Sobreviventes de eventos neurológicos recuperam a linguagem em Projeto do Centro de Convivência de Afásicos
Acidente de percurso. Expressão popular, porém adequada para quem vê a trajetória interrompida repentinamente por eventos neurológicos graves. Esta é a realidade de Roberto Rezende, 28 anos, Gabriela Silva, 21, Ana Teresa da Silva e Roberto Xavier, ambos com 63 anos, que aos poucos recuperam a linguagem em encontros semanais do projeto “Centro de Convivência de Afásicos: para além dos espaços da Universidade (CCA)”: o trabalho com a linguagem por uma equipe multidisciplinar. O projeto existe desde 2006, sob coordenação da professora Rosana do Carmo Novaes, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL).
O projeto é um dos frutos do CCA, criado há 30 anos pela professora Maria Irma Hadler Coudry (Maza), em parceria com a Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, após a publicação do Diário de Narciso: discurso e afasia, livro derivado de sua tese de doutorado. Desde então, Rosana e outros linguistas formados pela Unicamp dão continuidade ao acompanhamento de pacientes com afasia. As notícias de criação de projetos inspirados no CCA partem de diferentes lugares do Brasil, onde há ex-alunos de Maza. “O objetivo do Diário de Narciso é o estudo discursivo das afasias. Acompanhei três pacientes afásicos e fui estudando a linguagem de cada um deles. Isso há 30 anos. Hoje, o CCA ainda comunga dos mesmos princípios do livro, que é a questão do sujeito da linguagem, do cérebro como construto social da linguagem. Os princípios iniciais do diário foram extensivos à fundação do CCA, por iniciativa do IEL e da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp”, explica Maza. O trabalho foi iniciado em parceria com o Departamento de Neurologia da FCM.
A expectativa das professoras e de outras pessoas que passaram e atuam no CCA é de que mais pessoas possam contar histórias como a de Roberto Xavier. Desde 2006, o técnico em mecânica escolhe caminhar 40 minutos para chegar ao prédio do IEL, onde funciona o centro. Disciplinado, recusa qualquer compromisso às terças-feiras, dia reservado aos encontros do grupo. Lá se vão 12 anos, mas se depender de sua vontade e da “política” de participação no projeto, suas caminhadas durarão muito mais tempo. “Não temos conceito de alta. Para eles, o projeto é tão importante que acabam ficando”, reforça Rosana. As atividades complementam o tratamento médico, o qual Xavier também segue à risca.
Um dos segredos para a melhora do quadro da afasia, além da perseverança, é ter paciência para ouvir e acompanhar o paciente. Uma palavra pode durar 20 minutos, segundo a aluna de doutorado em neurolinguística Larissa Mazuchelli. Diante disso, o grupo envolve os parentes e os cuidadores em várias atividades.
Se depender de Aparecida da Silva, de Sumaré (São Paulo), acompanhar a melhora da filha Gabriela não é nenhum esforço. O trajeto de Sumaré à Unicamp é feito com transporte da prefeitura da cidade onde residem. A estudante precisou abandonar o curso de Odontologia aos 21 anos ao sofrer um AVC, mas com a recuperação da linguagem, a família já conversa sobre um novo curso de graduação. “Eles fazem de tudo para estar aqui. Eles pedem relatório, conseguem ambulância. Hoje, teve um que chegou às 6 da manhã para não perder hora. A acompanhante de uma das senhoras me relatou que ela passou as férias triste, mal-humorada e de uma semana para cá, ela começou a recuperar o ânimo, a vontade de vir para interagir.”
De acordo com Rosana, entre os eventos que podem provocar afasia estão traumatismo craniano, acidentes isquêmicos ou hemorrágicos (os AVCs ou derrames), presença de aneurismas etc. A chegada de pacientes jovens como Roberto Rezende e Gabriela chama a atenção de Rosana e do grupo. “Ela melhorou muito. Foi muito difícil, mas graças a pessoas que nos ajudam e ao CCA, estamos caminhando”, diz Aparecida.
Rosana conheceu o CCA durante a graduação, em sua instalação inicial, em uma sala de aula. Viu a transformação do centro num espaço capaz de acolher mais famílias, algumas vindas de São Sebastião do Paraíso, Minas Gerais, que saíam de madrugada para chegar aos encontros. “Hoje, temos pessoas de Campinas, Valinhos, Hortolândia, Sumaré”. Assim, as histórias bem-sucedidas de famílias como a do maquinista aposentado Orlando Donizetti Clemente, de Valinhos, podem ser contadas. Imediatamente depois do susto com o AVC sofrido pela esposa Ana Teresa da Silva, ele decidiu participar de perto do processo de recuperação da linguagem. Assim como Xavier, as terças-feiras são sagradas para o casal. “Há 30 anos, ela teve uma trombose e, depois de cinco anos, um AVC. Foi muito difícil, mas já melhorou 80%. Tive de procurar as amigas do tempo de solteira porque preciso reativar a memória dela.” A tudo isto, Teresa responde: “Obrigado.”
Cotidiano
Gestos simples, que passam despercebidos por quem, no dia a dia, toma rapidamente o café da manhã, mal almoça e pouco se reúne com a família e amigos, são seguidos de um largo sorriso na expressão de Ana Teresa e outras pessoas que se veem novamente incluídas no convívio social. “Café, bolo, iogurte, Jéssica (nome da filha), Matheus (genro), Orlando, obrigado”. O brilho nos olhos de Teresa ao pronunciar estas palavras, estimulada pela professora Rosana, mostra o significado de poder voltar se comunicar.
Para Xavier e Clemente, as atividades inspiradas no cotidiano são tão importantes quanto as visitas a museus e as viagens a cidades da região de Campinas com o grupo de Rosana. O fato de poder estar a mais de 40 minutos de casa é motivo de alegria para Xavier. Segundo Rosana, as experiências fora do CCA são bem-sucedidas porque é comum as pessoas com afasia saírem de casa somente para o CCA ou para irem ao consultório médico. “Nós temos casos de pessoas, por exemplo, que estão vindo de Uber, pois os filhos não estão conseguindo trazer”, afirma Rosana.
Diante disso, tomar café da manhã juntos, preparar salada de frutas, assistir a um vídeo sobre a importância da água está muito além de um evento social. “À medida que fomos atendendo, percebemos que precisávamos mais que material. Por isso, meu projeto é mais voltado para as próprias atividades do grupo. Procuramos trazer para as atividades do CCA tudo aquilo que é parte da vivência cotidiana. Hoje (dia da reportagem), por exemplo, a atividade principal é a exibição de um vídeo sobre a importância da água para a saúde, já que comemoramos o Dia Mundial da Água”, explica Rosana.
Extensão
Para Rosana, a experiência na extensão alimenta pesquisa e ensino. Ela explica que, muitas vezes, alunos saem da universidade sem ter tido esta experiência. “Este tipo de atividade da extensão comunitária é o lugar que mais pode dar retorno ao aluno. A extensão alimenta a pesquisa em neurolinguística com dados sobre as afasias e o desenvolvimento da linguagem que são produzidos aqui.”
Segundo a professora, o projeto já envolveu alunos de artes, fonoaudiologia, letras, linguística, computação, estagiários da Colômbia e do Chile. Ela enfatiza que mesmo que não trabalhem com afasia, eles levarão o aprendizado do CCA para qualquer área de atuação. “O que aprendem aqui, essa maneira de lidar com os casos de linguagem, levarão para a vida toda. Mesmo os de letras e linguística, que não serão clínicos, levarão questões de ética, comportamento humano, solidariedade que farão toda a diferença, seja na sala de aula, na clínica, onde quer que estejam atuando.”
O material originado de sessões gravadas, episódios transcritos e análises dá origem a um número imensurável de teses, dissertações, trabalhos científicos na área de neurolinguística. “Acho que é o lugar que a gente mais aprende para se desenvolver na formação. O projeto de extensão é importante porque podemos dar este retorno para a comunidade. Sem o PEC, não teríamos condições de desenvolver o trabalho que desenvolvemos hoje.”
Sujeitos da linguagem
Desde o terceiro ano da graduação, em 2007, Larissa integra o grupo de Rosana. Inspirada por Maza, ficou encantada e se propôs a conhecer melhor as dificuldades dos pacientes, de onde chegavam, como poderiam driblar as dificuldades. Hoje, no doutorado, sabe exatamente como a vida pode mudar duas vezes, se a família buscar ajuda também na neurolinguística. “Se a gente pensa na condição do afásico. É um acontecimento, um evento neurológico que muda sua vida do dia para a noite. Você pode acordar afásico. Não precisa de uma doença longa. E isso muda muito a vida deles. Essa mudança também é social porque eles acabam sendo silenciados. Precisam de alguém que tenha interesse em ouvi-los, que saiba ouvi-los, que os ajude a driblar estas dificuldades. Então, acho que este lugar é fundamental porque é um dos poucos lugares em que essas pessoas podem reaprender ou aprender a lidar com estas dificuldades.”
Entre as muitas histórias que já acompanhou, Larissa encerra com uma: “A gente tem histórias maravilhosas como de uma participante que cuida dos pais doentes. Ela os leva para o hospital, mesmo com toda a dificuldade que tem por conta da afasia. Este é o lugar que dá força para eles continuarem vivendo. Eles continuam sendo sujeitos da linguagem. A gente gostaria que tivesse mais lugares como este porque a gente sabe que é grande o número de pessoas que poderiam ter este lugar de acolhimento, de aprender a driblar estas dificuldades, seja com gesto ou outros recursos alternativos.”
Mais sobre o projeto: