Obra faz reflexão sobre as consequências nocivas, mas também acerca da potência para a solidariedade das tecnologias digitais
Às 7h, a música suave, porém impositiva, soa ao lado da cama, emitida pelo smartphone que jaz sobre o criado mudo. Ato contínuo, o proprietário do aparelho desliga o despertador e aproveita para checar “as últimas” das redes sociais e responder aos recados registrados no aplicativo de troca de mensagens. Banho e café tomados, o personagem volta a utilizar o telefone celular para verificar, via outro aplicativo, qual o melhor percurso para chegar ao trabalho. Ainda que fictícia, a cena é bastante real para boa parte das pessoas. Cada vez mais, as tecnologias digitais permeiam o modo de vida contemporâneo, a tal ponto de exercerem controle sobre ele. Este e outros aspectos são abordados no livro Análise do Discurso Digital: sujeito, espaço, memória e arquivo, recém-lançado pela linguista Cristiane Dias, pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) da Unicamp. A obra faz uma reflexão sobre as mudanças provocadas pelo digital, que tende a transformar sujeitos em “sujeitos de dados”.
Segundo Cristiane, o livro é resultado de um conjunto de pesquisas que ela vem desenvolvendo desde a tese de doutorado, defendida em 2004 na Unicamp. “Eu me dedico a compreender o discurso digital naquilo que diz respeito aos seus efeitos na sociedade, nos modos de constituição do sujeito e da vida. Também busco entender as mudanças que vêm ocorrendo na discursividade do mundo. Há muita coisa mudando e se não nos dedicarmos a analisar essas mudanças, seremos engolidos por elas”, considera a pesquisadora.
A linguista observa que o digital não pode ser analisado somente como uma questão tecnológica, embora esta dimensão seja importante. Em outras palavras, o tema não está relacionado apenas a dispositivos que facilitam a nossa comunicação e mobilidade. “Tudo isso é muito bom, mas tem um outro lado, que é a regulação, o controle e a vigilância total dos sujeitos. Mais do que isso, tem a ver com o mapeamento dos nossos gostos, hábitos e poder aquisitivo. Através dos dispositivos digitais, nós geramos dados sobre nós mesmos o tempo todo. No livro, eu abordo esse aspecto por meio da reflexão sobre memória e sobre um sujeito de dados que viria a estremecer a estabilidade de um sujeito de direito. Nesse sentido, nós não estamos somente gerando dados; nós somos os dados”, entende Cristine.
A autora explica que a Análise do Discurso Digital não é uma subárea da Análise do Discurso, como alguns podem interpretar. Não se trata, reafirma, de um “puxadinho teórico”. “Na minha perspectiva, o digital se constitui como campo de questões para a linguagem. No livro, eu trato do discurso como objeto teórico e do discurso digital como campo a partir do qual distintos objetos de análise se formulam”. Nessa linha, a pesquisadora trabalha mais fortemente com as noções de memória, pensando a formulação de uma memória digital; de sujeito, refletindo sobre o já mencionado sujeito de dados; de arquivo, considerado como uma “memória” que tudo pode armazenar; e de mobilidade, no sentido de percursos do tempo [dos dados e das redes], que configuram o que Cristiane denomina de “conectiCidade”.
O discurso digital, prossegue a autora do livro, é um processo de produção de sentidos. Entender os efeitos desse discurso sobre os sujeitos e a sociedade é fundamental, diz, porque eles determinam trajetos, hábitos e até formas de relacionamento. Como contribuição a esse esforço de análise, Cristiane oferece os exemplos das mobilizações organizadas a partir das redes sociais, como as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, e as chamadas fake news, como são denominadas as notícias falsas que pululam nas mesmas redes sociais. “As fake news não são um fenômeno novo como muitos dizem, mas a forma como se formulam e circulam é inédita. É sabido que as fake news foram determinantes na última campanha eleitoral para a Presidência dos Estados Unidos, vencidas por Donald Trump. Também têm grande responsabilidade pela polarização política que vivemos no mundo, o Brasil em especial. Tudo isso é discurso digital, que para mim é da ordem da circulação. Ele se formula para circular e é pela circulação que se constitui”, pormenoriza.
Questionada se as pessoas têm analisado criticamente essa relação com o universo digital, a pesquisadora responde que não. Todavia, ela pondera: “É difícil estabelecer essa criticidade porque estamos falando de algo que não podemos escapar. Não fazemos mais nada sem as tecnologias digitais. Elas estão aí e vão continuar. Ainda assim, acredito que podemos produzir uma compreensão profunda dos efeitos dessas tecnologias em nossa vida. São os sujeitos que desenvolvem as tecnologias digitais, e eles as produzem com razões determinadas e dentro de relações de poder bem estabelecidas. Daí a importância da compreensão do modo de funcionamento do discurso digital a partir da perspectiva da Análise do Discurso”, pontua.
No livro, Cristiane foge da armadilha de analisar o mundo digital sob uma visão maniqueísta. “Na minha abordagem, eu procuro mostrar os efeitos nocivos, mas também a potência para a solidariedade dessas tecnologias. Elas favorecem outras formas de organização dos sujeitos na nova ordem do real que se instaura. No livro, busco produzir ferramentas teóricas justamente para compreendermos esse novo real”, esclarece. Embora escrita em linguagem acadêmica, a obra é acessível ao público leigo, “que não terá dificuldade em se reconhecer nos vários tópicos tratados”, assegura a autora.
Serviço
Título: Análise do Discurso Digital: sujeito, espaço, memória e arquivo
Autora: Cristiane Dias
Editora: Pontes
Páginas: 204
Preço sugerido: R$ 45,00