Imagem fundo branco com escrita a esquerda "Vozes e silenciamentos em Mariana. Crime ou desastre ambiental?", no lado direito mapa com a extensão do desastre.

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Viagem ao epicentro

Equipe multidisciplinar do Labjor visita o local da tragédia; nesta primeira parte do capítulo, os relatos de Adriana Menezes

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Sete meses após o derramamento de rejeitos da mineradora Samarco, uma equipe multidisciplinar de quatro pesquisadores e estudantes do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Unicamp, viajou de Campinas (SP) a Belo Horizonte (MG), e depois até Mariana (MG), de ônibus, para ver e ouvir dos próprios protagonistas da história o que mudou na cidade, quais as lembranças e o que ainda estava por ser feito em favor das vítimas, da cidade e do meio ambiente. Nos três dias que permaneceram no local, de 2 a 4 de junho de 2016, o grupo realizou mais de 20 entrevistas entre pesquisadores, professores, moradores, atingidos diretos dos subdistritos, voluntários e autoridades - outras entrevistas complementares foram feitas após a viagem. A experiência permitiu que os integrantes do grupo, no papel de repórteres, descobrissem não apenas como pensam os marianenses, mas também os conflitos decorrentes da tragédia. Ouviram vozes até então abafadas; e pontos de vista até aquele momento desconsiderados. A rica vivência estimulou o grupo a fazer uma reportagem de cinco páginas publicada na edição nº 662 do Jornal da Unicamp, em julho de 2016. O capítulo a seguir traz o relato do que viram e ouviram em Mariana.

 

As primeiras impressões

Chove em Mariana na manhã do dia 2 de junho de 2016, sete meses após o rompimento da barragem de Fundão. Nas ruas de paralelepípedos não existe lama, para surpresa dos quatro visitantes que querem saber como vivem os marianenses. Também não há trânsito nem transeunte. As portas do comércio estão quase todas fechadas e não se vê habitante ou visitante naquela quinta-feira chuvosa. A recepcionista do hotel conversa em meio tom. Fala pouco, mas é uma voz que desabafa quando perguntada sobre a tragédia; pede, no entanto, para não se identificar. O impacto que a fala causa no grupo dá início à jornada pelo epicentro da tragédia. A recepcionista defende a volta da Samarco (empresa responsável pela barragem rompida) e fala das vítimas diretas da lama como se fossem elas as responsáveis pela queda no turismo e no comércio local. Não há constrangimento no seu discurso sobre os moradores dos subdistritos de Mariana que perderam casas, amigos e familiares. A opinião é segura e expõe o conflito que não é possível enxergar à distância.

Ao recordar os primeiros dias após o rompimento da barragem, a recepcionista descreve seu trabalho voluntário na triagem dos donativos que chegaram de todo o Brasil. Foram cerca de 300 mil litros de água e muitas toneladas de roupas e alimentos. Conta que, um mês e meio depois, foi necessário o município pedir que não enviassem mais doações, por excesso de volume. Em contrapartida, pilhas de objetos foram incinerados devido ao mau estado, alguns sujos ou sem condições de uso. Protesta contra a cobertura da imprensa, por passar, via de regra, uma ideia errada para todo o Brasil de que a cidade de Mariana estava soterrada, quando na realidade os subdistritos atingidos ficam distantes da área urbana e turística.

A algumas quadras de distância, uma segunda recepcionista de diferente hotel expressa revolta. Fala sobre a queda de ocupação dos hotéis e do movimento de turistas desde o rompimento da barragem. Considera injusto que os atingidos dos subdistritos morem hoje em casas ou apartamentos alugados pela Samarco e recebam ajuda de custo mensal, enquanto os demais moradores da cidade, que sofrem os efeitos da lama indiretamente, não recebem nenhum tipo de ressarcimento. “Eles nunca tiveram tanto dinheiro na vida. Para eles foi muito bom. Quem é que vai querer voltar pra roça?”, fala a respeito dos desabrigados dos subdistritos. “Muitos tinham uma TV velha, agora têm TV de LED”, completa.

No depoimento, a recepcionista diz ainda que a Samarco sabia mais sobre os subdistritos do que a própria prefeitura. De acordo com a assessora de imprensa da prefeitura, Kíria Ribeiro, cerca de R$ 1,25 milhão em dinheiro também foram doados anonimamente, dos quais R$ 800 mil já haviam sido repassados às vítimas dos subdistritos que ficaram desabrigadas.

Foto: UFOP
Universidade Federal de Ouro Preto – Campus Mariana | Foto: Tássia Biazon

A falta de vínculos que já existia entre a cidade e seus distritos e subdistritos fica evidente, mas diferentes dinâmicas de relacionamentos surgiram em Mariana após o dia 5 de novembro de 2015. O conflito social emergiu de toda a lama derramada pelo rompimento da barragem.

Na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), professores do campus de Mariana interpretaram estas e outras diversas vozes. A recepção da Universidade para o grupo da Unicamp foi calorosa e solícita desde o início. O primeiro professor da UFOP a ser entrevistado foi Frederico Tavares, da Faculdade de Jornalismo, que foi direto ao ponto: grande parte dos moradores de Mariana não se identifica com os atingidos.

Ainda na UFOP, foram ouvidos os professores André Carvalho, Juçara Brittes, Karina Barbosa, Marta Maia e Rafael Drumond, que compartilharam suas impressões sobre a tragédia e como vivem atualmente os atingidos. Também foram entrevistados moradores de Paracatu de Baixo (subdistrito parcialmente destruído pela lama); comerciantes e autoridades locais; a professora de História das escolas de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo Silvany Diniz; líderes de movimentos sociais e outros membros da sociedade civil de Mariana, a fim de levantar os mais variados pontos de vista sobre o cenário da região.

Reprodução
Professores da UFOP (da esq. para dir.): André Carvalho, Frederico Tavares, Marta Maia e Karina Barbosa | Foto: Renan Possari

Um dos os últimos entrevistados em Mariana foi Duarte Eustáquio Gonçalves Júnior, prefeito da cidade, que naquela manhã de sábado participava, na UFOP, da Conferência das Cidades. Prontificou-se a conceder entrevista logo após a conferência.

Terminada a viagem, os quatro pesquisadores saíram de Mariana com novo olhar sobre o ocorrido: o ponto de vista da comunidade que teve sua vida mudada por consequência da tragédia.

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Prefeito de Mariana, Duarte Eustáquio Gonçalves Júnior | Foto: Tássia Biazon

 

Sem casa e sem memória

Morador de Paracatu de Baixo, subdistrito de Mariana parcialmente destruído pela lama de rejeitos da barragem de Fundão, o produtor rural Corgésius Mol Peixoto perdeu sua casa e tudo que tinha dentro dela, inclusive documentos, álbuns de família e muitas lembranças.

“Minha mulher chora até hoje pelas fotos de formatura dos filhos e tudo que se foi. Eu venho todos os dias pra cuidar do gado de leite. A lama não chegou na minha terra, mas minha casa ficou soterrada, ela fica ao lado do rio (Gualaxo do Norte). Nasci e cresci aqui, tive três filhos e minha mulher é professora da escola municipal que mudou pra cidade também. Agora a família está em Mariana, por enquanto, até a Samarco ajeitar um lugar pros moradores dos distritos.

Eu estava em casa no dia (do rompimento da barragem). Daí meu irmão ligou pra avisar. Era mais ou menos três e meia da tarde. Ele disse que ficou sabendo, mas só avisou para ficar atento. Não achei que viria forte. Minha mulher já pegou a bolsa com documentos e saiu com minha filha. Depois apareceu um helicóptero avisando que tínhamos de sair em cinco minutos. Não deu tempo de eu voltar pra casa. Perdi todos os meus documentos. Um filho já morava em Mariana, não estava em casa. O outro também estava fora.

Foto: Reprodução
O produtor rural Corgésius Mol Peixoto perdeu sua casa em Paracatu de Baixo | Foto: Adriana Menezes

No dia, teve muito voluntário pra nos levar pra Mariana. Eu fui para a casa de um irmão e depois para um hotel. Mas foi quase todo mundo para o ginásio. Eu e minha mulher já tínhamos a vida planejada. Faltava pouco para ela se aposentar na escola onde trabalha. Recomeçar a vida a esta altura não é fácil. Os filhos estão criados, mas parece que precisa começar do zero.

Vou sentir saudade de Paracatu. Sou nascido e criado aqui, ao lado de primos, vizinhos. Estão falando que vão tentar colocar todo mundo igual aqui. Acho que a Samarco está ajudando, dando assistência, dão alimento para os animais. A gente ouvia comentários sobre o risco do rompimento de uma barragem, mas eu nem sabia dessa barragem de Fundão. Eu sabia de outra maior e com mais perigo, não desta.”

 

À espera da solução

Com o guarda-chuva na mão, andando solitário pelo subdistrito Paracatu de Baixo, ‘Seu’ Paschoal interrompe a caminhada para conversar. A família está em Mariana, mas ele vai diariamente ao subdistrito para trabalhar.

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Paschoal todos os dias sai de Mariana e vai à sua propriedade em Paracatu de Baixo | Foto: Adriana Menezes

“Estou esperando. Venho todo dia aqui pra cuidar das galinhas e dos porcos. Minha família está em Mariana, 12 pessoas. Eu queria voltar pra cá, mas eles dizem que não dá mais. Era bom demais morar aqui. Nasci em Pedras, mas estava em Paracatu há 40 anos. Tenho 69 anos.

Eu lembro do dia. O helicóptero chegou pra avisar e depois veio a condução pra pegar os moradores. A lama veio arrebentando tudo. Não vi chegar. Não alcançou minha casa nem os animais, mas a casa rachou em dois lugares. A Defesa Civil tirou todos depois daquele dia. Mas eu fugi do hotel e voltei pra cá. E venho todo dia. Acho que a lama deve fazer mal pras pessoas sim, porque os pés de árvore já matou (sic) tudo. Antes eu já tinha escutado falarem que podia acontecer isso, mas ninguém imaginava que seria assim.”

 

Sirene, um minuto para se lembrar

No dia em que a barragem de Fundão se rompeu, em 5 de novembro de 2015, a sirene que supostamente existia para avisar os moradores dos distritos caso ocorresse o rompimento de alguma barragem da empresa Samarco não tocou. Para impedir que a tragédia caia no esquecimento, um grupo formado pela sociedade civil local se organizou e criou o coletivo Um Minuto de Sirene, que tem como objetivo lutar pelo direito à comunicação e à preservação da memória das comunidades que sofreram com a tragédia.

Todo dia 5 de cada mês, eles tocam a sirene e promovem um ato público em Mariana. No dia 5 de junho de 2016, organizaram uma feira com os produtores rurais atingidos pela lama nos subdistritos, onde foram vendidos produtos como queijo, geleia de pimenta biquinho, doces típicos mineiros e outras comidas produzidas pelas comunidades atingidas. Neste mesmo dia também foi lido em praça pública um manifesto escrito pelos moradores.

O rompimento da barragem para esta parcela da população vai muito além das consequências físicas, ambientais e econômicas. Ele afetou o sentimento de pertencimento de quem morava nos subdistritos e perdeu suas casas, sua rotina, seu estilo de vida e sua memória.

O coletivo Um Minuto de Sirene também criou o jornal A Sirene, pautado pelos próprios atingidos, com apoio de professores e estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e a Arquidiocese de Mariana.

“A tragédia disparou um gatilho em cada um de nós. Para mim foi o gatilho de voltar para Mariana e criar o jornal A Sirene, cujo objetivo é defender os direitos que estão sendo violados, inclusive o da comunicação. Decidimos que deveríamos lutar por tudo isso”, diz o jornalista Gustavo Nolasco, um dos integrantes e fundador do coletivo Um Minuto de Sirene e do jornal A Sirene.

A família de Nolasco é da região de Ouro Preto e Mariana. Em 2015 ele morava em Belo Horizonte, mas após o rompimento da barragem voltou para Mariana. A ideia de dar voz às vítimas com o jornal A Sirene também foi uma reação à falta de informação a respeito da tragédia e da situação dos distritos e subdistritos. Nolasco conta que a população local ficou muito incomodada com a cobertura da grande mídia que invadiu a cidade após a tragédia, tanto a nacional quanto a internacional.

A assessora de imprensa da prefeitura de Mariana, Kíria Ribeiro, lembra que meia hora depois do rompimento da barragem começou a receber ligações da imprensa do Brasil e do mundo. “Ali eu já pude sentir o que estava por vir.” Ela só conseguiu sair da prefeitura depois das 20h30 e, de lá, foi para o ginásio onde estavam sendo acolhidos os moradores atingidos. Logo começaram a chegar os jornalistas.

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A advogada Ana Cristina Maia | Foto: Tássia Biazon

Os primeiros foram os de Belo Horizonte, do jornal O Estado de Minas. “Somente à noite soubemos que não existia mais Bento Rodrigues. A solidariedade foi imediata.” A advogada Ana Cristina Maia, titular do cartório de Registro de Imóveis de Mariana e integrante-fundadora do coletivo Um Minuto de Sirene, também traz na memória o fatídico dia. Ela presidia uma reunião do Conselho de Patrimônio da cidade e estava com o celular desligado. Por volta de 17h, todos na reunião começaram a receber mensagens e alguém interrompeu para informar que uma barragem da Samarco havia se rompido.

“De repente, todos os ‘whatsapp’ ficaram loucos. Havia filhos, sobrinhos e amigos desaparecidos, teve gente que já se levantou da mesa chorando. Mas ninguém sabia ao certo o que havia acontecido.” Ana tentou falar com uma amiga professora e não conseguiu. Também ficou desesperada. Viu na TV que Bento Rodrigues estava completamente coberta.

“Saí de casa e fui para o ginásio. Fiquei até 1h30 da manhã ajudando, com voluntários e a Defesa Civil.” Devido à falta de medidas de segurança e procedimentos em caso de acidentes, a informação sobre o rompimento da barragem aconteceu no boca a boca, porque a sirene (que deveria existir) não tocou. Após a tragédia, a pergunta foi lançada: “Quem foi sua sirene?” Desta angústia coletiva e da vontade de fazer alguma coisa para ajudar, surgiu o coletivo Um Minuto de Sirene. “Mas se a Samarco não voltar a operar, vamos ter uma nova tragédia”, lança no ar a sua opinião a advogada Ana Cristina.

 


 


Adriana Vilar de Menezes - Jornalista graduada pela PUC-Campinas (1989). Mestranda em Divulgação Científica e Cultural pelo Labjor/IEL/Unicamp (2017), com ênfase em Análise do Discurso. Especialização em Jornalismo Científico pela Unicamp; em Comunicação Jornalística pela Cásper Líbero; e em Direção Jornalística pela ESPM. Foi aluna da graduação de História na Unicamp. Atuou como repórter e editora dos jornais Diário do Povo, Folha de S. Paulo e Correio Popular - nas editorias de Cultura, Cidades, Economia e Variedades. Vencedora do 4º Prêmio ABCR 2009, finalista dos prêmios IBCC de Jornalismo 2007, e FEAC 2015. Autora do livro biográfico Dalva (Editora Komedi), coautora do livro coletivo dos 20 anos do Prêmio Jovem Cientista (Fundação Roberto Marinho 2003/Labjor, organizado por Carlos Vogt), e do livro de contos infantis organizado por Ivan Santo Barbosa (ECA/USP, Cásper Líbero). Colaboradora da revista Ciência e Cultura da SBPC, e revistas eletrônicas ComCiência (Labjor/Unicamp) e Pré-Univesp. Foi bolsista da Fundepag e da Fapesp. Atuou como assessora de imprensa em empresas de tecnologia, concessão rodoviária, sindicato do comércio varejista, universidades e campanha de eleição interna institucional, entre outras áreas. Atua como repórter, editora e assessora de imprensa desde 1989. e-mail: adrianamenezesjor@gmail.com


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Foto: Reprodução

 

 

Imagem de capa JU-online
Grupo multidisciplinar em viagem a Mariana | Foto: Adriana Menezes

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