Dispositivos resultam do trabalho de 70 pesquisadores de diversas áreas, vinculados a diferentes instituições de pesquisa, entre as quais a Unicamp
Ainda que a ciência já disponha de um volume considerável de informações sobre o funcionamento do cérebro humano, muitos aspectos relacionados às funções desse órgão extremamente complexo aguardam explicações. Em todo o mundo, cientistas dedicam-se a essa tarefa, a partir de diferentes abordagens. No Brasil, pesquisas realizadas no âmbito do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), integram esse esforço. Entre as investigações do BRAINN consideradas promissoras está o desenvolvimento de sondas neurais, dispositivos com capacidade tanto de registrar como de estimular as atividades elétricas do sistema nervoso.
O BRAINN está sediado na Unicamp e conta com a colaboração de pesquisadores da Universidade, bem como de outras instituições de ensino superior e institutos de pesquisa. Atualmente, os estudos em torno das sondas neurais estão voltados para analisar, por meio de testes em modelo animal, a biocompatibilidade desses artefatos, que são microfabricados no Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), localizado em Campinas. “Os resultados dos ensaios ainda são preliminares, mas nós verificamos que a nossa sonda apresentou um desempenho superior a um dispositivo similar disponível no mercado”, afirma André Schwambach Vieira, professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.
Os testes de biocompatibilidade estão sendo realizados pela pós-doutoranda Elayne Vieira Dias, sob a supervisão do próprio André Vieira e de Fernando Cendes, docente da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e pesquisador responsável pelo BRAINN. Elayne explica como está sendo feito o trabalho: “Estamos analisando a resposta do tecido cerebral à sonda produzida no CTI, que representa um corpo estranho para o organismo. Nessa análise, fizemos a comparação com a sonda disponível comercialmente e com um eletrodo fabricado em aço inoxidável, que é uma solução mais simples”, detalha a pesquisadora.
Elayne observa que o processo de implantação dos dispositivos é invasivo, o que causa lesão no tecido cerebral. “Nós avaliamos dois pontos temporais: dois dias e 28 dias após o implante, para registrar os quadros agudo e crônico da lesão. Na primeira situação, verificamos uma reação predominante de micróglias, que são células de defesa do organismo. No segundo, a situação foi bem diferente, sendo que prevaleceu a resposta dos astrócitos, células responsáveis pela sustentação e nutrição dos neurônios. Um aspecto importante que observamos é que os astrócitos emitem prolongamentos que envolvem o dispositivo, criando uma espécie de bainha de isolamento que pode vir a prejudicar o registro dos sinais elétricos em longo prazo”, relata.
Por fim, a pós-doutoranda também constatou a perda neuronal na área em torno dos implantes, que ocorreu de forma mais pronunciada após 28 dias do procedimento. “O que nós vimos foi que a sonda comercial provoca expressiva morte celular, o que não é tão evidente em relação à sonda produzida pelo CTI e nem pelo eletrodo de inox. Para confirmar esses dados, vamos ter que fazer, numa próxima etapa, uma análise da expressão gênica e, posteriormente, iniciar os ensaios dos registros das atividades elétricas do sistema nervoso, que é o objetivo final do nosso trabalho”, adianta Elayne.
Autonomia
De acordo com Roberto Covolan, professor colaborador do Departamento de Neurologia da FCM e coordenador de Transferência de Tecnologia do BRAINN, a pesquisa em torno das sondas neurais é importante porque abre uma avenida de oportunidades para estudos relativos a implantes cerebrais em geral. “Atualmente, grupos espalhados pelo mundo têm se dedicado ao desenvolvimento de instrumentos e dispositivos para fazer implantes cerebrais, com finalidades diversas. Existem várias patologias cujos diagnóstico e tratamento contemplam esse tipo de recurso. A título de exemplo, nos Estados Unidos a FDA [Food and Drug Administration, agência responsável pelo controle de medicamentos e alimentos] já aprovou instrumentos que registram a atividade cerebral e enviam impulsos elétricos para controlar crises epiléticas ou sintomas relacionados à doença de Parkinson”, informa.
Dominar esse tipo de tecnologia, acrescenta Roberto Panepucci, pesquisador do CTI Renato Archer, pode conferir autonomia ao Brasil nesse importante campo da ciência. “Nunca é demais lembrar que as sondas utilizadas atualmente são importadas e têm um preço elevado. Produzir esse dispositivo no país significa não somente demonstrar nossa capacidade cientifica e tecnológica, mas também baratear os custos dos artefatos”, considera. Segundo ele, a tecnologia utilizada na fabricação das sondas neurais está baseada na microeletrônica.
O “corpo” do dispositivo é produzido em um polímero denominado SU-8, no qual estão inseridos eletrodos que têm a função de registrar as atividades elétricas do cérebro. “Há cerca de três anos nós iniciamos no CTI uma etapa de fabricação das sondas em larga escala, de modo a poder atender aos diversos grupos de pesquisa nacionais que se dedicam a investigar o tema. O foco da nossa atividade de pesquisa está muito ligado a dispositivos avançados que já estão em uso para fazer a medida neural, como os baseados em optogenética. A função destes é entregar luz numa dada área do cérebro e assim fazer o registro elétrico”, detalha.
Esforço multidisciplinar
Um aspecto destacado pelos pesquisadores do BRAINN é o caráter multidisciplinar da pesquisa voltada ao desenvolvimento das sondas neurais. De acordo com eles, uma área do saber não daria conta, sozinha, de responder aos diversos problemas que surgem durante as investigações. “Reunir diferentes campos da ciência num único projeto não é algo trivial. Ao contrário, é uma tarefa extremamente difícil, pois envolve a interação entre pessoas com culturas científicas e jargões próprios e óbvias limitações em relação a áreas que não estão no escopo da especialização de cada um”, pontua Roberto Panepucci, pesquisador do CTI.
A mesma opinião é manifestada pelo professor Roberto Covolan. Ele assinala que grupos multidisciplinares normalmente precisam de um bom tempo para estabelecer uma compreensão mútua sobre os problemas científicos existentes e suas possíveis soluções. “No BRAINN, nós contamos com cientistas de áreas diversas, mas com disposição para conversar. A ciência está tão avançada nas suas especialidades, que muitas vezes fica difícil promover avanços. Não raro, é na interface entre um campo do saber e outro que se encontra espaço para obter progresso”, diz.
O BRAINN
O Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN), baseado na Unicamp, reúne pesquisas nas áreas de genética, neurobiologia, farmacologia, neuroimagem, ciência da computação, robótica, física e engenharia. O objetivo das investigações é compreender os mecanismos básicos envolvidos nas manifestações da epilepsia, acidente vascular cerebral (AVC) e lesões associadas, bem como buscar métodos e tecnologias que possam ser aplicadas na prevenção, diagnóstico e tratamento das enfermidades do cérebro. Atualmente, cerca de 70 pesquisadores de diferentes universidades e institutos de pesquisa do Brasil estão envolvidos nos estudos desenvolvidos no BRAINN.