Patricia Kiss escreve sobre o processo criativo do fotógrafo Otto Stupakoff
O que se sabe do trabalho de um fotógrafo? O húngaro William Klein (1928 -), no documentário Contatos, Vol.1, (2015), parte dessa indagação para sugerir que a vida de um fotógrafo corresponde a uns poucos segundos. Para justificar essa consideração, ele parte da premissa de que raramente vemos além da imagem escolhida: de toda a sequência registrada, temos acesso somente a uma determinada fotografia. Não vemos um antes ou um depois. Se as imagens escolhidas tiverem sido capturadas, por exemplo, em 1/125 segundos, uma centena de fotografias pode ser condensada em uma batida do coração.
Na esteira dessa reflexão de Klein, apresento o trabalho do fotógrafo Otto Stupakoff (1935–2009). Para tanto, recorro a algumas fotos individualizadas e sequências fotográficas presentes em suas folhas de contato.
Otto Stupakoff foi um renomado fotógrafo brasileiro que iniciou suas atividades ainda na década de 1950 produzindo seus primeiros trabalhos para agências de publicidade e para a gravadora Odeon. Devido à sua contundente atuação como fotógrafo de revistas especializadas em moda na década de 1960, é considerado um pioneiro na fotografia de moda no Brasil [1]. Stupakoff também desenvolveu uma expressiva atuação profissional no exterior, principalmente em Nova York e Paris, trabalhando para importantes revistas como Harper’s Bazaar e Vogue [2].
Ainda que tenha obtido maior reconhecimento por sua fotografia de moda e retrato, Stupakoff afirmava ter um trabalho diversificado e se incomodava com o reconhecimento fotográfico somente pelo viés da moda. Em suas palavras:
“Fotografei uma campanha de tintas buscando na natureza suas cores, para a Vasp fotografei crianças nas vinte e nove cidades que ela servia, [fiz] anúncios para o lançamento do Alfa Romeo e ainda assim me chamam de fotógrafo de moda.”
O acervo fotográfico de Stupakoff de fato nos permite verificar sua versatilidade e pluralidade nas mais variadas expressões: fotografia de rua e viagens, família, nus e still life [3, 4 e 5]. Desse acervo, são de especial destaque as sequências impressas em folhas de contato. Elas viabilizam tanto a análise de parte do percurso criativo do fotógrafo quanto suas características peculiares.
Para William Klein, as folhas de contato podem ser entendidas como o diário do fotógrafo. Elas correspondem a um conjunto de exposições reunidas em tiras de fotografias tomadas uma depois da outra, lidas da esquerda para a direita. Diante das sequências na folha de contato podemos visualizar a maneira como o fotógrafo reagiu diante de um fluxo de acontecimentos – personagens, ambientes e ações – e sobre o que ele achou relevante registrar [6].
A folha de contato explicita os elementos materializados em imagens, o que nos permite inferir a respeito das preferências do fotógrafo por temas e motivos. Consequentemente, também está expressa na folha de contato a maneira como esses aspectos foram registrados – composição, ângulo e enquadramento, entre outros elementos da fotografia – que nos remontam à poética do fotógrafo e ao seu pensamento fotográfico.
O acervo fotográfico de Stupakoff nos permite discutir de forma abrangente a importância da folha de contato para a compreensão da obra de um fotógrafo. Tome-se como exemplo o retrato do compositor Tom Jobim na praia de Ipanema (1964), um dos seus trabalhos mais conhecidos [6]. No começo da sequência, a composição incorpora Jobim e seu filho Paulo. Posteriormente, a sequência é dedicada somente ao compositor. No processo de captura, o fotógrafo se mantém em um mesmo ponto registrando a modificação da postura e das expressões dos retratados. O enquadramento apresenta variação mínima, que não altera a captura pelo plano médio, mas registra uma variação maior na pose dos personagens e no arranjo visual dos elementos em quadro, inclusive com a supressão do filho de Jobim.
A escolha final de Stupakoff incide sobre um determinado fotograma (de número 29) que individualiza Tom Jobim [7]. Esse fotograma é o único em que o compositor está totalmente inserido no terço central e em gesto corporal que mantém postura verticalizada com distribuição equitativa do seu centro de gravidade, diferentemente dos outros fotogramas, nos quais Jobim também aparece individualizado, mas se apresenta levemente inclinado.
A descrição acima mostra que a sequência apresentada via folha de contato permite uma aproximação do processo criativo e de uma poética fotográfica do fotógrafo, assim como torna possível visualizar suas escolhas marcadas nessas folhas, as quais, por sua vez, revelam suas preferências imagéticas. Também traz a ideia de que, ao contrário da imagem única – imagem síntese – atrelada à fotografia, representada, por exemplo, pelo conceito de “momento decisivo” do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), temos a premissa de que a criação fotográfica é fluída, e a visualização da sequência fotográfica pode evidenciar as rotas e os gestos do fotógrafo em torno das cenas a fotografar, sua obstinação para a captura de movimentos e os sinais que anunciam intencionalmente sua escolha de um enquadramento para um ponto de vista [8 e 9].
Essa reflexão nos conduz a pensar que o valor do fotógrafo não está somente na foto única, mas no modo como este desenvolve sua poética fotográfica. Nesse sentido, a obra de Stupakoff, como a de outros fotógrafos, abarca muito mais do que a duração instantânea dos seus registros. Por conseguinte, o acesso a todas as sequências para além da foto publicada, via folhas de contato ou outros mecanismos, será sempre bem-vindo.
Patricia Kiss é doutora em Artes Visuais pela Unicamp, designer e fotógrafa. Atualmente é professora da PUC-SP e pesquisadora de processos de criação na fotografia. Desenvolveu a tese “Entre escolhas: o processo criativo e a poética fotográfica de Otto Stupakoff”
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