Erika Zerwes relata como a saudação foi perenizada por meio da fotografia
Quando vemos as fotografias feitas ao longo dos três longos anos durante os quais a Espanha esteve imersa em uma guerra civil (1936-1939), percebemos um gesto sendo reiteradamente realizado pelos partidários do lado republicano. Também conhecidos como legalistas, estes foram os homens e mulheres que se mantiveram leais ao governo de Frente Popular legitimamente eleito no início de 1936, interrompido por um golpe militar comandado pelo general Franco em julho daquele mesmo ano.
Este gesto, que teria ainda uma longa vida chegando até os nossos dias, nasceu após a Primeira Guerra Mundial já para marcar uma posição de resistência política associada às esquerdas. No entanto, foi especialmente durante a Guerra Civil espanhola que ele inundou a cultura visual, sendo reproduzido nas páginas da imprensa ilustrada e de folhetos, em cartazes, cartões postais e selos, na forma de fotografias, fotomontagens e ilustrações.
O gesto de erguer o punho fechado apareceu na Alemanha, um ano depois dos primeiros registros de Hitler e seus seguidores fazendo a saudação do braço estendido com a mão aberta. Ele foi então incluído por segmentos do Partido Comunista alemão em seu regimento. Durante toda a década de 1920, as duas saudações foram ganhando força. Pelo lado comunista, especialmente durante a campanha eleitoral de 1925, quando o candidato a presidente Ernst Thälmann apareceu em diversas ocasiões fazendo o gesto. Pelo lado nazista, com sua transformação em norma do partido e saudação obrigatória já no ano de 1926. Nos anos seguintes, se tornaram célebres as imagens de multidões fazendo esta saudação nazista.
Na França, o gesto havia sido incorporado em 1926, através do PCF, também em um contexto de oposição ao fascismo. Ele se disseminou pelas massas, no entanto, a partir da década de 1930 quando o país adotou a política de união das esquerdas em uma Frente Popular. Esta tentativa de união, que havia fracassado na Alemanha em 1933, com a vitória do partido nazista e a subida de Hitler a chanceler, havia, no entanto, saído vitoriosa na Espanha, em 16 de fevereiro de 1936, e em seguida na França, em 3 de maio daquele mesmo ano. O gesto do punho fechado, que se tornou emblemático das Frentes Populares alemã, francesa e espanhola, é portanto símbolo de uma união entre as esquerdas destes países.
Como um contraponto ao que Walter Benjamin denunciou como uma estetização da política realizada pelos nazistas naquele momento [1], no âmbito artístico a imagem do punho fechado apareceu como uma “forma simbólica” em obras do artista e foto-montador de esquerda John Heartfield (1891-1968). Heartfield, que foi um dos principais artistas visuais a explorar o potencial político da imagem fotográfica e do desenho, se utilizou várias vezes desta forma do punho fechado, como por exemplo na fotomontagem que apareceu na capa da revista alemã AIZ em 1934.
Aqui, o artista montou um grande braço com o punho fechado, que atravessa a página de cima a baixo e na diagonal da esquerda para a direita, formado pela fotografia de uma multidão de pessoas fazendo este gesto, deixando clara a mensagem de que a união – das esquerdas no caso – faria a força.
Durante a Guerra Civil na Espanha, o gesto passou a ser usado pelas massas como parte da construção de uma identidade de grupo reunida em torno do repúdio ao fascismo. Este comportamento incluía outros aspectos estéticos, tais como vestimentas de cores específicas, canções engajadas e cartazes políticos cheios de símbolos gráficos, que eram parte integrante da cultura política da época.
O gesto de erguer o punho fechado foi amplamente registrado por fotógrafos que cobriram a guerra pelo lado republicano, como Robert Capa (1913-1954) e David Seymour “Chim” (1911-1956). Capa registrou diversos soldados republicanos fazendo o gesto dentro de um trem em 1936. Eram os primeiros dias do conflito, e aqueles milicianos da imagem parecem muito animados com a eminente partida para a frente de Aragão – talvez porque certos de uma rápida vitória, que acabou por não acontecer.
Situação bem diferente foi registrada novamente por Capa, e também por Chim, em outubro de 1938. Mais de dois anos de uma guerra fratricida e muito dura haviam desgastado os ânimos tanto dos que a lutavam quanto da população em geral. Os fotografados naquela ocasião faziam parte de um contingente de mais de 30 mil voluntários, que vieram de mais de quarenta países para lutar contra o fascismo na Espanha nas chamadas Brigadas Internacionais. Muitos judeus de diversas origens fizeram parte de suas fileiras. A grande maioria dos voluntários, no entanto, era composta por militantes de esquerda franceses, que viam a ameaça à República espanhola como uma ameaça também ao governo de Frente Popular francês, além de alemães e italianos obrigados a abandonar seus países devido à perseguição fascista.
Pressionada pela França e Inglaterra, a Espanha acabou por determinar a desmobilização das Brigadas Internacionais, na intenção de que a Itália e a Alemanha retirassem, por sua vez, o apoio dado ao lado franquista. Na cerimônia de despedida das Brigadas, a tristeza é visível no rosto dos dois homens retratados por Chim. Já o soldado retratado por Capa não apenas abandonou a alegria dos milicianos fotografados dois anos antes, mas também traz em seu rosto as cicatrizes do combate e da derrota. Manteve, no entanto, a altivez conferida pela realização do gesto compartilhado pelos seus camaradas.
Funcionando durante a guerra na Espanha como um símbolo da Frente Popular, o reiteradamente fotografado gesto dos punhos fechados deixou de ter a conotação de desafio e ameaça que possuía em seus primeiros momentos, e passou a ser um símbolo de agregação, de criação de uma identidade e comunhão de valores dos diversos partidos de esquerda membros da Frente Popular, estabelecidos em direta oposição àqueles do fascismo. Ele foi capaz, assim, de concentrar aspectos relevantes da cultura visual e da cultura política daquele momento.
Erika Zerwes é doutora em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, com estágio doutoral na EHESS Paris e pós-doutorado pelo MAC USP.
[1] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 196.
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