Documento aponta que consumo crescente na maioria dos países está entre as causas das transformações
A intensificação da degradação da superfície terrestre em decorrência das atividades humanas ameaça a qualidade de vida de 2/5 da população do planeta, e pode causar a extinção de espécies, intensificando as mudanças climáticas. É também um dos principais vetores para as migrações humanas em massa e para o aumento dos conflitos. Estas são as principais conclusões do Diagnóstico sobre Degradação e Restauração da Terra, aprovado durante a Sexta Plenária da Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), realizado em Medellín, na Colômbia. O documento é fruto de estudos que reuniram mais de 100 especialistas de cerca de 45 países durante três anos.
A degradação da terra pode assumir muitas formas, tais como abandono de terras, declínio das populações de espécies selvagens, desmatamento, perda de solo e da saúde do solo, perda de pastagens e água doce, dentre tantas. “Transformar os ecossistemas naturais em ecossistemas de produção orientados para o homem – por exemplo, agricultura ou florestas manejadas – cria benefícios para a sociedade, mas resulta simultaneamente em perdas de biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos não priorizados. Valorizar e equilibrar esses trade-offs é um desafio para a sociedade como um todo”, explica Carlos Joly, professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp e membro do Painel Multidisciplinar de Especialistas da IPBES.
“A degradação dos recursos da terra enfraquece nossos esforços para acabar com a fome. A gestão dos recursos terrestres é fundamental para garantir nossa visão de alimentos e agricultura sustentáveis. Um solo saudável é a espinha dorsal de o todo sistema alimentar saudável” comenta José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), sobre os resultados do Diagnóstico.
O consumo elevado na maioria dos países desenvolvidos e o consumo crescente nas economias emergentes e em desenvolvimento são vetores de peso que acarretam estas transformações. O crescimento populacional pode levar a uma expansão insustentável da agricultura e ao aumento descontrolado da extração da mineração e do crescimento urbano.
De acordo com especialistas, se até 2050 forem seguidos os atuais modelos de desenvolvimento, a degradação do solo associada à mudança climática reduzirá a produtividade das culturas em uma média de 10% globalmente e até 50% em certas regiões. Paralelamente, as populações vivendo em terras áridas aumentará de 2,7 bilhões em 2010 para 4 bilhões em 2050.
“Até lá é provável que a degradação do solo e os problemas relacionados com a mudança climática possam forçar a migração de 50 milhões a 700 milhões de pessoas. A diminuição da produtividade da terra também torna as sociedades mais vulneráveis à instabilidade social – particularmente em regiões áridas, nas quais anos com chuvas extremamente baixas foram associados a um aumento de até 45% em conflitos violentos”, explica o sul-africano Robert Scholes, líder do diagnóstico ao lado do cientista italiano Luca Montanarella.
Para se ter ideia da dimensão da degradação, em 2014, menos de 25% da superfície do planeta foi poupado de impactos substanciais das atividades humanas. Em 2050, os especialistas do IPBES estimam em apenas 10%.
"Com impactos negativos no bem-estar de pelo menos 3,2 bilhões de pessoas, a degradação da superfície terrestre por meio de atividades humanas está levando o planeta para a sexta extinção em massa de espécies" afirma Scholes, e complementa: “evitar, reduzir e reverter esse problema e restaurar a terra degradada são prioridades urgentes para proteger a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos vitais para toda a vida na Terra e garantir o bem-estar humano”.
Outro impacto observado foi nas áreas alagáveis. Segundo Montanarella, "temos visto perdas de 87% em áreas úmidas desde o início da era moderna – com 54% perdidas desde 1900".
As causas deste cenário, segundo o Diagnóstico, foram a rápida expansão e o manejo inadequado da agricultura e pecuária que provocam perdas da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos, englobando as contribuições essenciais da natureza para as pessoas, tais como, a segurança alimentar, purificação da água, provisão de energia entre outros.
Atualmente, agricultura e pecuária cobrem mais de 1/3 da superfície da Terra. Se mantidos os padrões atuais da agricultura convencional, o uso de agrotóxicos e fertilizantes deverá dobrar até 2050, segundo os especialistas da IPBES, o que pode potencialmente inviabilizar a saúde dos solos.
O diagnóstico constatou que a degradação da terra é um dos principais fatores para as mudanças climáticas, com o desmatamento contribuindo com cerca de 10% de todas as emissões de gases de efeito estufa induzidas pelo homem. Outro grande gatilho das mudanças climáticas tem sido a liberação de carbono anteriormente armazenada no solo, com a degradação da terra entre 2000 e 2009 responsável por emissões globais anuais de até 4,4 bilhões de toneladas de CO2.
No Brasil, a degradação está presente em todos os biomas e regiões, mas é mais intensa em áreas onde a ocupação humana é mais antiga, como é o caso da Mata Atlântica. O Brasil possui 200 milhões de hectares de áreas degradadas de acordo com dados do Departamento de Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Segundo o pesquisador Moacyr Bernardino Dias-Filho, da Embrapa, a degradação tende a ser maior nos locais em que a pecuária vem apresentando as maiores taxas de expansão, isto é, nas áreas de fronteira agrícola – veja aqui.
Para os especialistas, o impacto na degradação da terra não é muitas vezes visível devido às distâncias que podem separar os consumidores e produtores. A crescente desconexão espacial entre os consumidores e os ecossistemas que produzem os alimentos e outros produtos de que dependem resultou em uma crescente falta de conscientização e compreensão das implicações das escolhas de consumo. Assim, aqueles que se beneficiam da superexploração dos recursos naturais estão entre os menos afetados pelos impactos negativos diretos da degradação da terra e, portanto, têm o menor incentivo para agir.
“Vivemos em um mundo cada vez mais conectado, mas, como consumidores, estamos vivendo cada vez mais longe das terras que nos sustentam. Abordar a degradação da terra local por local é insuficiente quando o consumo em uma parte do mundo influencia a terra e as pessoas em outra” comenta Monique Barbut, Secretária Executiva da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD).
Os estilos de vida de alto consumo nas economias mais desenvolvidas, combinados com o aumento do consumo nas economias emergentes e em desenvolvimento, são os fatores dominantes que impulsionam a degradação da terra globalmente.
Podemos reverter?
Os autores do estudo sugerem um conjunto de ações em nível individual, setoriais e governamental que ajudariam a reverter esta trajetória predatória, entre as quais, o aumento de rendimento nas terras agrícolas já existentes, mudanças para dietas com menos proteína animal e de origem não sustentável, além de reduções na perda e desperdício de alimentos.
Em áreas urbanas, os cientistas recomendam incluir o replantio com espécies nativas, o desenvolvimento de “infraestrutura verde” como parques e rios, remediação de solos contaminados, e impermebilizados (por exemplo, com asfalto), tratamento de águas residuais e restauração de canais fluviais são identificados como opções ação.
Segundo os especialistas, outra opção é integrar as agendas agrícola, florestal, energética, hídrica, de infraestrutura e de serviço e considerar a elaboração de políticas entre os diferentes ministérios para, simultaneamente, incentivar práticas mais sustentáveis de produção e consumo de commodities baseadas na terra, eliminar os “incentivos perversos” que promovem a degradação da terra e promover incentivos positivos que recompensam o manejo sustentável da terra.
A restauração aparece como boa opção de remediação. Embora muitas vezes cara, os benefícios da restauração de terras degradadas ainda são 10 vezes maiores do que não fazê-la. Este cálculo foi estimado em nove biomas. Entre os benefícios decorrentes da restauração, os cientistas listaram o aumento do emprego, investimento do setor privado, melhoria dos meios de subsistência, da educação e a promoção da equidade de gênero.
O relatório observa que exemplos bem-sucedidos de restauração de terras são encontrados em todos os ecossistemas e que muitas práticas e técnicas bem testadas, tradicionais e modernas, podem evitar ou reverter a degradação.
Como exemplo bem sucedido de restauração, no Brasil, a Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, é tido como emblemático. “A restauração foi ordenada por D. Pedro II por recomendação do Conselheiro José Bonifácio Andrada e Silva, para recuperar e proteger as nascentes que abasteciam a cidade do Rio de Janeiro. Pouquíssimos turistas que visitam o Parque Nacional da Tijuca sabem que estão caminhando em uma área restaurada”, exemplifica Joly.
Além deste caso, há o exemplo do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, que atua em todo o bioma no país e que já recuperou mais de 86 mil hectares de Mata Atlântica desde 2007.
“A degradação da terra, a perda de biodiversidade e as mudanças climáticas são três faces diferentes do mesmo desafio central: o impacto cada vez mais perigoso de nossas escolhas na saúde de nosso ambiente natural. Não podemos nos dar ao luxo de enfrentar qualquer uma dessas três ameaças isoladamente – cada uma delas merece a mais alta prioridade política e deve ser abordada em conjunto”, ressalta o presidente da IPBES, o químico Sir Robert Watson.
América responde por 1/4 da pegada ecológica global
Na mesma Plenária da IPBES em Medellín também foram aprovados mais quatro Diagnósticos Regionais: África, Europa e Ásia Central, e Ásia e Pacífico. Juntos, os relatórios reuniram mais de 550 experts de cerca de 100 países.
O documento ressalta que o continente americano representa 13% da população mundial e responde por quase 1/4 da pressão do consumo das populações sobre os recursos naturais, a chamada pegada ecológica.
O valor econômico da natureza nas Américas foi estimado em ao menos US$ 24,3 trilhões por ano, aproximadamente R$ 80 trilhões, sem considerar o ambiente marinho. Isto equivale ao PIB total do continente. Estes valores ambientais são invisíveis na precificação de produção de alimentos, do abastecimento de água, da geração de energia, e até mesmo na contribuição para a saúde humana. Quando não se contabilizam estes valores no atual modelo de desenvolvimento e estilo de vida, significa seguir por uma trajetória que trará consequências irreversíveis para o planeta e para a existência humana.
Para se ter ideia, entre a chegada dos europeus na América e hoje, calculou-se uma redução em média de 30% das populações de espécies por hectare. As principais causas são poluição, sobre-exploração de recursos naturais e a conversão de áreas naturais em áreas cujas características originais foram alteradas. Estima-se que 65% dos serviços ecossistêmicos, dos quais as pessoas se beneficiam, estejam diminuindo.
Se o cenário não se alterar, em 2050 as mudanças climáticas se tornarão o principal vetor de pressão, impactando negativamente a biodiversidade nas Américas. Calcula-se que a redução média das populações de espécies por hectare poderá atingir 40% até a metade do século XXI.
O Diagnóstico das Américas foi coordenado pelos pesquisadores Jake Rice (Canadá), Cristiana Simão Seixas. (Brasil, Unicamp e BPBES) e Maria Elena Zaccagnini (Argentina). A participação do time de pesquisadores brasileiros no Diagnóstico das Américas se destacou com 24 especialistas de diferentes áreas e regiões do país. Estes pesquisadores se uniram para montar a versão brasileira da Plataforma de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, a BPBES, inspirada na IPBES.
A IPBES é um órgão intergovernamental independente vinculado à ONU e criado em 2012. É composto por 129 governos membros e visa fornecer, aos formuladores de políticas, diagnósticos sobre o estado do conhecimento sobre a biodiversidade, os ecossistemas e as contribuições da natureza para as pessoas. Também é chamado de "IPCC da biodiversidade".