Ana Maria Mauad analisa imagem icônica para mostrar como a fotografia é importante meio de representação social
Um dos poucos registros em daguerreótipo de uma manifestação pública que se tem conhecimento foi o do movimento cartista inglês, produzido em 10 de abril de 1848, por K.E. Kilburn, intitulado: The Great Meeting on Kennington Common. [1] Um daguerreotipo de dimensões médias (17x12 cm), com uma rara característica: a aplicação de cor sob a sua superfície. Nele vemos em plano central, um coreto onde os líderes se apresentam, circundados por uma multidão que assiste impassível aos discursos, ao fundo uma edificação cuja chaminé remonta à iconografia da segunda revolução industrial no XIX. No primeiro plano da imagem, pode-se observar com detalhe o contorno das silhuetas de homens, mulheres e poucas crianças, vestidos com trajes próprios para uma primavera fria, carruagens, animais de transporte; nos planos seguintes, impressiona o detalhamento da imagem, cuja boa definição das linhas e contrastes, nos permite reconhecer os pequenos detalhes de uma grande multidão, até chegar ao majestoso edifício da fábrica que serve de moldura ao evento.
Uma foto-ícone de uma situação política, por reunir um conjunto importante de referências históricas sobre o movimento operário inglês e figurá-las com apoio do imaginário fabril do século XIX. Além disso, revela a rara qualidade do operariado inglês: sua atenção. Observa-se que para o tempo de captação da imagem exigido na época, não menos que 65 segundos, a permanência da multidão na praça foi massiva com total adesão à causa; há somente alguns espaços vazios e alguns ‘fantasmas’ que surgem em meio a multidão, por conta do trânsito de pessoas durante a tomada da imagem. No entanto, para se dimensionar o valor político dessa imagem, não basta limitar-se a uma análise das representações visuais nela contidas, é fundamental recuperar, se possível, partes da sua biografia, ao menos as fundamentais: a sua origem e o seu destino final.
Do autor da imagem, K.E. Kilburn, sabemos pouco, que foi um fotógrafo inglês e atuou em Londres entre 1846-1865, período em que a técnica do daguerreotipo já estava amplamente difundida em vários países, possibilitando a abertura de estúdios fotográficos que se dedicavam majoritariamente à produção de retratos. Entretanto, Kilburn arriscou levar seu pesado equipamento para as cercanias do sul de Londres e registrar no dia 10 de abril de 1848, uma das importantes manifestações cartistas.
O tema central da foto, o movimento cartista foi um movimento voltado para a reivindicação de reformas políticas e sociais no Reino Unido, entre 1838 e 1850. Seu nome teve origem no manifesto de 1838 intitulado a Carta do Povo, onde se propagavam ideais fundamentalmente democráticos, dentre eles o voto secreto e o sufrágio universal. O movimento cartista é considerado pela literatura especializada como possivelmente o primeiro movimento operário de massa da classe trabalhadora, com forte impacto político e liderança reconhecida.
Em reação ao local da manifestação, Kennington Common, sabe-se que durante o século XVIII foi um importante campo de críquete, que dividia com as execuções públicas o espaço comunitário. Os jogos terminaram no XVIII, mas as execuções se estenderam até 1800. Durante a primeira metade do século XIX Kennington Common tornou-se palco de manifestações políticas e eventos populares de diferentes tipos, dentre os quais se inclui a manifestação cartista de 1848. Depois desta, o espaço foi cercado e passou a se denominar Kennington Park, passando a ser sustentado e tutelado pela realeza britânica.
Para se descobrir o destino final da imagem, na legenda que a companha a sua publicação na obra de Rosenblum, identifica-se que a imagem integra a coleção Royal Library, Windsor Castle, England, e que foi reproduzida com a autorização da Sua Majestade a Rainha Elizabeth II. Essa breve biografia da imagem e do seu entorno, permite apresentar alguns aspectos interessantes de uma história visual do político ou uma história política do visível: o primeiro deles é a importância do movimento cartista que mobilizou o deslocamento do fotógrafo Kilburn e o projetou nos anais da história da fotografia; a segunda é a força da liderança cartista em mobilizar em seus discursos uma massa significativa de participantes que, se não foram capturados na sua mais viva manifestação de apoio, garantiram a sua entrada na história da classe operária pela sua simples presença atenta; terceiro é a importância dos espaços públicos para a manifestação popular e o perigo que isso representava aos poderes instituídos, que fica evidente na passagem de Kennington Common para Kennington Park, depois do Meeting de 1848; por fim, mas não menos importante, o fato de que a memória do movimento operário e da classe trabalhadora estar depositada num arquivo real e ser publicada, somente, com autorização da rainha.
Enfim, tanto a descoberta do daguerreótipo quanto os seus possíveis usos são fatos políticos de uma história que não se conta por eventos, mas que se elabora por problemas. A relação entre imagem fotográfica e política, apresentada acima, está na base da condição histórica do dispositivo fotográfico, como um importante meio de representação social, e da fotografia como prática de produção de sentido social.
Ana Maria Mauad é professora titular do Departamento de História, pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, desde 1992, do CNPq desde 1996. Autora do livro "Poses e Flagrantes: ensaios sobre História e fotografias" (Eduff, 2008) e organizadora da obra "Fotograficamente Rio, a cidade e seus temas" (FAPERJ/PPGH/LABHOI, 2016). Atualmente na University of Cambridge como bolsista Celso Furtado Visiting Scholar.
[1] Esta imagem está localizada no livro: Rosenblum, N. A World History of Photography, New York: Abbeville Press, 1984, p.282.
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