Historiadora mostra como a circulação de pasquins, em Vila Rica e em Portugal, deixou corrupto no ostracismo
A corrupção está no centro do debate político brasileiro da atualidade, mas engana-se quem pensa que a cobrança de propina, a troca de favores e o desvio de recursos públicos são exclusivos do Brasil contemporâneo. No século XVIII, em pleno Período Colonial, o enriquecimento ilícito dos governantes não só existia, como era condenável e podia acarretar punição.
Em Vila Rica em sátiras – Produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732, livro da Editora da Unicamp, a historiadora Adriana Romeiro revela que naquela época existiam mecanismos tão (ou mais) eficazes do que os processos e julgamentos judiciais da contemporaneidade: a difamação da honra era um deles.
Foi o que ocorreu com D. Lourenço de Almeida, governador da capitania de Minas Gerais de 1721 a 1732. Ele entrou para a história por ter ocultado de Portugal, durante quatro anos, a descoberta de diamantes em Serro do Frio (atual Serro). O tempo foi suficiente para iniciar a exploração clandestina das jazidas, o que lhe rendeu uma fortuna e, também, o ostracismo na Corte, graças à ampla circulação de papéis satíricos em Vila Rica e em Portugal, denunciando de maneira jocosa seus atos de violência e corrupção.
Esses papeis são o objeto de análise de Adriana Romeiro em Vila Rica em Sátiras. Na obra, a pesquisadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) apresenta e analisa um conjunto documental inédito, composto por cinco textos – uma carta, um romance satírico, uma escritura condicional de liberdade, uma obra cômica e uma descrição dos ofícios fúnebres do governador.
Ao mesmo tempo em que possibilita um olhar sobre a cultura política daquele tempo, colocando em xeque o consenso entre historiadores de que o conceito de corrupção não se aplica à Idade Moderna, o livro ilumina continuidades, especialmente no que diz respeito à discrepância entre o que diz a lei e práticas amplamente conhecidas na atualidade, como a apropriação indevida de bens públicos e o favorecimento de parentes e amigos.
Leia, a seguir, a entrevista que Adriana Romeiro concedeu à Editora da Unicamp:
Editora da Unicamp – No livro, a senhora conta que essas sátiras permaneceram praticamente desconhecidas durante 250 anos, guardadas no Arquivo Geral da Biblioteca da Universidade de Coimbra. Por que esses documentos despertaram seu interesse e como foi o trabalho de pesquisa com eles?
Adriana Romeiro – Descobri esses papéis satíricos por volta de 2000, graças ao livro Fontes primárias para a história de Minas Gerais em Portugal, no qual o professor Caio Boschi [da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais] faz referência a esse material. Na época, eu realizava uma pesquisa sobre o envolvimento do governador D. Lourenço de Almeida com o contrabando de diamantes.
Estudei as sátiras durante quase 14 anos, em meio a outros projetos. Em razão das particularidades do gênero e das informações contidas nos documentos, tive que mergulhar fundo na vida política de Minas Gerais nas primeiras décadas do século XVIII. Uma parte considerável do meu trabalho foi testar a veracidade das acusações feitas contra o governador, buscando nos arquivos as evidências que as comprovariam – ou não.
Há uma desconfiança a respeito da sátira como fonte para o historiador. Por ser um texto submetido às normas da retórica, ela pouco se prestaria à apreensão de um dado contexto, uma vez que se limita a reproduzir tópicas consagradas pela tradição. Mas foi uma surpresa descobrir que, de modo geral, as sátiras remetem a episódios concretos, que dizem muito sobre a atuação do governador e seu envolvimento em atividades ilícitas.
Editora da Unicamp – O que essa documentação nos revela sobre aquele contexto político, social e cultural?
Adriana Romeiro - Os papéis circularam em forma de panfletos manuscritos com o objetivo de expressar a insatisfação e o descontentamento diante do governo de D. Lourenço de Almeida. São importantes porque nos revelam uma característica da cultura política daquele tempo enraizada numa tradição ibérica que remontava, pelo menos, à Idade Média.
As denúncias contidas nas sátiras permitem pensar no enraizamento da corrupção na sociedade colonial e também na existência de valores políticos como o repúdio à cobiça, a exigência de uma política pautada pelo bem comum e não por interesses de natureza econômica. Elas revelam, assim, os preceitos mais fundamentais da cultura política do seu tempo, apontando que a corrupção já era tida como um problema a ser superado.
Editora da Unicamp - Qual foi o efeito gerado pela circulação das sátiras? D. Lourenço chegou a ser investigado e/ou punido pelos atos denunciados?
Adriana Romeiro – Havia mecanismos de investigação e punição previstos pela legislação portuguesa. Ao mesmo tempo, tratava-se de uma sociedade em que as redes clientelares tinham um peso decisivo. D. Lourenço de Almeida pertencia à nobreza e sua família frequentava os círculos políticos da monarquia portuguesa. Sua punição pela via legal causaria escândalo e perplexidade.
A Coroa portuguesa optou por puni-lo de forma discreta e “informal”. Depois de ter passado por Minas Gerais, ele nunca mais desempenhou cargo na administração portuguesa. Sofreu uma espécie de ostracismo, tendo sido afastado da Corte e privado de receber algum tipo de recompensa por seus serviços prestados aqui em Minas.
Editora da Unicamp – É possível dizer, então, que a difamação funcionava como um eficiente mecanismo de denúncia naquele contexto histórico?
Adriana Romeiro – No Antigo Regime, o bem mais precioso da nobreza consistia na reputação, isto é, na fama pública. Ter o nome enxovalhado em praça pública era uma forma de desonra e humilhação.
Ao chegar a Portugal, D. Lourenço passou a ser visto como um governante venal e ambicioso, que só buscava o enriquecimento ilícito. Ao final da vida, quando redige o próprio testamento, ele se refere ao dano que esta imagem causou a toda a sua família. Eu diria que as sátiras conseguiram impor a sua versão dos fatos, prejudicando seriamente o governador, sobretudo nas suas relações com o rei.
Editora da Unicamp – Que aspectos da sociedade desconhecidos daquela sociedade essas sátiras ajudam a iluminar aspectos antes desconhecidos daquela sociedade?
Adriana Romeiro - Elas abrem uma janela para a cultura política da Época Moderna. Em meu livro, procuro mostrar que elas revelam como a corrupção já era vista como um problema da política.
Há um certo consenso entre os estudiosos do Antigo Regime quanto à impossibilidade de se falar em corrupção naquele período, em razão da indistinção entre as esferas pública e privada. Ao longo da pesquisa, várias vezes ouvi de especialistas que a corrupção era um falso problema, que eu estava sendo anacrônica e que as práticas que hoje associamos à ilicitude eram socialmente aceitáveis na dinâmica política da época.
A mera existência dessas sátiras comprova o contrário, pois o que elas pretendem é denunciar aquilo que entendiam por corrupção - conceito, aliás, bastante presente na cultura política da época. Não só havia um conceito bem consolidado sobre a natureza do bom governo, como também as pessoas estavam dispostas a exigir isso dos governantes, sob pena de serem alvos da difamação pública. E esta constatação me levou a escrever um outro livro, Corrupção e poder no Brasil - uma história (Editora Autêntica).
Editora da Unicamp - O que a trajetória política de D. Lourenço, tal como retratada nas sátiras, nos diz do Brasil Colônia? É possível dizer que, de alguma maneira, ela é típica – no sentido de que ilustra a maneira como se organizava o campo da política, como se governava, como era o relacionamento entre governantes e governados?
Adriana Romeiro - D. Lourenço não foi a exceção, mas a regra. Sua trajetória nos mostra como os governantes usavam o próprio cargo como meio de enriquecimento pessoal, violentando as regras do bom governo. E isso ocorria porque o Brasil era visto como terra de oportunidades, tanto para os portugueses pobres quanto para as autoridades da administração. Predominava então um olhar predatório sobre o país, a ideia de que ele se prestava à espoliação imediata.
Para D. Lourenço, o cargo de governador abria as possibilidades de amealhar uma fortuna que, dificilmente, ele conseguiria em terras portuguesas. E para alcançar este objetivo, as autoridades não hesitavam em se envolver em atividades ilícitas, como o contrabando.
Apesar de a legislação portuguesa proibir a participação nos negócios coloniais, esses indivíduos possuíam terras, escravos, engenhos de açúcar, minerais. Alguns eram também negociantes de escravos e de pedras preciosas.
Para eles, o Brasil era um negócio, uma forma bem lucrativa de ganhar dinheiro. É interessante como essa visão ainda está presente em nossa classe política.
Editora da Unicamp - É possível estabelecer relações entre o que vivemos hoje e os fatos relatados nas sátiras?
Adriana Romeiro - Naquela época, o conceito de corrupção estava associado à ideia de doença e deterioração do corpo político, concebido em analogia ao corpo humano. Era um problema moral, de foro íntimo, resultante dos vícios dos homens e com fortes implicações na esfera política.
Ao contrário de hoje, a corrupção não designava um conjunto de práticas ilícitas, mas sim o efeito dessas práticas no corpo político. A reflexão sobre a corrupção se dava no campo da moral, uma vez que a política estava atrelada ao exercício das virtudes cristãs. Trata-se de um universo mental muito diferente do nosso.
Apesar dessas diferenças, há semelhanças. Um exemplo disso é a condenação do amor ao dinheiro e a consequente exigência da política pautada pelo bem comum e não pelo interesse pessoal. E também a censura ao favorecimento dos parentes e amigos - o que que feria mortalmente o princípio de justiça, o fundamento de toda sociedade política.
Igualmente, o respeito à coisa pública: os governantes não podem se apropriar dos bens da República, porque esses não lhes pertencem. Afinal, o rei é apenas o tutor - e não proprietário - deles. Trata-se de um conjunto de normas que visavam moralizar o ato de governar.
As fontes mostram que tais normas foram frequentemente solapadas, em nome do benefício pessoal. Nesse sentido, Vila Rica em sátiras alinha-se aos estudos que enfatizam o contraste entre a prática cotidiana e a lei. Característica que, infelizmente, ainda está presente na cultura política brasileira.
Serviço
Livro: Vila Rica em sátiras - Produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732
Autora: Adriana Romeiro
Editora da Unicamp
Páginas: 336
Preço: R$ 60
Link:
http://www.editoraunicamp.com.br/produto_detalhe.asp?id=1160