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Documentos repletos de tempos

Susana Dobal se debruça sobre parte da produção do fotógrafo piauiense Antônio Quaresma

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Edição de imagem

Susana Dobal [1]

As imagens em seguida fazem parte do livro Tempos, [2] de Antônio Quaresma, que traz uma retrospectiva do trabalho dele com fotografias de rua realizadas em diversas cidades do mundo, experimentações com fotogramas, imagens abstratas produzidas com tempo longo de exposição e ainda fotos de família que falam dele mesmo. Antônio Quaresma é um fotógrafo de Teresina, no Piauí, que, inquieto, sempre viajou mundo afora – sua inquietação se reflete também nas suas experimentações com a fotografia. As imagens do fotógrafo lambe-lambe a quem Quaresma se refere como Seu Chiquinho não são as mais representativas do trabalho dele, mas aparecem aqui porque sugerem diferentes estratégias fotográficas que estão em jogo na obra de Antônio Quaresma e na contemporaneidade de uma maneira geral, em momento de transição em que diferentes usos da fotografia convivem.

Foto: Antônio Quaresma

Foi na infância, na Praça da Bandeira, em Teresina, que o A. Quaresma primeiro conheceu o trabalho dos lambe-lambes, entre eles Seu Chiquinho, que o ensinou o processo de revelação das cópias realizadas no caixote preto ali mesmo na praça e depois lavadas na bacia, entregues ao cliente ou expostas na face externa da própria caixa. O próprio fotógrafo aparece em uma das imagens posando para Seu Chiquinho.

Foto: Antônio Quaresma

Em tempos de fotografia com o celular, as mãos envelhecidas que seguram a foto 3x4 podem evocar as que teriam segurado um daguerreotipo emoldurado do século XIX. A moldura não é rebuscada, mas o processo da fotografia analógica, tátil, além do apelo ao olfato – quem trabalhou no escuro do laboratório fotográfico certamente ainda sente o cheiro da química – trazem uma materialidade à fotografia inimaginável em tempos de asséptica tecnologia digital. Essas mãos enrugadas que o digam. O negativo, evocado na inversão de uma das imagens no livro, era refotografado para se chegar a uma imagem positiva, e o retrato era ainda retocado. Tudo feito na praça, à mão: a fotografia era ali um demorado processo manual e químico.

Foto: Antônio Quaresma

Antes, porém, na praça, alguém teria se dirigido até ali para ser fotografado e utilizar o 3 x 4 em algum documento. Para fazer funcionar a engrenagem, era preciso ir até o fotógrafo lambe-lambe, se sentar, posar, esperar pra levar a imagem na mão. Hoje o sujeito passa na roleta de algum prédio enquanto uma minúscula lente capta a pessoa de passagem para registrar sua entrada, sem pose, sem formalidade, mas com uma identidade que permite a entrada em um estabelecimento sem que se carregue nada além da complacência. Para quem ia à praça, a fotografia era um ritual que levava tempo.

Foto: Antônio Quaresma

Nas páginas seguintes seguem uma série de fotografias 3 x 4 de Antônio Quaresma ao longo das décadas. Colocadas assim lado a lado, elas fatiam o tempo em fragmentos que enquadram a transformação do fotógrafo. As identidades colecionadas nos retratos não são de outras pessoas, as diversas idades acumuladas em duas páginas são de uma pessoa só cronologicamente multifacetada – a fotografia ali reedita o tempo e traz à tona a necessidade do fotógrafo de colocar-se não apenas como observador externo à situação que registra, já que esse documento carrega uma história pessoal.

​Foto: Antônio Quaresma

Por fim, não tem cheiro nem tato na página seguinte, mas a cor dos cajus evoca uma transformação radical não só porque a fotografia ficou colorida, mas porque os cajus sangram na página, gritam sua cajuísse: a maciez, o cheiro doce, a promessa das castanhas e da cajuína, a cor viva laranja amarelada evocando cenário nordestino. Os cajus aparecem como o momento máximo da fotografia documental, eles ainda mostram que algo foi e que algo é, os cajus reluzem no ápice da aparição deles e na passagem para o reino da abstração. Além de cajus, eles dialogam, pela acumulação na página, com as fatias do tempo acumuladas nos 3 x 4 anteriores e, pela presença de elementos da natureza nas páginas seguintes, com as experimentações com os fotogramas posteriores. Além de registro, a fotografia é também metáfora e, dali pra frente a natureza reaparece no livro, mas no preto e branco de fotogramas, ou em cores digitalizadas e artificiais. A natureza que aparecerá em fotogramas na obra de Antônio Quaresma será simulação cada vez mais distante da coisa fotografada, porém não menos efetiva na sua capacidade de evocar um mundo impossivelmente natural.

​Foto: Antônio Quaresma [Click e arraste para mover] ​

O termo lambe-lambe ganha, então, uma inusitada materialidade. Houve um tempo que começou na história da fotografia com um olhar surpreso de poder registrar a cor, por exemplo, de pêssegos aveludados fotografados em autocromos (1912) – um tempo que ecoa aqui em cajus tropicais, e igualmente sensuais. Houve então um tempo em que a fotografia lambia o mundo e ele deixava sua marca na folha plana de papel. Talvez tenha sido por um sensato pudor que não se pensou nessa metáfora quando ainda se enfatizava o índice para falar de uma fotografia em contiguidade com o mundo. O desafio agora tornou-se outro: fazer os cajus reaparecerem quando o processo analógico dos lambe-lambes está em extinção. A fotografia tornou-se, assim, mecanismo que tem que reinventar suas estratégias. Uma página depois da outra é uma das maneiras de modular o sentido das imagens que se contaminam com a vizinhança com outras imagens – Robert Frank já sabia bem disso no seu livro The Americans (1957). Fotogramas são uma técnica ainda mais antiga, mas agora eles convocam o mundo a falar para além de experimentações abstratas: a natureza aparece em preto e branco, e bem distante de um registro da paisagem. A bagagem histórica da escrita fotográfica pipoca em um só tempo e assim convivem o álbum de família, o lambe-lambe, o 3 x 4, a fotografia de rua, a fotografia colorida, o fotograma, as experimentações com a fotografia digital. O documento, não mais isento de quem fala, adquiriu as marcas de um sujeito exposto e revela, ainda, as mais diversas escritas.

​Foto: Antônio Quaresma


​Foto: Antônio Quaresma


​Foto: Antônio Quaresma

 

 


 

[1] Susana Dobal é professora associada da Universidade de Brasília (UnB), com doutorado em História da Arte/City University of New York (2003), pós-doutorado na Université Paris 8 (2009) e na Aix-Marseille Université (AMU 2014). Foi professora convidada na École des Hautes Études en Sciences Sociales entre 1999 e 2001. Publicou o livro Peter Greenway and the Baroque: writing puzzles with images (Lambert,2010). 

[2] Antônio Quaresma, Tempos. Teresina, Nova Aliança, 2017.

 

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Imagem de capa JU-online
Foto Antônio Quaresma | Reprodução

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