Tese analisa os movimentos sociais e redes de mobilização na região, com foco na Hidrelétrica de Belo Monte
“Mostrar que existem várias vozes na Amazônia, vozes dizendo que existem diversas Amazônias que precisam ser ouvidas pela população brasileira, e não somente pelas autoridades”, é a contribuição que Lucas Milhomens, jornalista e professor da UFAM em Parintins, espera dar com a tese de doutorado “Movimentos sociais e redes de mobilização na Amazônia: o caso da Hidrelétrica de Belo Monte”. Ele teve a orientação de Maria da Glória Gohn, docente da Faculdade de Educação (FE) e uma das mais conceituadas estudiosas de movimentos sociais na América Latina. “Os brasileiros precisam se apropriar da região, não no sentido de tê-la para si, mas de conhecê-la e preservá-la”, afirma o autor.
Lucas Milhomens traz uma trajetória familiar diretamente ligada a grandes projetos conduzidos pelo regime militar, vivenciando na infância e adolescência, ainda que inconscientemente, os impactos e conflitos gerados por obras como Itaipu, Transamazônica e Tucuruí, levado pelo pai “peão de trecho” – funcionário de confiança que era seguidamente deslocado para esses pontos remotos do país. O capítulo “Filho dos grandes projetos: os porquês da pesquisa e do pesquisador” foi uma sugestão da banca de qualificação. “Em muitos momentos nos identificamos não só com os atores envolvidos, mas também com as situações descritas e analisadas à luz do arcabouço teórico”, observa o jornalista.
Segundo Lucas, a tese, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), analisa os fatores históricos e socioculturais que viabilizaram o surgimento de uma série de grupos e movimentos sociais organizados que atuam na Amazônia, especialmente em cidades como Altamira (PA), município permeado por uma sobreposição de conflitos sociais que datam desde o início do governo civil-militar nos anos 1960. “Em Altamira foram planejados grandes projetos de infraestrutura que geraram uma série de impactos sociais, econômicos e ambientais, atingindo sobretudo povos tradicionais e populações indígenas – casos da construção da rodovia Transamazônica nos anos de 1970 e da Usina Hidrelétrica de Belo Monte inaugurada em 2016.”
O objetivo do autor foi compreender o que são esses movimentos, como foram constituídos historicamente e como se articulam e se organizam tanto para combater os projetos de intervenção como para minimizar seus impactos nas comunidades. “A intervenção do governo civil-militar representou um novo paradigma na Amazônia, que mudou a dinâmica da população e gerou uma reação de movimentos organizados. Nesta reação, destaco a importante presença da Igreja Católica ligada à Teologia da Libertação – que gestou política e ideologicamente outras organizações e movimentos sociais.”
Uma questão relevante para o pesquisador é que, ao se falar da Amazônia, ela seja colocada no plural. “São diversas Amazônias, que compreendem quase 60% do território nacional. Os indígenas sempre foram personagens centrais, afinal de contas, o Xingu é um rio indígena, que corre do Mato Grosso ao Pará, tendo dezenas de comunidades indígenas vivendo há milênios em suas margens. Mas outros personagens fazem parte deste processo, como os ribeirinhos e trabalhadores rurais que para lá migraram muito antes da Transamazônica, atraídos pela propaganda governamental visando mão de obra e maior ocupação da região.”
Lucas Milhomens observa que os migrantes que lá permaneceram constituíram populações igualmente amazônicas, havendo uma presença bastante forte de nordestinos. “Não é possível pensar em lugar algum da região sem pensar no Nordeste, pois os migrantes ajudaram a moldar a cultura das Amazônias desde os primeiros ciclos da borracha. Nos últimos 50 anos também é marcante a presença de imigrantes gaúchos e paranaenses; já são duas gerações e há cidades onde só existem loiros de olhos azuis, com paisagens interioranas muito semelhantes às do Sul.”
Capital da Transamazônica
O autor da tese justifica o foco em Altamira por seu histórico de conflitos sociais envolvendo a terra e a própria Transamazônica, projeto dos militares para ligar o Nordeste ao Norte. “O trecho principal da rodovia está em Altamira, conhecida inclusive como a ‘capital da Transamazônica’. A obra trouxe um impacto de proporções ainda estudadas por pesquisadores, pois ela não foi concluída e até hoje se sente as consequências. Estive na rodovia em período de seca e alguns trechos têm crateras do tamanho de um ônibus; com as chuvas, o tráfego fica inviável.”
Milhomens lembra que mesmo os governos ditos democráticos que se seguiram após 1984, ao fim da ditadura, mantiveram a mesma política de “desenvolvimento” para a Amazônia. “A própria Belo Monte foi pensada em pleno regime militar e tentaram colocá-la em prática no final dos anos 80, a partir de outras experiências, como Tucuruí. Mas houve a mobilização dos movimentos sociais, sobretudo dos indígenas, com denúncias à ONU e outras instâncias internacionais. A reação fez com que o Banco Mundial cancelasse o empréstimo e a construção da então chamada Hidrelétrica do Kakaraô acabou suspensa. A discussão foi retomada nos anos 2000, com nova roupagem e o nome de Belo Monte.”
Para o jornalista, a atuação dos ativistas reflete a consciência de que a Amazônia deve ser não apenas preservada, mas conhecida de fato pela população do Brasil e do planeta. “Impressiona a mim, morador há dez anos na região, que pessoas de outros lugares do mundo estudem e falem da Amazônia com muito mais propriedade do que os brasileiros. A resistência dos movimentos sociais contribuiu para a divulgação mundial de questões como os impactos das hidrelétricas – Belo Monte é a maior delas, mas há um projeto para cerca de 40 usinas espalhadas por toda a Amazônia, segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia do Governo Federal para os próximos anos.”
Essa articulação, diz o pesquisador, gera outras campanhas, como a movida atualmente contra uma multinacional canadense, também em Altamira. “Além da hidrelétrica, existe uma grande ameaça chamada Belo Sun, que está implantando a maior mineradora de ouro do Brasil, a 10 km da barragem. Impactos absurdos virão com a extração de outro, em que se utiliza produtos altamente nocivos ao meio ambiente. E os maiores impactados são novamente os indígenas, que já foram deslocados. Em entrevista à jornalista Eliane Brum, a procuradora da República em Altamira, Thais Santi, utilizou o termo antropológico que melhor caracteriza o que aconteceu na região com a Belo Monte: etnocídio, crime pelo qual o Estado brasileiro está sendo denunciado pelo Ministério Público Federal.”
Redes de mobilização
Na tese também são analisadas as redes de mobilização, articuladas entre movimentos sociais e entidades parceiras que utilizam a internet e outros meios digitais de forma sistemática e orgânica. “Essas redes são um tema trabalhado por grupos urbanos, mas não no meio amazônico. Trata-se da produção de textos, material audiovisual, documentários e até ficção para divulgar suas bandeiras. A estrutura tecnológica é um gargalo – em muitos lugares a fibra óptica não chega –, mas assim mesmo, nos últimos cinco anos, Belo Monte tem sido um dos assuntos mais discutidos no país, por conta desses atores sociais. A internet é fundamental porque a mídia convencional não aborda essas questões na mesma perspectiva dos movimentos.”
Lucas atenta que todo esse processo de resistência também gera educação, no sentido de aprendizado. “A própria ação, em si, gera o conhecimento que será utilizado posteriormente ou durante o processo, os movimentos aprendem com seus equívocos. Por exemplo: apesar de a hidrelétrica ter sido inaugurada, a luta continua, pois o governo não executou nem 5% das ações mitigatórias que lhe cabem. Há gente que ainda não tem onde morar, casas para reassentamento mal construídas, os impactos ambientais com o rio parado e apodrecendo, os peixes morrendo... Tudo isso continua em discussão.”
O reassentamento é uma condicionante relacionada aos indígenas, mas o jornalista destaca que uma das ações governamentais para viabilizar Belo Monte foi a de desarticulá-los com mecanismos contra a mobilização. “Um mecanismo foi o denominado ‘plano emergencial’, em que o governo concedia R$ 30 mil mensais para cada liderança indígena – existem 19 etnias na região. O dinheiro atraiu outras lideranças e houve um aumento de 20 para quase 60 aldeias. Os indígenas acabaram se dividindo por conta do dinheiro, que não era utilizado em benefício da comunidade, havendo relatos de compra de picapes em aldeias que não possuíam estradas, bem como de inúmeros alimentos perecíveis e sem nenhum valor nutritivo para os indígenas, como fardos de refrigerante.”
Milhomens afirma que durante o plano cresceram os casos de doenças, alcoolismo e violência, justificando a denúncia contra o Estado por etnocídio aos povos indígenas do Xingu. “Redistribuir os indígenas geograficamente, estabelecendo-os aonde o impacto da obra não os atinja, é uma das questões. A outra é garantir que esses povos tenham suas culturas respeitadas. Os Aarara, especificamente, foi dos povos que mais sofreu com os impactos: moravam em uma espécie de ilha do Xingu, onde pescavam e mantinham seu roçado, e acabaram deslocados para uma área sem acesso ao rio e, portanto, sem meios para sobreviver.”
Os ribeirinhos, segundo o autor da tese, mantêm vidas semelhantes e sofreram os mesmos impactos, mas anonimamente, visto que não contam com a mesma rede de proteção dos indígenas. “Não fossem os movimentos sociais, os ribeirinhos estariam completamente desamparados. Entrevistei pessoas como dona Raimunda, que me fez um relato muito forte: ‘Belo Monte tirou o chão que eu piso e quase me matou, só não me matou porque eu sou muito forte’. Ela era agricultora e pescadora, em terreno de uma ilha do Xingu que foi alagado. Com uma indenização insignificante, dona Raimunda foi para a cidade e, ao ver a água bater de novo na porta de casa, teve que ser realocada: foi duplamente atingida.”
Novas ameaças
O autor da tese considera que hoje o cenário é o pior possível, em todos os sentidos. “Nunca se atacou tanto a Amazônia, com medidas como a de restringir a área de proteção ambiental no Pará, em que o governo voltou atrás. Existe no Congresso Nacional um lobby da bancada ruralista, que é muito poderosa e afeta diretamente a legislação. Questões que achávamos garantidas em relação à Amazônia, não estão mais, inclusive quanto à demarcação de terras indígenas, que hoje é competência do Executivo, mas querem que o Legislativo passe a conceder ou retirar as concessões.”
Um esforço da sua pesquisa, finaliza Lucas Milhomens, é mostrar que os movimentos sociais da Amazônia existem e são fundamentais para a resistência contra ameaças que vão desde projetos empreendidos pelo Estado e por grandes empresas, como por garimpeiros e madeireiros. “O grande problema amazônico, que vem desde o processo de colonização, é que a região foi concebida para ser usurpada, extraída e abandonada. Mesmo hoje, a Amazônica continua sendo pensada como um território a ser meramente explorado. Por isso, a importância desses atores e movimentos sociais no combate a essas inúmeras ameaças.”