Atlas e livro produzidos por pesquisadores do Nepo-Unicamp revelam as mudanças ocorridas nos fluxos migratórios contemporâneos
As migrações internacionais contemporâneas apresentam características distintas dos fluxos registrados nos séculos XIX e XX. Uma das novidades relacionadas ao fenômeno é a intensificação da migração Sul-Sul, configurada pelo movimento cada vez mais vigoroso de pessoas entre e em direção aos países da América Latina e Caribe, bem como de movimentos migratórios oriundos da África e de países como Síria, Líbano, Paquistão, Bangladesh e Nepal. Outro dado novo, este relativo ao Brasil, é interiorização das migrações internacionais, notadamente no Estado de São Paulo. Estes e outros aspectos são analisados em detalhes, e sob diferentes olhares, em duas obras que acabam de ser concluídas e tiveram hoje seu pré-lançamento (leia texto abaixo), ambas com ampla participação de pesquisadores do Núcleo de Estudos da População “Elza Berquó” (Nepo) da Unicamp.
O Atlas Temático Observatório das Migrações - Migrações Internacionais e o livro Migrações Sul-Sul foram produzidos no contexto do projeto temático Observatório das Migrações em São Paulo, que completa 10 anos. O projeto está sediado no Nepo e conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Os dois volumes dialogam entre si, a partir dos diferentes contextos das migrações transnacionais, como explica a professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e pesquisadora do Nepo, Rosana Baeninger, que conduziu os dois produtos.
De acordo com ela, as obras tratam de temas que se entrecruzam e que ajudam a jogar luz sobre o que ela classifica de “novas faces” dos fluxos migratórios internacionais. O Atlas, por exemplo, traz dados sobre os primeiros 15 anos das migrações no Brasil e em São Paulo no século XXI. “Um dos objetivos do Observatório é justamente ter um olhar atento para as migrações recentes”, explica Rosana Baeninger.
A pesquisadora informa que uma parte do Atlas traça o panorama brasileiro das migrações internacionais no período considerado. Em linhas gerais, a publicação mostra quais são os países de origem e os municípios de residência dos imigrantes. “Esse nível de detalhamento somente foi possível porque usamos a base de dados da Polícia Federal (PF) e do Ministério da Justiça, que traz diversas informações sobre as pessoas que obtêm o Registro Nacional de Estrangeiro (RNE), documento concedido a quem é admitido no país na condição de temporário, permanente, asilado ou refugiado”, detalha.
A base de dados, continua Rosana Baeninger, permite verificar, ainda, como se dá o fluxo migratório interno, ao proceder a análise do local de entrada do imigrante e a cidade onde ele fixa residência. “Essa questão é muito importante porque é nova no contexto brasileiro. Anteriormente, essa mobilidade interna da migração internacional era invisível, muito em função da falta de documentação para a permanência dos imigrantes internacionais no país. O acordo de residência do Mercosul e o visto humanitário a haitianos deu visibilidade a este fenômeno. Também é importante porque os novos municípios de concentração dos imigrantes precisam se preparar para acolhê-los. Isso implica na oferta de políticas públicas universais, como saúde e educação, mas também na adoção de iniciativas específicas para suprir as necessidades dessa população”, pondera a pesquisadora do Nepo.
Entre 2000 e 2015, segundo o Atlas, foram registrados no Brasil 870.926 imigrantes, vindos dos mais diversos países do mundo. Destes, 367.436 foram registrados no Estado de São Paulo. “Vale ressaltar que não estamos falando de estoque, mas sim de novos imigrantes que chegaram ao país nesse período”, observa Rosana Baeninger. Ao acompanhar a movimentação desses imigrantes, os pesquisadores constataram uma intensificação da interiorização das migrações internacionais, notadamente em São Paulo.
Houve uma mudança na configuração dessas migrações, a partir de 2010, principalmente por causa da entrada mais expressiva de haitianos e sírios no país, além de imigrantes latino-americanos. “São poucos os municípios do Estado que não tiveram nenhum registro da chegada de imigrantes nos primeiros 15 anos do século XXI”, afirma Natália Belmonte Demétrio, pós-doutoranda do Nepo e uma das autoras do Atlas. “O pano de fundo desse movimento é a mobilidade do capital e da força de trabalho. Entretanto, o fenômeno foi potencializado por causa da decisão de países europeus e dos Estados Unidos de fecharem as suas fronteiras aos imigrantes. Como consequência, houve um aumento na presença de países do sul global nesses fluxos, configurando o que chamamos de migração Sul-Sul”, pormenoriza Rosana Baeninger.
Na esteira das mudanças, ela chama a atenção para o fato de os imigrantes já não pertencerem, como no passado, a um segmento formado majoritariamente por pessoas de baixa renda e baixa qualificação profissional. “Atualmente, a migração internacional mescla trabalhadores de diferentes perfis profissionais e socioeconômicos”, assegura. Com base nos dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), elaborada pelo Ministério do Trabalho, o Atlas mostra como os imigrantes se distribuem no mercado de trabalho formal, tanto no Brasil quanto em São Paulo, e como eles estão agrupados por atividade e nacionalidade.
A título de exemplos, em 2015 os haitianos eram os que mais predominavam no setor de Produção de Bens e Serviços Industriais. Já os paraguaios representavam a maioria entre os Trabalhadores Agropecuários, da Floresta e da Caça. Os portugueses, por sua vez, estavam mais presentes no segmento denominado Serviços Administrativos. “A de se ressaltar, ainda, a presença dos trabalhadores do conhecimento, especialmente em São Paulo”, acrescenta Joice Domeniconi, também autora do Atlas.
O Atlas Temático foi produzido no contexto dos 35 anos do Nepo. O volume foi dedicado à professora Elza Berquó, fundadora do órgão. Conta ainda com a autoria de Duval Fernandes e Roberta Peres. “Para produzirmos o Atlas tivemos com o apoio da Fapesp, do CNPq, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), da Missão Paz e do fotógrafo Chico Max, que cedeu as fotos da Exposição Somos Todos Imigrantes para ilustrar o volume”, registra Rosana Baeninger. Segundo ela, o Observatório das Migrações em São Paulo já está trabalhando na elaboração de outro atlas, que abordará especificamente a questão dos refugiados.
Múltiplos olhares
O livro Migrações Sul-Sul, organizado por Rosana Baeninger com a participação de pesquisadores do Nepo e de outras instituições de ensino e pesquisa, foi produzido de forma concomitante ao Atlas das Migrações. Ele reúne 82 artigos de especialistas de diversos países, a maioria da América Latina. São quase mil páginas, que trazem análises sobre diversos aspectos relacionados às migrações internacionais, como direitos humanos, saúde, educação, leis de imigração etc. O livro conta, em uma de suas partes, com textos sobre as ações da academia para imigrantes e refugiados. Um dos autores é o reitor Marcelo Knobel, que escreve sobre as ações da Unicamp para refugiados e refugiadas no âmbito da Cátedra Sérgio Vieira de Mello.
O livro aponta que os processos migratórios passaram por uma reconfiguração importante. Uma consequência das mudanças é que os países latino-americanos deixaram de ser lugares de imigração e emigração para se transformarem em locais de trânsito migratório. “A imigração haitiana demonstra bem essa situação. Muitos haitianos já saíram pelas fronteiras em direção ao Chile e Estados Unidos. Artigos como os presentes no livro ajudam a pensar as migrações e a entender melhor suas complexidades. Esse tipo de trabalho é importante porque vamos continuar convivendo com esse fenômeno, que se mostra distante do imaginário migratório dos séculos XIX e XX”, assinala Rosana Baeninger.
No passado, aponta a pesquisadora, os imigrantes representavam uma mão de obra branca, europeia e civilizada. “Agora, com a migrações Sul-Sul, o perfil desses imigrantes mudou. Vamos verificar cada vez mais a chegada de pessoas não brancas, como o exemplo mais recente dos indígenas da Venezuela em Roraima. Entender essas questões é fundamental para preparar a sociedade para a imigração recente. Isso inclui a garantia e a promoção dos direitos humanos, respeito, tolerância e formulação de políticas públicas voltadas para essa população”, pontua.
A Cátedra Sérgio Vieira de Mello, instituída na Unicamp em setembro de 2017, tem também como objetivo estimular o debate e a produção do conhecimento sobre o tema dos refugiados e terá papel fundamental na interlocução com a sociedade e com essa imigração, aponta a pesquisadora do Nepo. De acordo com ela, a comunidade cientifica está preocupada em desenvolver investigações que ofereçam subsídios tanto para a formulação de políticas públicas quanto para o melhor entendimento por parte da sociedade sobre esses novos fluxos migratórios.
O livro Migrações Sul-Sul está disponível para download gratuito neste endereço eletrônico. http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/livros/migracoes_sul_sul/migracoes_sul_sul.pdf. A obra contou com apoio da Fapesp, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Tanto o Atlas das Migrações como o livro Migrações Sul-Sul deverão ser lançados no Fórum Campinas pela Paz, marcado para os dias 23 e 24 de fevereiro.
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Livros podem nortear políticas públicas
Resultado de 10 anos de trabalho conduzido por pesquisadores do Núcleo de Estudos da População “Elza Berquó” (Nepo) da Unicamp, no âmbito de projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o Atlas Temático Observatório das Migrações-Migrações Internacionais e o livro Migrações Sul-Sul tiveram seu pré-lançamento, nesta quinta-feira (22), na Unicamp.
A coordenadora do projeto, Rosana Baeninger, ressaltou a importância do trabalho na relação entre produção científica e a sociedade civil. “Acreditamos que essas informações podem subsidiar políticas públicas, dando um panorama das migrações nos últimos cinco anos, no Estado de São Paulo. Esperamos que os formuladores de políticas públicas e os agentes que estejam atuando diretamente com os imigrantes possam ter um embasamento melhor sobre o fenômeno com o qual estão lidando”, explicou.
Para o secretário de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, Márcio Fernandes Elias Rosa, que recebeu o Atlas das mãos do reitor Marcelo Knobel, o valor do trabalho é “inestimável”. “A construção de políticas públicas e sua execução a partir de dados científicos diminuem grandemente a margem de erro e possíveis equívocos, além de ser fundamental para definição de prioridades”, pontuou.
Chamou atenção do secretário especialmente a interiorização dos movimentos migratórios, não mais restritos à capital e região metropolitana. Ele destacou também a diversidade da origem dos imigrantes entres as informações decisivas para futuros planejamentos. “É preciso garantir que todos tenham efetiva chance de inclusão na sociedade brasileira”, afirmou.
Para o reitor Marcelo Knobel, a parceria com o governo estadual, sobretudo em situações críticas, entre as quais a questão da imigração venezuelana, possibilita contemplar a sociedade com as pesquisas desenvolvidas na Universidade. “O Nepo fez um trabalho espetacular de acompanhamento desses dados e estamos colhendo os louros dessa pesquisa de fôlego, realizada ao longo de anos, com apoio da Fapesp”, registrou.
Segundo ele, o Atlas deverá subsidiar também pesquisas e políticas dentro da Universidade, com destaque para a Cátedra dos Refugiados e para as políticas de internacionalização. “É fundamental, para que tenhamos avanços, cruzar esses dados, verificar e entender como a imigração funciona”, completou.
A forte relação que o trabalho concluído estabelece com a sociedade foi destacada também pela coordenadora da Coordenadoria dos Centros e Núcleos de Pesquisa Interdisciplinares (Cecon) da Unicamp, Ana Carolina de Moura Delfin Maciel. “É um trabalho que se expande para além da academia e pode possibilitar não só parceria entre a Universidade e órgãos governamentais, como aplicações práticas. Isso vem ao encontro da proposta da Cocen, que é justamente esse elo entre a pesquisa acadêmica e a sociedade”, afirmou.
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