Cientista alerta para descompasso entre ciência e política e para “retrocesso gigantesco” na política ambiental
“O Brasil passa por um gigantesco retrocesso no que diz respeito à nossa política ambiental”. A opinião é do biólogo Carlos Alfredo Joly, professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp e um dos primeiros membros do Painel Multidisciplinar de Especialistas (MEP) da Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), órgão das Nações Unidas responsável por criar sínteses de conhecimento. Para Joly, referência nacional e internacional em programas de pesquisa em biodiversidade, há um descompasso entre os avanços do conhecimento científico e as decisões políticas do governo.
Engajado em colocar a pesquisa científica como base para a tomada de decisão, Joly vai direto aos exemplos para fundamentar sua opinião, entre os quais o recente julgamento do Novo Código Florestal e a ausência do Itamaraty na 6a. Plenária da IPBES.
Com larga experiência na interface ciência e política, o cientista alerta para os riscos da apropriação política indevida dos espaços destinados à comunidade científica. Joly defende a construção de uma agenda política transetorial, integrada à política econômica, como caminho para avançar na conservação da biodiversidade e na qualidade de vida no país. Prega também a necessidade – urgente – de mudanças nos hábitos de consumo individuais.
Na entrevista que segue, Joly avalia os resultados dos recém-aprovados relatórios da IPBES e analisa os avanços e retrocessos da política de preservação da biodiversidade no país.
Jornal da Unicamp – No dia 24 de março, a Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos – IPBES, da ONU, aprovou, na Colômbia, o Diagnóstico Regional das Américas. Quais os resultados que o sr. considera mais relevantes para o país?
Carlos Joly – Esta foi a primeira vez que pudemos avaliar a ação sinergética entre os vários vetores que destroem a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, em escalas nacional e continental. Ficou muito clara também a relação entre biodiversidade/serviços ecossistêmicos e a qualidade de vida das pessoas, área na qual até o momento tínhamos poucas informações, e estas eram, na sua grande maioria, fracionadas, pois apareciam em estudo de caso.
Outro ponto a destacar é que a pegada ecológica foi calculada para o continente como um todo, chegando ao resultado de 25% da pegada global, pois este era o objetivo deste diagnóstico. Mas, desta pegada continental, a América do Norte representa mais de 2/3, enquanto os demais países têm pegadas proporcionalmente menores. Isto ressalta a importância de os países tomarem este Diagnóstico Regional como base para fazerem seus Diagnósticos Nacionais, como a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, a BPBES, está fazendo para o Brasil.
JU – Houve também o Diagnóstico sobre Degradação e Restauração do Uso da Terra que também foi aprovado na 6ª Plenária da IPBES. O que interessa para o Brasil?
Joly – O Diagnóstico tem um foco muito forte na degradação, e fala menos de restauração. Degradação está presente em todos os biomas e regiões brasileiras, mas é mais intensa em áreas onde a ocupação humana é mais antiga, como é o caso da Mata Atlântica. O Brasil possui 200 milhões de hectares de áreas degradadas, segundo dados do Departamento de Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Noventa por cento do compromisso do Brasil no Acordo do Clima de Paris depende de restauração e não temos uma política que monitore onde e quanto está sendo ou já foi restaurado. Temos boas iniciativas como o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, mas é preciso saber exatamente o que está sendo feito.
JU – Em quais pontos o Brasil precisa avançar para incorporar estes resultados dos diagnósticos da IPBES?
Joly – Para avançar e conseguir de fato incorporar estes resultados, a política ambiental precisa sair do gueto setorial, que geralmente envolve apenas os ministérios do Meio Ambiente e da Ciência, Tecnologia e Inovação, para se tornar uma política transetorial integrada à política econômica. Precisamos ter interlocutores nos ministérios do Planejamento e da Fazenda, para aos poucos mudar o modelo de desenvolvimento do país e atender os compromissos internacionais como o Objetivos do Desenvolvimento Sustentáveis das Nações Unidas [https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/].
JU – Em que medida o país já está avançado em termos de legislação? No que precisa melhorar?
Joly – Infelizmente, o Brasil passa por um gigantesco retrocesso no que diz respeito à nossa política ambiental. Além do famigerado “novo” Código Florestal que anistiou desmatadores, reduziu as Áreas de Preservação Permanente essenciais para a proteção dos recursos hídricos, e criou um comércio de compensação de áreas de Reserva Legal sem nenhum critério de equivalência ecológica. Agora temos no Congresso uma legislação que enfraquece o processo de licenciamento ambiental [lei do licenciamento ambiental - PL 3729/04] e outro que pretende retirar a Amazônia das áreas onde é proibido plantar cana-de-açúcar [PLS 626/2011].
JU – E no campo do conhecimento científico?
Joly – Sem dúvida já temos conhecimento científico para tomarmos decisões melhores em relação à biodiversidade e serviços ecossistêmicos. Os resultados do Programa Biota contribuíram para o aperfeiçoamento das políticas estaduais de meio ambiente. Mas, muitas vezes, o conhecimento científico não é levado em consideração porque há interesses econômicos e políticos que preferem ignorá-los para dar prosseguimento a uma política predatória de expansão incontrolável da fronteira agrícola. Foi o que aconteceu no caso do Código Florestal.
JU – Tanto a IPBES quanto o SBSTTA (Subsidiary Body on Scientific, Technical and Technological Advice) da Convenção da Diversidade Biológica têm papéis semelhantes no sentido de trazer evidências científicas para a tomada de decisão no campo da conservação da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos. Quais são, em sua opinião, as diferenças entre estas duas instâncias?
Joly – O SBBSTTA foi criado pela CBD em 1992, pois não havia para a biodiversidade uma instituição equivalente ao IPCC [http://www.ipcc.ch/] – que foi criado em 1988 e adotado pela Convenção de Mudanças Climáticas em 92. Infelizmente, em vez de ser ocupado por cientistas responsáveis por sintetizar o avanço do conhecimento científico para embasar decisões da CBD, ele foi ocupado por diplomatas e políticos sem a capacidade técnica para fazer estas sínteses. Consequentemente, o principal papel do SBSTTA hoje é definir a pauta da próxima COP.
A IPBES nasceu da incompetência do SBSTTA e para isso criou em sua estrutura um Painel Multidisciplinar de Experts (MEP) para coordenar a elaboração das sínteses, e a alta qualidade dos sete diagnósticos já produzidos – Polinização e Produção de Alimento, Cenários e Modelagem em Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, os quatro Diagnósticos Regionais (Américas, África, Europa/Ásia Central, Ásia/Oceania) e o de Degradação e Restauração – comprovam que isso deu certo.
Preocupa, entretanto, a grande mudança de perfil que tivemos na composição do novo MEP durante a 6ª Plenária, porque muitos dos eleitos não são cientistas e sim políticos. Corremos o risco de, em alguns anos, o MEP se tornar igual ao SBSTTA.
JU – Como tem sido a participação do Brasil na IPBES?
Joly – O Brasil teve protagonismo na criação do IPBES, trabalhou duro neste sentido em 2011 em Nairóbi e 2012 na Cidade do Panamá, desde o início esteve representado no MEP, inclusive co-coordenando os trabalhos nos primeiros anos, tem pesquisadores presentes em todas as Forças Tarefas do IPBES (Capacity Building, Indegenous and Local Knowledge, Conhecimento, Informação e Dados) e em todos os grupos de trabalho encarregados dos diagnósticos. Aliás, neste Relatório Regional, tínhamos 25 brasileiros participando. Mas, em função do desinteresse do Itamaraty pelo tema, certamente no futuro nossa participação será muito menor.
JU – Como você avalia o desempenho geral do IPBES desde a sua criação em 2012?
Joly – Neste último ano fizemos uma autoavaliação do IPBES. O secretariado, o bureau, as forças tarefas, os grupos de trabalho e os pontos focais nacionais avaliaram o desempenho do IPBES. O resultado no geral foi muito positivo, algumas coisas definitivamente funcionaram muito bem – como a Força Tarefa de Capacity Building ter criado o Programa de Young Fellows para envolver pesquisadores no início da carreira nos Diagnósticos; as reuniões conjuntas do MEP-Bureau-Secretariado, que permitiu uma integração nas ações e nos posicionamentos; e a preparação do material para as reuniões plenárias, um esforço conjunto de todos incluindo os coordenadores dos Diagnósticos. Algumas avançaram bastante, mas ainda têm que amadurecer.
JU – O sr. poderia exemplificar?
Joly – A força-tarefa em conhecimentos indígenas e locais, por exemplo, conseguiu avançar na inclusão destes conhecimentos nos diagnósticos, mas precisa avançar para além dos estudos de caso e promover uma integração de fato entre diferentes sistemas de conhecimento. Outras precisam melhorar muito – por exemplo: as indicações que os Pontos Focais [países] fazem de especialistas para cada diagnóstico são totalmente desbalanceadas em termos de expertises – a enorme maioria tem background nas áreas biológicas e precisamos de mais gente das ciências sociais, incluindo economia, e das humanidades – e também de gênero (mais de 75% são homens); e a integração com os demais atores, tanto organizações da área científica como da área ambientalista, desta grande arena que a temática biodiversidade e serviços ecossistêmicos abrange.
O importante é que esta avaliação interna serviu para convencermos as delegações presentes na IPBES-6 da necessidade de uma avaliação externa por uma organização independente, tendo sido escolhido o International Council for Science/ICSU que acabou de se fundir com o International Social Science Council (ISSC). A fusão destas duas instituições garante que o IPBES será avaliado de uma forma balanceada entre as diferentes áreas do conhecimento.
JU – Quais os principais desafios para o IPBES?
Joly – Eu acho que o principal desafio é não se tornar um novo SBBSTA. Falo isso porque fiquei decepcionado com a composição do novo MEP, melhoraram a participação feminina (agora 36% são mulheres), mas continua um desbalanço em expertises e já há alguns membros que, claramente, vem da representação de seus países no SBSTTA.
Outros desafios são: a) completar os Diagnósticos do 1º Programa de Trabalho que atrasaram (Espécies Invasoras, Diversificação na forma de valorar biodiversidade e serviços ecossistêmicos); b) uso sustentável de espécies silvestres); e c) definir um 2º plano de trabalho que dê continuidade às boas iniciativas (por exemplo a força-tarefa em capacitação profissional) e foque em temas novos mas extremamente relevantes, como a volta ou expansão [de estudos] das doenças transmitidas por vetores como malária, febre amarela, dengue, zika, chicungunha, sobre os quais pouca gente se dá conta da importância dos [da relação com] serviços ecossistêmicos para o combate e o controle. Enfim, vamos acompanhar a próxima plenária da IPBES-7, que será em Paris, em abril de 2019, para acompanhar o 2º Programa de Trabalho.
JU – O que o cidadão comum pode fazer para ajudar a mudar o cenário de crise da biodiversidade, conforme atestam os diagnósticos da IPBES?
Joly – De todas as decisões da IPBES, esta é a parte mais difícil de ser implementada. O cidadão comum espera que governos, e de certa forma também a iniciativa privada, tome as providências para consertar os rumos, para estabelecer um modelo econômico mais sustentável e garantir uma vida com melhor qualidade em um ambiente mais saudável. Faz isso sem perceber que o grande protagonista é ele. Que é mudando o seu comportamento, e estimulando outros a mudarem junto, que vamos sair deste padrão fortemente consumista que está exaurindo a capacidade suporte do planeta.
Coisas simples como economizar água, economizar energia elétrica (da redução do tempo no chuveiro, do tempo de ar condicionado ligado à substituição de lâmpadas comuns por lâmpadas de led), economizar combustíveis fósseis (dar preferência para bicicleta para percorrer pequenas distâncias, usar combustíveis de fonte renováveis), não desperdiçar comida, reciclar tudo que for possível, ter uma dieta com uma menor pegada ambiental, reduzindo, por exemplo, o consumo de carne vermelha. Não utilizar corpos descartáveis e seus onipresentes canudinhos plásticos. Não exigir ter sempre o último modelo de celular, iphone, ipad ou carro, optar por aumentar a vida útil de seus utensílios.
Lógico que é preciso pressionar governos e a iniciativa privada por mudanças no nosso modelo de desenvolvimento, mas é preciso também chamar a si a responsabilidade e mudar os hábitos de vida.
QUEM É
Carlos Alfredo Joly é formado em Ciências Biológicas pela USP (1976), mestrado em Biologia Vegetal pela Unicamp (1979), PhD em Ecofisiologia Vegetal pelo Botany Department – University of St. Andrews, Escócia/GB (1982) e pós-doc pela Universität Bern, Suíça (1994). É professor do Departamento de Botânica e atua nas áreas de ecofisiologia vegetal e conservação da biodiversidade, tendo publicado mais de uma centena de trabalhos em periódicos especializados, além de formar 26 mestres e 25 doutores. Editou 14 livros, entre os quais, Biodiversidade do Estado de São Paulo: síntese do conhecimento ao final do século XX, o atlas Inventário florestal da vegetação nativa do Estado de São Paulo e Diretrizes para a Conservação e Restauração da Biodiversidade do Estado de São Paulo.
Foi um dos criadores e coordena o Programa Biota/Fapesp [http://www.biota.org.br/], e a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos – BPBES [https://www.bpbes.net.br/]. É membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), foi condecorado com a Ordem do Mérito Científico. Ganhou os prêmios Henry Ford de Iniciativa do Ano na Área de Conservação, Ambiental von Martius da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha, Muriqui da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e a Menção Honrosa do Prêmio Jovem Cientista do CNPq.