Prática contribuirá para a revisão da Magna Charta Universitatum, documento europeu que estabeleceu os princípios fundamentais das escolas superiores
A Unicamp é a única instituição de ensino superior da América Latina a integrar um grupo de 12 universidades que participam de um projeto-piloto que objetiva repensar os valores contidos na Magna Charta Universitatum (MCU), documento elaborado em 1988 na Europa. A MCU, que conta atualmente com cerca de 800 signatários de 85 países, estabeleceu os princípios fundamentais das escolas superiores. Um movimento importante nesse sentido foi a realização, no último dia 15 de maio, do workshop “Valores Vivos”, que contou com a participação de membros da Administração Central e do Conselho Universitário (Consu) da Universidade.
O processo de rediscussão da MCU está sendo conduzido pelo Observatório da Magna Charta, que atua como guardião global dos valores consolidados na declaração assinada em 1988. O primeiro princípio do documento é a autonomia institucional. De acordo com Ana Maria Alves Carneiro da Silva, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) e membro do grupo responsável pelos trabalhos no âmbito da Unicamp, o objetivo do workshop é estimular a discussão sobre os valores vivenciados na Universidade, identificando percepções, dificuldades e responsabilidades de cada grupo que compõe a comunidade universitária.
Na sequência, será elaborado um relatório sobre essas primeiras reflexões, que servirá de base para um questionário online que colherá a posição de toda a comunidade universitária (estudantes, professores, pesquisadores e funcionários) sobre quais devem ser os principais valores da Unicamp. “Finalmente, em setembro, vamos apresentar um relatório final das atividades em um encontro em Salamanca, juntamente com as demais universidades participantes do projeto-piloto”, adianta a pesquisadora. Será com base no conjunto dessas reflexões que o Observatório analisará de que forma conduzirá a possível produção de uma nova versão da Magna Charta.
Ainda segundo Ana Maria, o Observatório designou embaixadores para acompanhar as discussões em cada universidade participante do projeto-piloto. No caso da Unicamp, a missão foi entregue à professora Eva Egron-Polak, ex-secretária-geral da Associação Internacional de Universidades e membro sênior do Observatório. Ela assinala que é importante discutir os valores que ditam as ações das universidades. “Em geral, essas instituições têm uma lista de valores publicadas em algum lugar. Entretanto, não é tão simples incorporar esses princípios no dia a dia”, avalia.
Esse tipo de discussão, assinala a professora Eva, tende a criar uma noção de comunidade. Assim, quando se pergunta para uma pessoa o que a Unicamp representa, ela pode responder algo como integridade ou diversidade. “A partir do compartilhamento dessas ideias é que são construídos os valores comuns à comunidade universitária. A ideia é compartilhar esses valores de modo a verificar o que a Unicamp significa dentro do campus, mas também fora dele, em termos de cidade, de país e até no plano internacional”, exemplifica.
A representante do Observatório da Magna Charta lembra que a ciência e o mundo têm mudado muito rapidamente e estão cada vez mais complexos. “Às vezes, é importante dar um passo atrás para pensar sobre essas transformações e essas complexidades a partir de um conjunto de valores. Não podemos compreender o mundo apenas em termos científicos. É preciso encontrar um equilíbrio entre ciência e valores. O objetivo desse projeto-piloto é justamente dar um passo atrás para refletir sobre essas questões tão relevantes tanto para a atual quanto para as futuras gerações”.
Os estudantes universitários, prossegue a professora Eva, serão os líderes da sociedade no futuro. Se eles não experimentarem uma educação baseada em valores, diz, dificilmente pensarão sobre esse aspecto posteriormente. “Embora o tema deva ser tratado desde a educação básica, a educação superior é um dos últimos momentos para se colocar esse ponto em discussão. Atualmente, observa-se que o sistema político brasileiro está em crise, um pouco por causa da questão dos valores. Como a universidade tem o papel importante de formar líderes, é fundamental que ela pratique uma educação baseada em valores, o que contribui para evitar esse tipo de crise”, entende.
Os embaixadores, esclarece a representante do Observatório, não interferem na discussão dos conteúdos. Ela lembra que os contextos econômicos, políticos e sociais diferem de um país para o outro, e isso precisa ser respeitado. “Nossa missão é apenas guiar o processo em relação ao formato, para que no final tenhamos informações comparáveis entre as várias universidades. O conteúdo, porém, é definido por cada universidade, levando em conta o contexto no qual está inserida”.
A professora Eva reconhece que a versão original da MCU tem um perfil marcadamente europeu, dado que foi elaborada por instituições europeias, por ocasião do 900º aniversário da Universidade de Bolonha. Entretanto, há cerca de dez anos, quando decidiu ampliar o número de signatários do documento, o Observatório constatou que precisava atualizar a declaração, de modo a diversificar os valores nela contidos. “Por isso decidimos realizar o projeto-piloto, que conta com a participação de instituições de países não europeus, como Egito, Austrália, Ilhas Maurício e Brasil. O propósito é identificar os valores que emergem dessas nações e quais devem ser consignados numa nova versão da Magna Charta”.
Pensar sobre valores, reforça a representante do Observatório, é um processo que deveria ser contínuo. Além de ser discutido em um workshop específico, pondera, o tema deveria ser trabalhado em outras situações, como na chegada de novos professores e estudantes. Questionada sobre se a diversidade e o diálogo com a sociedade são princípios que deveriam constar do documento, a professora Eva responde que sim. De acordo com ela, a diversidade é um valor importante, mas a percepção sobre ela varia de acordo com o lugar. “Nas Ilhas Maurício, por exemplo, imaginávamos que esse assunto seria um valor-chave. Todavia, a comunidade universitária considerou que o valor mais forte era construir a unidade”, relata.
A docente afirma que há diversas maneira de se pensar a diversidade, a partir de dimensões como etnia, gênero, situação socioeconômica etc. “Os europeus pensam mais na questão socioeconômica que na étnica. Entretanto, no Canadá e na Austrália a questão étnica é muito forte, dado que muitos segmentos minoritários da população, como os indígenas, estão sub-representados no ensino superior. Particularmente, penso que a diversidade deva ser um valor a ser incorporado à nova carta”, declara.
Quanto ao diálogo com a sociedade, a professora Eva entende que essa prática é um valor em si mesmo. “A recomendação do Observatório é que as discussões no contexto do projeto-piloto também envolvam representantes de fora das universidades. Nas Ilhas Maurício, não houve essa participação externa, mas há o entendimento de que as escolas de nível superior devam ter compromisso com a responsabilidade social”. A docente destacou, ainda, a importância de a Unicamp estar participando do projeto-piloto. “A Unicamp é uma instituição muito específica no contexto brasileiro. Além de ser uma escola de excelência, está comprometida com o avanço da diversidade. Nossa expectativa é que a experiência de vocês seja posteriormente disseminada com outras universidades do Brasil. É muito bom poder trabalhar com pessoas que acreditam na educação baseada em valores”.
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Veja a íntegra da Magna Charta Universitatum