JU indaga a historiadores que passaram pelo Cecult-Unicamp: há o que comemorar?
Sancionada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea – oficialmente Lei Imperial 3.353 -, aboliu a escravidão depois de mais de três séculos de trabalho forçado no Brasil. Em maio de 2018, marco dos 130 anos da assinatura do documento, o Jornal da Unicamp entrevistou cinco historiadores que realizaram suas pesquisas de doutorado junto ao Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) da Universidade.
Referência internacional nos estudos sobre as experiências dos trabalhadores ao longo da história do Brasil, bem como sobre suas práticas e formas de expressão, o Cecult destaca-se também pela publicação da coleção Várias Histórias, que publicou, nos últimos 19 anos, 44 títulos com essa temática, que perpassa a questão da escravidão. Os historiadores entrevistados são professores de departamentos de história de universidades públicas do país, e autores de volumes da coleção que abordam a escravidão em debates atualizados na perspectiva da história social.
De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Enquanto a mortalidade de pessoas não negras diminuiu 12,2% entre 2005 e 2015, a taxa de homicídios de pessoas negras aumentou 18,2% no mesmo período. Os dados são do Atlas da Violência publicado no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A publicação reúne dados de 2015 sobre as mortes violentas no país. De acordo com outro estudo também realizado pelo Ipea, as atrocidades contra a população negra não são mera consequência socioeconômica. Descontados os efeitos de idade, sexo, escolaridade, estado civil e bairro de residência, o cidadão negro tem chances 23,5% maiores de sofrer assassinato em relação a cidadãos não negros. Se os impactos de mais de três séculos de brutalidade contra a população negra no Brasil são visíveis até hoje, fica a indagação: temos o que comemorar?
Protagonismo negro
Para a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, professora da Universidade de Brasília (UNB), o 13 de maio tem desencadeado intensas disputas de narrativas ao longo do tempo. Se, por um lado, o fim da legalidade da escravidão é um marco importante, por outro, a fragilidade crônica da cidadania para pessoas negras, já bem antes da abolição, faz com que as reflexões em torno da data não possam ser feitas em tom de simples comemorações. “O preconceito de cor, o ódio de raça, o racismo, têm figurado como elemento estruturante da sociabilidade brasileira e da formação de suas instituições”, defende.
A historiadora argumenta que o Brasil é um país em que a experiência de nacionalidade foi encaminhada mediante esforços sucessivos de subalternização e da negação das possibilidades de acesso aos direitos de mulheres e homens negros. Se por muito tempo se tentou negar as heranças nefastas do passado escravista de nossa sociedade, vivemos um momento da afirmação na produção acadêmica do protagonismo negro na luta pela liberdade, em contraponto à versão hegemonizada do 13 de maio como concessão imperial. “Uma conquista importante tem sido alcançada mediante os resultados de pesquisas que estabelecem diálogos com o passado em outros termos. Entre essas novas possibilidades, destacam-se os estudos sobre liberdade e pós-abolição”, afirma.
Ana Flávia retoma a participação importante de abolicionistas negros nas discussões do final do século XIX, que formularam projetos para o fim da escravidão e se posicionaram sobre as possibilidades de universalização da cidadania para todos os brasileiros. Figuras como Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio, Vicente de Souza, André Rebouças, entre tantos outros, refletiram a respeito das experiências da racialização e do racismo, e questionaram a viabilidade e a legitimidade de projetos de nação formulados pelas elites nacionais. “Essas informações são bastante relevantes no atual cenário, sobretudo para que possamos questionar a ideia de invisibilidade e ausência de homens e mulheres negras nas lutas políticas e institucionalizadas pelo fim da escravidão e outras agendas da cidadania no Brasil. O fato de projetos conservadores terem prevalecido sobre outros não pode ser entendido como a inexistência de outras possibilidades e dos sujeitos que a elas se dedicaram”, completa.
Estudos pós-abolição
Para Marcelo Balaban, professor do departamento de História da UNB, o 13 de maio é importante por celebrar um princípio, e reafirmar que a escravidão deve ser repudiada e combatida. No entanto, não se deve correr o risco de celebrar a data como um instante que marcou o fim da escravidão real. Em sua visão, 1888 instaurou o fim legal da instituição servil, uma vez que o trabalho escravo ainda é recorrente no país. A abolição definiu, então, o início de um novo e longo processo histórico de precarização das condições de vida e de ascensão social dos ex-cativos e seus descendentes. “Nesse sentido, a abolição da escravidão não foi um instante de reparação, ou de inclusão da população negra e mestiça no Brasil. O racismo assumiu novas formas, ganhou força e vem se reinventando desde então”, reflete o historiador. Os sentidos, conflitos e consequências desse processo recentemente vêm sendo estudados por um campo historiográfico, os estudos do pós-abolição.
Tema de sua pesquisa, o Rio de Janeiro do início do século XX viveu uma ampla reforma urbana, conhecida como “bota-abaixo”, que buscou modernizar a cidade, que deveria ser espelho para o restante da nação. Marcelo Balaban explica que parte desse processo voltou-se para os hábitos da população e para os locais nos quais a gente comum e pobre habitava: os cortiços do centro da cidade. Dessa forma, a população negra foi novamente alvo do poder público, expulsa dos cortiços, e definida como “gente pouco civilizada”, que não estava sintonizada com a ordem republicana, caminho para o progresso que se pretendia construir. “Nesse sentido, a volta do lema ‘ordem e progresso’ pelo governo ilegítimo atual ganha significado histórico forte, pois se trata de um memória histórica de exclusão e de violência contra a população pobre em geral, e a negra em particular”, pontua o historiador.
O historiador defende que a data deve, então, ser entendida como um momento de reflexão sobre a força duradoura da segregação social da população negra iniciada durante o tempo da escravidão africana e continuada, ainda que de formas variadas, até os dias de hoje. “Essa segregação é, por vezes, menos evidente socialmente, e muitas vezes explícita, como no caso recente do violento assassinato da vereadora negra Marielle Franco”, relembra.
Direitos trabalhistas
O historiador Robério Santos Souza, professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), salienta que em 1888 a maioria dos escravos já havia conquistado a liberdade, a partir de esforços próprios e muitas lutas. No entanto, naquele ano, o Brasil ainda era o último país das Américas a manter a escravidão. Ele pontua que, mesmo com o fim do regime escravista, as elites demonstravam o desejo de não abrir mão de sua política de domínio, insistiam em manter suas prerrogativas senhoriais, típicas do sistema escravista, mesmo na sociedade pós-abolição. “Isso colocava um árduo desafio para os recém-libertos: como viver em uma sociedade oficialmente sem escravidão, mas que insistia em manter condições e formas de trabalho que os faziam lembrar-se do sistema recém-abolido?”, questiona o historiador.
Para ele, isso resultou na intensificação dos conflitos em torno dos significados da liberdade e das tentativas de imposição do trabalho gratuito, e das lutas pelo direito à remuneração e condições dignas de trabalho no período pós-abolição. “Os trabalhadores estavam atentos a essa situação. Naquela época, mesmo depois de abolido o regime servil, era comum nos depararmos com movimentos grevistas e com trabalhadores denunciando as condições indignas as quais estavam submetidos e as situações de trabalho análogo à escravidão”, afirma Robério Souza.
Na visão do historiador, a abolição inaugura uma nova fase na luta por cidadania e direitos pelos trabalhadores. Isso porque a população negra passa a enfrentar outras lutas, e algumas pautas continuam na agenda política até hoje, como a reforma agrária, que era já era pautada no final do século XIX por alguns poucos abolicionistas como André Rebouças, o encarceramento e extermínio de jovens negros, e o racismo no Brasil. Afirma que em vez de promover políticas públicas, o Estado brasileiro e as elites, no pós-abolição, foram habilidosos em estruturar a sociedade em hierarquias sociorraciais, mesmo sem criar leis segregacionistas, tal qual nos Estados Unidos e na África do Sul. Esse quadro, a seu ver, ajuda a explicar a desigualdade entre negros e brancos em relação a acesso a educação e saúde, ocupações, salário e, inclusive, a maior vulnerabilidade no mercado de trabalho “Hoje, assistimos ações das elites para desmontar e esvaziar as leis trabalhistas, o que ressalta muito mais a necessidade e a importância de reflexões profundas sobre a escravidão na formação do país, bem como os projetos e os encaminhamentos levados a curso depois da abolição e os seus impactos sobre a comunidade negra brasileira”, elabora.
A desigualdade no Brasil tem cor
Ricardo Figueiredo Pirola, professor da Unicamp e pesquisador do Cecult, retoma que a Lei Áurea colocou um fim definitivo ao sistema escravista existente no Brasil, e em 13 de maio de 1888 as pessoas foram às ruas em diferentes cidades do país para comemorar o acontecimento. No momento, celebrava-se o desfecho de um longo processo de lutas em que os próprios escravizados, e também os livres abolicionistas, conduziram contra o regime escravista.
O historiador relata que se comemorava a ampliação da cidadania, já que aos escravos era vetada qualquer participação na vida político-eleitoral do país, apesar de serem por meio de seu esforço e trabalho que se geravam as riquezas da nação. “Comemorava-se a ampliação de direitos e garantias junto à Justiça, que até então prescrevia leis específicas para julgar os crimes cometidos por escravos e restringia o acesso dos mesmos aos tribunais brasileiros”, afirma. Em sua visão, os pesquisadores de hoje não têm dúvidas a respeito da importância dessa data para a história do Brasil e do seu simbolismo enquanto um desfecho de diversas batalhas travadas tanto no Parlamento nacional quanto nas senzalas espalhadas por todo o país.
O historiador pontua que, às vésperas da abolição, havia propostas, por exemplo, de se prolongar a escravidão até o começo do século XX. Os proprietários da província do Rio de Janeiro, entre outros, resistiram ao avanço do abolicionismo no país. “Seus representantes no legislativo nacional proferiram discursos inflamados contra a abolição. Também em São Paulo, que juntamente com o Rio de Janeiro e Minas Gerais eram as três províncias com maior número de escravos em 1888, a resistência senhorial contra o movimento abolicionista arrefeceu apenas depois das fugas em massa de escravos das fazendas”, salienta. Dessa forma, em sua opinião, seria um erro pensarmos a abolição como uma dádiva da princesa Isabel. Trata-se, então, de um evento complexo em que a resistência imposta pelos escravizados e a luta conduzida por livres abolicionistas tiveram papel decisivo no seu desfecho em 13 de maio de 1888.
Ele defende ainda que a desigualdade social no Brasil tem cor. “Negros e pardos, por exemplo, apresentam taxas maiores de desemprego do que a média nacional, ganham salários menores e raramente ocupam cargos de mando ou chefia em empresas. Nada disso é fortuito. É resultado de um desenrolar histórico que assentou a dominação e exclusão de grande parte da população a partir de padrões raciais”, conclui.
A capilaridade do racismo
Professora do departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Joseli Maria Nunes Mendonça defende que a data deva ser sempre comemorada. “O fato de a escravidão não ser mais uma instituição legalmente aceita em nossa sociedade não é pouca coisa”, afirma. Para ela, ainda que a abolição tenha resultado de muitas lutas travadas também pela própria população escravizada, o processo não se encerrou com a sanção da lei.
A professora destaca o combate às situações de trabalho análogas à escravidão, ainda bastante frequentes no país, e ao racismo que, em sua visão, passou a ser o principal instrumento de segregação da população negra, quando a escravidão deixa de ser a condição pela qual a discriminação se efetiva.
Para a historiadora, as pesquisas historiográficas já mostraram que a liberdade conquistada pelos negros e negras significou a possibilidade de realizar escolhas básicas para o cidadão: qual trabalho realizar, reivindicar contrapartidas justas pelo trabalho, recompor famílias separadas pelas transações de venda na escravidão, frequentar escolas, se organizar por meio de associações, se expressar em locais públicos, dentre outras. No entanto, as expectativas por autonomia e por direitos foram duramente confrontadas por uma parte da sociedade, que se beneficiava da ausência de políticas públicas e das medidas repressivas contra a população negra.
Joseli refuta o argumento das “heranças da escravidão”, e atribui o racismo dos tempos atuais fundamentalmente às políticas instauradas após a abolição. Para ela, isso se constata facilmente na força da oposição que as políticas afirmativas de reparação étnico-raciais recebem dos grupos que se pretendem hegemônicos. “Esse processo histórico instituiu o racismo como uma praga que tem em nossa sociedade uma capilaridade inimaginável. Ele é resultado de injustiças reiteradas caprichosa e perniciosamente nesses 130 anos que nos distanciam da abolição”, arremata.
PARA SABER MAIS
Saiba mais sobre as pesquisas dos historiadores nos livros da coleção Várias Histórias, publicados pela Editora da Unicamp sob a coordenação do Cecult: