Pesquisa constata que grupos que apresentam piores condições socioeconômicas e ambientais são mais suscetíveis à doença
A combinação de fatores como o elevado número de imóveis ocupados por borracharias, depósitos de materiais de reciclagem e oficinas mecânicas com a intensa mobilidade da população compreende risco potencial para a ocorrência da dengue em Campinas. A constatação faz parte da tese de doutoramento em Demografia de Igor Cavallini Johansen, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O trabalho foi orientado pelo professor Roberto Luiz do Carmo e coorientado pela professora Luciana Correia Alves.
Em sua pesquisa, Johansen investigou quais foram os fatores socioambientais que confluíram para a ocorrência das epidemias de dengue em Campinas entre os anos de 2007 e 2015. Naquele intervalo, foram registradas as três maiores epidemias de dengue enfrentadas pelo município (2007, 2014 e 2015). Nos nove anos considerados, foram notificados mais de 123 mil casos da doença na cidade. “A dengue é uma doença multicausal. Fatores relacionados ao vírus, ao vetor e às características da população podem eventualmente favorecer o surgimento de epidemias. A proposta da tese foi verificar, diante de epidemias históricas, se todos os grupos da população e todas as regiões do município foram afetadas igualmente ou se houve determinados segmentos populacionais, residentes em espaços específicos, que foram mais acometidos pela doença”, explica autor do trabalho.
Ao cabo das análises, o demógrafo apurou que os grupos que possuem piores condições socioeconômicas e que vivem em lugares com pior qualidade ambiental apresentam maior risco de contrair o vírus da dengue. Em outros termos, estão mais suscetíveis à doença pessoas que moram em locais com maior número de “pontos estratégicos”, como são denominados tecnicamente os imóveis ocupados por borracharias, depósitos de materiais de reciclagem, oficinas mecânicas etc; que possuem menor renda per-capita; que vivem em bairros com maior proporção de ruas sem pavimentação; e que têm como residência as casas térreas em vez de apartamentos. “Vale também apontar que as análises dos dados indicaram que são as mulheres as que mais notificam casos de dengue. Além disso, os grupos mais afetados estão entre as faixas etárias de 15 a 19 e 30 a 34 anos”, pontua Johansen.
O trabalho também constatou que Campinas apresenta picos epidêmicos em consonância com outros municípios da Região Metropolitana, especialmente Sumaré e Hortolândia, aos quais está ligada por intensas trocas populacionais diárias. De acordo com dados do Censo Demográfico de 2010, perto de 113 mil pessoas se deslocam diariamente de outras cidades para Campinas, para fins de trabalho ou estudo. Ao mesmo tempo, cerca de 33 mil pessoas saem de Campinas em direção aos municípios da região.
O demógrafo esclarece que decidiu incorporar esse aspecto ao estudo porque, caso esteja infectada, uma pessoa pode ser picada em uma localidade diferente daquela onde mora pelo vetor da dengue, o Aedes aegypti, transmitindo o vírus ao mosquito, que por sua vez poderá infectar outras pessoas naquela localidade. “Esse processo explica parte da dinâmica da distribuição da dengue, que tem início em determinado local e tende a se espalhar para outros. No caso dos três municípios citados, tanto a dengue de Campinas pode ser redistribuída a Hortolândia e Sumaré, como o contrário também é possível”, assinala Johansen.
Uma realidade que dificulta o controle da dengue em Campinas, apurou a tese de doutorado, é o grande número de casas fechadas e de moradores que se negam a abrir as portas de suas residências para a inspeção de possíveis criadouros do Aedes aegypti. Conforme a pesquisa, mais da metade dos domicílios (50,5%) da Região Norte do município, onde estão localizados o distrito de Barão Geraldo e bairros como Jardim Santa Mônica e Jardim Aurélia, não foi inspecionada pelos agentes de saúde. A falta de vistoria dessas unidades, observa o demógrafo, gera dois problemas. “Por um lado, leva à produção de dados incompletos sobre o real nível de infestação no município. Por outro, impede o chamado controle mecânico, ou seja, a eliminação ou tratamento dos criadouros encontrados, o que é muito sério”, considera.
O estudo constatou, ainda, que o período comum dos processos epidêmicos no intervalo considerado ocorreu especialmente entre final de março e final de abril de cada ano, com concentração nas populações residentes nas regiões Sul, Sudoeste e Noroeste de Campinas. “O que conseguimos verificar foi que a distribuição dos casos de dengue não é aleatória. Ela se concentra especialmente em áreas que apresentam piores condições socioeconômicas e ambientais. A população da região central do município, em geral mais afluente, além de viver predominantemente em edifícios [o Aedes tem dificuldade para alcançar pisos elevados], é menos afetada pelas epidemias, independentemente da dimensão destas. Assim, por condições específicas, tais grupos não foram fortemente atingidos nem mesmo nas maiores epidemias de dengue que o município enfrentou, em 2007, 2014 e 2015, que apresentaram mais de 11 mil, 42 mil e 65 mil casos, respectivamente”.
Por outro lado, continua o autor da tese, há populações que são sistematicamente acometidas pela doença, como é o caso daquelas que vivem nas já citadas regiões Sul, Sudoeste e Noroeste, que em geral possuem piores condições socioeconômicas e ambientais. Nessas regiões estão situados bairros como Jardim Campo Belo, Jardim Fernanda e Parque Oziel (Sul); Jardim Campos Elíseos, Distritos Industriais de Campinas (DICs) e Vila União (Sudoeste); e jardins Florence, Ipaussurama e Satélite Íris (Noroeste). “Essas localidades ainda possuem deficiências importantes em termos de saneamento ambiental. Nas pesquisas de campo que realizei, pude verificar que essas condições são diferentes do restante do município”, assegura Johansen.
Metodologia
Na metodologia adotada pelo demógrafo, foi aplicada a técnica da geocodificação, que pode ser explicada como a localização de um endereço no mapa. De posse dos endereços residenciais dos cerca de 123 mil casos de dengue oficialmente notificados em Campinas no período tomado para análise, o pesquisador buscou localizá-los com o objetivo de estabelecer as coordenadas (latitude e longitude) de cada um deles. Após uma série de tentativas, Johansen obteve um percentual de sucesso de 93,4%, bastante significativo dado que estudos que utilizaram a mesma ferramenta alcançaram índices entre 80% e 90%. “Com a localização exata dos casos pudemos verificar onde e quando houve as maiores concentrações de dengue em Campinas no período selecionado, e então comparar com as características da população e do ambiente dessas localidades. Essa investigação foi realizada utilizando técnicas de análise espacial e modelagem estatística clássica”, pormenoriza o pesquisador.
Por último, mas não menos importante, a pesquisa analisou quais são os principais tipos de recipientes que favorecem o desenvolvimento do Aedes aegypti em Campinas. “Além dos pontos estratégicos, que são fatores importantes para o vetor e a ocorrência da doença, no âmbito domiciliar os principais criadouros identificados, representando 64,8% do total de recipientes, foram os depósitos móveis como vasos de planta, baldes, bandejas de geladeira/ar condicionado e materiais de construção. Isso significa dizer que a maior parte dos criadouros encontrados nas casas do município é evitável. É importante enfatizar essa questão porque, para ser efetivo, o controle da dengue precisa ser realizado a partir da perspectiva das responsabilidades compartilhadas. Ou seja, se por um lado a administração pública possui o papel fundamental de oferecer saneamento ambiental e planejamento urbano adequados para evitar a produção de condições ambientais favoráveis ao Aedes aegypti, por outro a população também precisa se mobilizar para auxiliar no controle do vetor no âmbito das residências”, pondera o autor da tese.
A expectativa de Johansen é que os resultados do seu trabalho possam contribuir para a elaboração de políticas públicas focalizadas em determinados segmentos populacionais e localidades específicas, promovendo a racionalização de recursos públicos e a potencialização das atividades já desenvolvidas. O demógrafo contou com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), este último para custear os estudos desenvolvidos na Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde o pesquisador realizou doutorado sanduíche.