Obra mostra como poema de Firmino Rodrigues Silva antecipa elementos do romantismo brasileiro
Antes restrito a notas de rodapé na historiografia literária, à exceção de uma franca apologia na seminal História da literatura brasileira (1888), de Sílvio Romero, o poema “Nênia à morte do meu bom amigo Francisco Bernardino Ribeiro” (1841) é recuperado e discutido pelo professor e pesquisador Wilton José Marques, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em O poeta sem livro e a pietà indígena, publicado pela Editora da Unicamp.
Nessa obra, Marques aponta que o poema, escrito por Firmino Rodrigues Silva (1815-1879), antecipa elementos que farão carreira no romantismo brasileiro, em especial um tópico central e distintivo do movimento literário no país: o indianismo. Escrito cinco anos antes dos Primeiros cantos (1846) de Gonçalves Dias, cujas “Americanas” configuram a mais alta realização da temática indianista na lírica, essa “Nênia”, gênero poético próprio ao lamento fúnebre, é obra de um poeta algo bissexto, cuja produção restrita, explica Marques, não dá a dimensão de sua possível repercussão no momento em que surgiu.
Desse modo, Firmino, o “poeta sem livro”, é apresentado historicamente pelo pesquisador em sua atuação na imprensa da corte, do período regencial aos primeiros momentos do Segundo Reinado, bem como em sua relação com figuras importantes do tempo, em especial as que orbitavam em torno do Partido Conservador. Tal dimensão de sua biografia, aliás, é uma possível explicação para a parca produção poética de Firmino, que publicara pouco mais que uma dúzia de poemas, hoje em sua maioria acessíveis e recuperados por Marques em uma antologia, presente na segunda seção do livro. Firmino, que ainda seria deputado geral e senador do Império, teria trocado a literatura pela política, destino comum aos bacharéis do período, que costumava não admitir a concorrência entre a atividade e a condição de “conviva das musas”, como seria lembrado José de Alencar, um dos poucos que as exerceram simultaneamente.
A produção de Firmino, desse modo, centra-se sobretudo em poemas ligados à ocasião do falecimento precoce de Francisco Bernardino Ribeiro, amigo e mestre do poeta na Faculdade de Direito de São Paulo. Dentre estes, que poderiam erroneamente passar por curiosidades históricas de um poeta menor e de produção fragmentada, a “Nênia” publicada em 1841 ganha especial importância por sua ligação com os debates do período acerca da construção de uma imagem para o país recém independente, na qual a literatura desempenhou papel sobremodo importante, junto a instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838. Tratava-se de construir um passado mítico e heroico, uma narrativa que pudesse representar a especificidade nacional e que conciliasse a tradição cristã ocidental, trazida com a colonização, com a projeção e o estudo de uma cultura autóctone, indígena, garantindo, ainda, o ocultamento da condição fundamental da situação econômica e social do país, fundada no sistema escravocrata.
A índia Niterói, personagem central da “Nênia”, chora a morte de um de seus filhos diletos, Bernardino Ribeiro, como explica o título. Representante alegórica da Baía de Guanabara – conhecida no passado pela toponímia indígena de Niterói – e, logo, da natureza brasileira, elemento central do nacionalismo romântico, a personagem do poema é também figurada como uma figura materna, não apenas do filho pranteado, o que a liga à figura cristã da Pietà, mas de todos os brasileiros, cujo destino glorioso encontra-se em risco, pela subtração de um de seus maiores pela morte. Marques nota que o poema, que ainda apresenta elementos clássicos na composição métrica, seria de fato um antecipador da lírica romântica indianista, que encontraria em Gonçalves Dias sua realização mais alta. Firmino teria, assim, aberto caminho para os escritores que se debruçaram sobre a temática posteriormente.
Todas essas dimensões do problema são analisadas por Marques. A construção, no período e a posteriori, de um cânone romântico empenhado, como diria Antonio Candido, na construção de uma literatura de raízes nacionais, autônoma, é o ponto de partida para a localização da “Nênia” como uma contribuição de notável repercussão em seu tempo, de que dão testemunho inúmeras referências ao poema ao longo do século XIX. Seu apagamento histórico, avalia Marques, pode ter a ver com a política literária do período, de cuja figura de proa, Gonçalves de Magalhães ‒ tido como iniciador do romantismo brasileiro com Suspiros poéticos e saudades (1836) –, Firmino não gozava a bênção; a prática do favor e do compadrio, como na sociedade, era importante também para a literatura, como se vê. Além disso, o fato de possuir sua obra dispersa, somada ao abandono das letras, fez com que o poeta sem livro e sua “Nênia” ficassem relegados a um limbo histórico.
Sílvio Romero, que o recuperaria em sua História, já firmara sua objeção em “riscar este homem da nossa história literária”, visto que “sua produção maîtresse”, a “Nênia”, é um “dos mais saborosos frutos da poesia nacional”. A lembrança do crítico oitocentista é, assim, retomada por Marques, que realiza em seu livro um papel chave para a crítica e a historiografia literárias: a recuperação e a avaliação de momentos significativos da literatura nacional, como forma de compreender de modo efetivo como se deu sua construção e a formação de tópicos e de formas. No mais, e que interessa a todos os interessados em nossa literatura, trata-se, como lembra o autor, de recuperar o direito do poema de ser “(re)introduzido no cânone poético brasileiro” e, mais importante, o de todo texto: ser, efetivamente, lido.
Júlio Cezar Bastoni da Silva é licenciado em Letras pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e doutor em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp-Araraquara).
SERVIÇO
Título: O poeta sem livro e a pietà indígena
Autor: Wilton José Marques
Páginas: 216 | Editora da Unicamp
Preço: R$ 44,00
Mais em: http://www.editoraunicamp.com.br/produto_detalhe.asp?id=1069
O autor fala sobre a obra. Assista: