A questão do papel (ou não) da fiscalização na Samarco compõe mais um capítulo da tragédia em Mariana, sendo que o arcabouço regulatório da mineração no Brasil é considerado bastante satisfatório
A questão do papel (ou não) da fiscalização na Samarco, tendo em vista a tragédia ocorrida em Mariana, enseja uma discussão: de que adianta termos uma legislação adequada, tanto para a mineração como para outras atividades industriais, se a devida fiscalização e prevenção não é realizada? Leis só são cumpridas quando são coercitivas. E só são coercitivas quando a fiscalização é efetiva. Na cobertura da tragédia em Mariana, a imprensa mostrou diversas vezes como a fiscalização foi negligenciada.
O arcabouço regulatório da atividade de mineração no Brasil, constituído pelo Código de Mineração Brasileiro (1967), pela Constituição de 1988 e pela atual Constituição do Estado do Pará contempla de maneira satisfatória todos os aspectos dessa atividade, tais como os humanos, os econômicos e os relativos à proteção do meio ambiente, ou seja, à questão da sustentabilidade. Acrescente-se que a eficácia desse arcabouço atende às necessidades atuais, tendo em vista a longa trajetória da legislação no setor, que data do início do século passado. Mas essa robusta legislação não pode por si só evitar desastres, como ficou tragicamente demonstrado em Mariana.
O repórter Pedro Peduzzi, da Agência Brasil, escreveu em 9 de janeiro de 2016:
“Cerca de 20 peritos criminais federais estão participando das investigações da Polícia Federal sobre o rompimento de uma barragem de rejeitos da mineradora Samarco, no dia 5 de novembro do ano passado, no município de Mariana, em Minas Gerais. Trabalho similar foi feito em 2003 na cidade mineira de Cataguases, onde, em 29 de março daquele ano, rompeu-se uma barragem com resíduos industriais sob responsabilidade da Indústria Cataguases de Papel. Na época, o Laudo 1.362/2003, do Instituto Nacional de Criminalística (INC), identificou como causas do acidente problemas como a falta de manutenção e de fiscalização e o excessivo prolongamento da vida útil da barragem, o que resultou em um processo erosivo da obra. Segundo o laudo, a barragem tinha sido edificada em 1990 com uma estrutura provisória, que deveria durar apenas dois anos. De acordo com a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), caso os alertas feitos pelos peritos – em especial os relativos à falta de fiscalização – tivessem sido ouvidos pelas autoridades, a tragédia ocorrida em Mariana poderia ter sido evitada, uma vez que é o poder público o responsável pela fiscalização destas barragens. ‘Tornamos pública essa preocupação com a falta de manutenção e fiscalização de tais obras, por meio de nossa revista institucional, que foi enviada a várias autoridades dos Três Poderes’, disse à Agência Brasil o presidente da APCF, André Morisson. ‘Em artigo sobre deslizamentos e desabamentos, alertamos que os administradores públicos estavam delegando a terceiros a responsabilidade sobre a boa qualidade das obras e que, apesar dessa delegação, o poder público não está livre da obrigação de bem fiscalizar os contratos e sua execução, pois quem contrata mal também responde solidariamente pelos ônus’, acrescentou o perito.”
O meio acadêmico também produziu textos sobre o tema, a exemplo do artigo “A responsabilidade civil por dano ambiental e o caso Samarco: desafios à luz do paradigma da sociedade de risco e da complexidade ambiental”, de Germana Parente Neiva Belchior, doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, e de Diego de Alencar Salazar Primo, advogado e mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Em resumo, os autores comentam que o desastre trouxe sérias questões sobre dano ambiental, sua responsabilização e reparação. Eles salientam que a teoria da responsabilidade civil data da época em que a humanidade enfrentava apenas os riscos ditos concretos, de causalidade simples. O trabalho busca os contornos da responsabilidade civil da Samarco e possíveis dificuldades para sua responsabilização.
O advogado Pearl Arthur Jules Antonius, por sua vez, escreveu no artigo “Exame da legislação mineradora no Brasil e sua importância atribuída ao meio ambiente”:
“O tema mineração vem adquirindo uma significativa relevância jurídica nos últimos tempos no Brasil. Com efeito, desde que os recursos minerais passaram a ser objeto de conflito entre os seres humanos e, principalmente, desde que a descoberta e o aproveitamento de tais bens começaram a contar com uma regulamentação normativa, a problemática mineral, de uma questão meramente econômica e política, passou a ser, também, uma questão jurídica. A crescente procura e utilização dos recursos minerais, como também a sua consequente valorização econômica foram, assim, fatores que contribuíram para a existência de um disciplinamento jurídico dos bens minerais. Ou seja, estes bens vêm constituindo objeto específico de diversos princípios e regras jurídicas referentes à sua descoberta ou revelação e ao seu aproveitamento econômico.” (Antonius, P.A.J., 1999)
Brasil negligencia fiscalização de barragens
O jornal Valor Econômico publicou em 29 de julho de 2016 uma ampla reportagem em que conclui que o Brasil negligencia fiscalização de barragem. Segundo o jornal, o governo federal não tem a menor ideia do que se passa com as centenas de barragens no País. Uma auditoria do TCU (Tribunal e Contas da União) revelou a situação caótica da fiscalização desse tipo de empreendimento, cujo potencial de destruição ambiental e humana pôde ser constatado da pior forma na tragédia ocorrida em Mariana.
A auditoria trouxe dados alarmantes: 72% das barragens de rejeito de mineração consideradas mais perigosas não foram fiscalizadas pelo poder público nos últimos quatro anos. Classificadas na categoria A, ou seja, de alto risco de ruptura, elas têm potencial de causar grandes danos humanos, econômicos e ambientais em caso de acidente. A reportagem informa, também, que o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) passa por um processo de esvaziamento, e que sofre cortes de verbas e de redução de pessoal. Durante as diligências do TCU, representantes do órgão reconheceram que a carência de recursos dificulta a rotina de fiscalizações dos empreendimentos e análises das documentações enviadas pelas empresas.
Se a Samarco descumpriu os compromissos básicos com a população de Bento Rodrigues, que vivia sob o risco de sumir do mapa, os órgãos governamentais também estiveram longe das melhores práticas. A falta de funcionários públicos para fiscalizar a atividade mineradora não é um caso isolado no Brasil. Sabe-se que nossa máquina estatal é falha em diferentes áreas. Falta seriedade. Outras barragens no Brasil continuam inseguras, na esperança de que tudo corra bem.
Como a barragem de Fundão está no Rio Gualaxo, afluente do Rio Doce, de gestão estadual, a outorga e a fiscalização ficam a cargo do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), e a licença ambiental é dada pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM). A barragem de Fundão foi classificada pelo Cadastro de Barragens de Minérios do DNPM como “categoria de baixo risco e alto dano potencial associado”. A categoria de risco define os parâmetros para funcionamento da barragem. O Plano de Segurança de Barragem é definido pelas entidades fiscalizadoras.
O Código de Mineração que está em vigência foi editado pelo Decreto-Lei 227, de 28 de fevereiro de 1967, pelo governo militar, em substituição ao documento anterior, de 1940. Apesar de ter sofrido muitas mudanças, o Código continua sendo a lei básica que regulamenta a atividade. Um novo Código de Mineração está tramitando na Câmara dos Deputados há anos e é alvo de discórdias. O assunto tem sido debatido em diversos foros.
Referências
ANTONIUS, Pearl Arthur Jules. Exame da legislação mineradora no Brasil e sua importância atribuída ao meio ambiente. Revista Papers do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, NAEA, paper n.117, 36p, abril 1999. Disponível em: <http://www.naea.ufpa.br/naea/novosite/paper/266>. Acesso em: 4 ago.2016.
ATUAÇÃO falha dos órgãos reguladores no caso de Mariana. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/01/1734387-procuradoria-vai-acionar-orgao-federal-por-desastre-em-mariana.shtml>. Acesso em: 4 ago.2016.
AUDITORIA apontou necessidade de reparos. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1703429-auditoria-apontou-necessidade-de-reparos-na-barragem-que-caiu-em-mg.shtml>. Acesso em 4 ago.2016.
FALTOU monitoração nos 10 dias anteriores à tragédia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/05/1770367-barragem-que-ruiu-em-mariana-mg-ficou-10-dias-sem-monitoramento.shtml>. Acesso em: 4 ago.2016.
FRAUDE e erros da Samarco que levaram ao rompimento. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,samarco-fraudou-documentos-e-ocultou-informacoes-para-manter-barragem-diz-mp,10000056420>. Acesso em: 12 jun.2016.
JOGO de empurra – governos estadual e federal. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1710162-governos-federal-e-de-mg-fazem-jogo-de-empurra-sobre-plano-em-barragem.shtml>. Acesso em:5 de jun.2016.
OUTRAS barragens inseguras. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1707908-brasil-tem-ao-menos-16-barragens-de-mineracao-inseguras-diz-dnpm.shtml>. Acesso em:10 de jun.2016.
PLANO de emergência duvidoso. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1709264-plano-de-emergencia-de-mineradora-samarco-ignora-alerta-a-moradores.shtml>. Acesso em: 4 ago.2016.
PODER público tem só quatro funcionários para fiscalizar. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1705773-minas-gerais-tem-so-4-funcionarios-para-fiscalizacao-de-barragens.shtml>. Acesso em: 3 de jun. de 2016.
PRESIDENTE da Samarco na época sabia da existência de problemas. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/06/1783932-ex-presidente-da-samarco-sabia-de-problemas-em-barragem-diz-relatorio.shtml>. Acesso em: 5 de jun.2016.
ROESER Hubert Matthias Peter; ROESER, Patricia Angelika. O quadrilátero ferrífero – MG, Brasil: aspectos sobre sua história, seus recursos minerais e problemas ambientais relacionados. Revista Geonomos, Belo Horizonte, v.18, n.1.p.33-3, 2010. Disponível em: <http://igc.ufmg.br/geonomos/PDFs/1.06_Hubertetal_33_37.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2016.
Antônio Carlos de Graça Souza - Jornalista graduado pela Faculdade Cásper Líbero em 1978. Mestrando em Divulgação Científica e Cultural do Labjor/IEL/Unicamp (2017). Trabalhou como redator e editor em vários veículos de comunicação: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Gazeta Mercantil. Atuou na Assessoria de Imprensa da IBM. Email: angrac@uol.com.br
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