies capturadas a situação de seus estoques é desconhecida de acordo com dados da União Internacional para a Conservação da Natureza.
Segundo os autores, a crescente escassez de tais espécies impacta a segurança alimentar e o sustento dos pescadores artesanais que dependem dos recursos de sua captura tanto para a alimentação de suas famílias quanto para complemento de renda.
A maioria das espécies mencionadas é preterida pela pesca comercial pelo baixo volume dos cardumes. Por isso mesmo, elas têm maior valor individual e são fornecidas a restaurantes especializados no eixo Rio-São Paulo.
“Como resposta à ameaça aos cardumes, o governo brasileiro já estabeleceu diversas proibições à captura das espécies ameaçadas de extinção, sem, entretanto, incluir medidas de manejo da pesca e sem incluir prioridades no estudo dessas espécies”, disse Begossi.
“Se por um lado tal política visa proteger e recuperar os cardumes, por outro ela consiste em uma ameaça à pesca em pequena escala e ao sustento dos pescadores artesanais e suas famílias. A solução não está na proibição pura e simples da pesca destas espécies, mas no seu manejo sustentável”, disse.
Há ainda a questão da diversidade alimentar. “As espécies capturadas pela pesca artesanal são aquelas que garantem nossa diversidade alimentar. Os peixes preferidos, como a garoupa ou o robalo (Centropomus undecimalis), vêm da pesca artesanal. Nenhum deles vêm da pesca industrial”, disse a pesquisadora.
“Há espécies que eram comuns nos anos 1980, como a garoupa, mas que rarearam bastante. Hoje ainda se encontra garoupa, mas de tamanho menor. Já um peixe do mesmo gênero como o cherne (Epinephelus niveatus), este não se vê mais. Não é mais citado pelos pescadores. É um caso crítico”, disse.
O trabalho de Begossi e colegas destaca a necessidade de se reunir mais e melhores dados biológicos e ecológicos das espécies marinhas da costa da Mata Atlântica brasileira. Segundo ela, esses dados são “urgentemente necessários” para ajudar a promover a conservação e o manejo destas espécies.
“Nossa opção é permitir que esses peixes desapareçam? Nossa escolha é daqui para a frente comer apenas três ou quatro espécies de peixes, aqueles fornecidos pela aquicultura, como a tilápia e o salmão? É esse o futuro que queremos?”, disse.
O artigo Threatened fish and fishers along the Brazilian Atlantic Forest Coast (doi:10.1007/s13280-017-0931-9), de Alpina Begossi, Svetlana Salivonchyk, Gustavo Hallwass, Natalia Hanazaki, Priscila F. M. Lopes e Renato A. M. Silvano, pode ser lido em https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs13280-017-0931-9.