STF proíbe o uso de aditivos que conferem aroma e sabor aos cigarros; argumento contrário contou com parecer de docente da FCA
O movimento antitabagista brasileiro registrou uma importante vitória no último dia 1º de fevereiro, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) vetou o uso de aditivos nos cigarros, entre eles os que conferem aroma e sabor ao produto. De acordo com entidades defensoras da proibição, o emprego dessas substâncias tem por finalidade tornar o tabaco mais palatável, favorecendo desse modo o aumento do consumo, especialmente por parte de crianças e adolescentes. Os argumentos contrários aos interesses da indústria tabagista foram reforçados por pareceres do professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, Luís Renato Vedovato, que também é integrante do Comitê pelos Direitos Humanos da Universidade.
O julgamento da matéria pelo Supremo encerrou uma contenda iniciada em 2011, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) baixou uma resolução proibindo o uso de aditivos nos cigarros. A medida teve como base um tratado internacional formulado em 2003, do qual o Brasil é signatário, que sugere aos países que impeçam a utilização dessas substâncias. Segundo a norma da Anvisa, que concedeu um ano para as empresas se adaptarem às exigências, a colocação de aditivos no cigarro somente seria possível se o fabricante explicasse o motivo e as características destes.
Entretanto, um dia antes de a resolução entrar em vigor, a ministra do STF, Rosa Weber, concedeu liminar suspendendo seus efeitos, atendendo a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). “A decisão do STF veio somente agora. Dos dez ministros votantes [Luís Roberto Barroso se declarou impedido de votar], cinco se posicionaram pela manutenção da resolução da Anvisa e outros cinco, contra. Com isso, a proibição ao uso dos aditivos foi mantida”, explica o professor Vedovato.
Entretanto, segundo ele, como a decisão não foi tomada pela maioria dos integrantes do Supremo, a CNI ou as empresas tabagistas podem apresentar novas ações às instâncias inferiores do Judiciário. “O fato é que a posição do Supremo representou uma vitória muito importante para o movimento antitabagista. Não podemos nos esquecer de que a outra parte já havia obtido uma liminar e detém um forte poderio econômico, o que facilita bancar os altos custos de uma ação dessa envergadura. Para se ter uma ideia, eu fui nove vezes a Brasília ao longo da tramitação do processo”, conta o docente da FCA, que fez a sustentação oral no STF representando a Associação Mundial Antitabagismso.
Doença pediátrica
O uso de aditivos que conferem aroma e sabor aos cigarros, afirma o docente, representa um risco às pessoas, notadamente crianças e adolescentes. “O aditivo com sabor de frutas, por exemplo, torna o cigarro mais palatável especialmente para os jovens, que acabam por se tornar mais rapidamente dependentes do tabaco. Um relatório do Surgeon General [EUA], de 2010, demonstra que 90% dos fumantes experimentam o cigarro antes dos 18 anos. Justamente por isso a Organização Mundial da Saúde considera o tabagismo não somente como um grave problema de saúde pública, mas uma doença pediátrica”, aponta.
Em anos anteriores, assinala Vedovato, o poder Judiciário norte-americano tomou conhecimento de documentos internos da indústria do tabaco, que indicam como esse tema é importante para a atuação do setor. Uma das frases encontradas na documentação é a seguinte: "Várias crianças, quando começam, não gostam do sabor do cigarro e começam a tossir. Mas um cigarro com sabor, digamos cereja, pode parecer melhor. E pode matar o gosto [ruim do cigarro] para eles, de forma que possam começar mais cedo".
As argumentações apresentadas pelas empresas tabagistas em favor do uso dos aditivos, continua o docente, não se sustentam diante da realidade. Segundo ele, o setor alegou que a proibição dos aditivos poderia afetar o comércio de cigarros no Brasil e, consequentemente, provocar desemprego. “Ocorre que 88% da produção de tabaco brasileira são destinados à exportação. Ou seja, uma regulação mais rigorosa não trará tanto impacto assim para o mercado interno”, considera.
Outra alegação do segmento é de que ele é um importante pagador de impostos. A justificativa também é contestada pelo professor da FCA. Conforme dados do Instituto de Efectividad Clinica y Sanitária (América Latina), as indústrias do tabaco recolhem anualmente cerca de R$ 13 bilhões aos cofres públicos. “Analisadas de forma isolada, essas cifras parecem grandiosas. No entanto, as doenças relacionadas ao uso do tabaco custam anualmente ao Estado brasileiro perto de R$ 56,9 bilhões. Ou seja, existe uma diferença de quase R$ 44 bilhões, que saem do bolso dos contribuintes. Isso sem contabilizar os gastos adicionais das famílias com remédios e cuidados com os pacientes”, elenca.
O docente lembra que a Constituição brasileira determina que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. “Ora, se a saúde é um direito de todos, o Estado tem a obrigação de regular produtos que representem um risco ao bem-estar da população”, entende. Aliás, a questão de fundo do julgamento no STF tinha relação justamente com a competência das agências reguladoras, no caso a Anvisa.
Se o Supremo tivesse derrubado a resolução, conforme Vedovato, teria sido o mesmo que dizer que a Anvisa não pode desempenhar o papel para o qual foi criada, ou seja, regular produtos e processos que possam representar um risco à saúde da população. “Isso não somente afetaria as atividades da Anvisa, mas também abriria precedente para a contestação da competência das demais agências reguladoras”, assinala o docente da FCA.
Justiça na contramão
O diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, considerou a decisão do STF como uma vitória do órgão. “Foi uma importante vitória para assegurar que a Anvisa possa regulamentar os cigarros. Há várias iniciativas da indústria do tabaco, como a inclusão de aditivos que disfarçam o sabor, que podem induzir crianças e adolescentes a experimentarem cigarros e se tornarem fumantes. Isso pode reverter a tendência de redução do tabagismo verificada nos últimos 25 anos em nosso país, com gravíssimo impacto na saúde pública. Continuaremos a apresentar os argumentos técnicos e legais sempre que houver novas ações”, declarou.
Além do Brasil, outros países também proíbem o uso de aditivos do tabaco. Canadá, Espanha e Alemanha, por exemplo, venceram os obstáculos impostos pelas discussões internas e optaram por essa postura. Se nesse aspecto o Brasil está alinhado com as nações desenvolvidas, em outro deixa a desejar, como observa Vedovato. Ele se refere ao posicionamento da Justiça brasileira, que tem transitado na contramão do judiciário de outros países.
Aqui, nenhuma ação proposta por ex-fumantes pleiteando indenização das indústrias tabagistas pelos danos provocados pelo cigarro obteve êxito até hoje. “Em outros países, a concessão de indenização para ex-fumantes ou suas famílias já é uma realidade. O recado dado pela Justiça, nesses casos, é o seguinte: quem fabrica um produto que pode causar dano a alguém deve tomar mais cuidado tanto com essa produção quanto com a sua divulgação”, pondera o Vedovato. Segundo ele, um dos objetivos do Comitê pelos Direitos Humanos da Unicamp é refletir e propor questões fora do âmbito do Direito, de forma a contribuir para as ações do MP e para as decisões do Judiciário.