Jovens cientistas criam perfis com linguagem que funde arte e conhecimento, atraindo público jovem
Entre adolescentes e jovens adultos, a divulgação de ciência divide atenção com redes sociais. Nestas, têm crescido a presença de instituições e publicações de ciência e, para além disso, jovens cientistas empenhados em compartilhar nas redes bem mais do que selfies e tutoriais de maquiagem ou seu último destino de férias. Jen Ma é uma delas. A canadense, que faz seu PhD em bioengenharia de células-tronco na Universidade de Toronto, criou um perfil no Instagram dedicado a compartilhar sua paixão pela ciência e pela ilustração científica. Com 3.500 seguidores na rede, número que aumenta a cada dia, a cientista, que se define na plataforma como uma “SciArtist”, estuda arte e tipografia para divulgar ciência.
Germana Barata, docente do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp e autora da coluna Diários de Vancouver, publicada no Jornal da Unicamp, é pesquisadora visitante da Universidade Simon Fraser, no Canadá, onde está mapeando iniciativas como a de Jen. “Estamos vivendo um momento de rompimento de barreiras entre cientistas, comunicadores, apaixonados por ciência, estudantes, jornalistas e público”, explica. “Pela sua simplicidade aparente, velocidade de disseminação de informações e alcance de público, as redes sociais têm sido atraentes como espaço de divulgação científica”.
O envolvimento de Jen com esse formato de divulgação começou por meio do trabalho como cientista. “A comunicação e divulgação de ciência tornaram-se importantes para mim devido a dois fatos: uma experiência pessoal na qual amigos próximos desenvolveram descrédito pela ciência (por exemplo, participando do movimento anti-vacinação), e um desafio reconhecido por todo o campo da medicina regenerativa, no qual a administração do conflito entre esperança e hype é fundamental na luta contra problemas como o turismo terapêutico com células-tronco”, relata. “Como cientista, estou na posição privilegiada de estar envolvida diretamente com ciência e ter a responsabilidade de compartilhar meu conhecimento e trabalho. Mas, por um longo tempo, eu não sabia qual era a melhor maneira de conseguir isso”.
Em 2016, criou uma conta na rede de compartilhamento de fotos e vídeos para divulgar seu trabalho. Ilustração e tipografia (a arte de criar estruturas e formas na comunicação escrita, especialmente a criação e desenvolvimento de caracteres) eram hobbies. A pesquisadora conta que ficou “encantada” ao descobrir que a comunidade de arte, especialmente de caligrafias e letras, era amigável, apoiadora e crescia a um ritmo incrível. "Neste momento, eu já estava me interessando por ilustração científica, principalmente para comunicação entre cientistas. Inspirada por outros comunicadores científicos, como Samantha Yammine, ocorreu-me que talvez eu pudesse ajustar o conteúdo, torná-lo mais acessível ao público em geral e compartilhá-lo com essa comunidade."
Ciência pop
Samantha é doutoranda na Universidade de Toronto e estuda desenvolvimento cerebral e biologia de células-tronco. Em seu site sobre ciência e comunicação, define-se como uma “entusiasmada comunicadora científica”, defendendo que “a ciência feita em laboratórios ao redor do mundo gera novos conhecimentos para o benefício de todas as pessoas. E isso depende fortemente do apoio público”, escreve. “Acredito que as mídias sociais oferecem oportunidades fantásticas para que mais pessoas se empolguem com o aprendizado da ciência e com o apoio necessário. Por essa razão, sou muito apaixonada por criar novas linhas de comunicação entre o público e os cientistas que usam mídias sociais como Instagram, Twitter e YouTube”.
A conta de Samantha no Instagram (@Science.Sam) tem mais de 25 mil seguidores. Ali, a “science storyteller” compartilha o cotidiano na pesquisa e divulgação de ciência. Num post com mais de mil likes, mostra foto de 2002 da revista Nature com cérebros de diferentes animais, seguido de uma divertida descrição sobre a morfologia do sistema nervoso das planárias e um mini-vídeo de seu processo de regeneração. Em seguida, instiga o engajamento dos seguidores sugerindo que também compartilhem qual cérebro acham o mais cool.
Em outro, discute os estereótipos perpetuados e críticas que ela – e Jen – recebem por seu formato inovador de divulgação científica. Na primeira imagem, leem-se comentários negativos que já recebeu nesse sentido, como “espera, VOCÊ é cientista?!” e “não vamos encorajar isso” – seguida de segunda imagem contrapondo a primeira e exibindo mensagens positivas que tem recebido, celebrando seu trabalho como neurocientista e divulgadora de ciência. “Encorajadora”, “inspiradora”, “disruptiva”, lê-se, entre outros feedbacks já recebidos pela pesquisadora.
O post teve mais de 3 mil likes e foi uma resposta a artigo de opinião publicado na prestigiosa revista Science intitulado “Porque não uso Instagram para divulgação de ciência”, em texto escrito por outra pós-doutoranda da Universidade de Toronto, a engenheira biomédica Meghan Wright. No artigo, a cientista critica o trabalho de divulgação de Samantha e similares, descrevendo-a como uma “superstar” no campus que “através de visível contradição dos estereótipos sobre cientistas mulheres, visa inspirar garotas a seguir o trabalho científico e encorajar cientistas mulheres a demonstrarem sua feminilidade em ambientes de trabalho dominados por homens”. E continua: “documentar publicamente a roupa fofa que uso e o doce sorriso que exibo no laboratório não irá me ajudar”.
Embora reconheça os efeitos positivos da atuação de cientistas mulheres no Instagram, Wright critica: “Me atormentam que esses esforços sejam celebrados como formas de corrigir as longas e estruturais formas de discriminação e exclusão que cientistas mulheres enfrentam. Me pergunto se nossos esforços não deveriam ser direcionados para advogar por mudanças de políticas em nível institucional e governamental”. Para Samantha e Jen, ambas as práticas não são excludentes. Em artigo de resposta também publicado na Science, Samantha defende que os benefícios e armadilhas do uso das mídias sociais nesta área sejam analisados com base em dados e evidências – através de pesquisas como a professora Germana realiza no país. Meghan é mais radical: “Tempo gasto no Instagram é tempo longe da pesquisa e isso afeta mais as mulheres na ciência do que os homens. Isso não é justo. Não vamos celebrar isso”, finaliza. A posição da cientista escancara um dos maiores desafios na atual divulgação científica: um profundo desconhecimento, por parte dos próprios fazedores de ciência, do dever e importância de levá-la até o público.
Arte, ciência e divulgação científica
O trabalho de Samantha inspirou Jen a juntar duas grandes paixões. “Ocorreu-me que talvez eu pudesse ajustar o conteúdo, torná-lo mais acessível ao público em geral e compartilhá-lo com essa comunidade. Fundindo ciência e arte, achei que poderia cativar as pessoas mesmo que elas não estivessem – diretamente – buscando conteúdo científico”, expõe a cientista. “Logo depois de começar este pequeno experimento, percebi que não estava sozinha nessa jornada. Eu conheci muitos outros que gostam de ciência e arte, alguns também apaixonados por compartilhar esses interesses no Instagram. Disseram-me que o meu trabalho ajuda os outros a abraçarem o seu amor pela ciência e a arte, e a minha identidade como artista da ciência é o que faz destacar-me de outros. É por meio dessas palavras encorajadoras que percebo que a interseção entre ciência e arte pode gerar valor para a comunidade.”
As intersecções entre ciência, arte e divulgação científica têm sido objeto de estudo de pesquisadores de diversas áreas. Tânia Araújo Jorge, pesquisadora-titular e atual diretora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) da Fiocruz, publicou artigo sobre o tema, e também defende uma relação proveitosa entre arte e ciência. “O ser humano nunca viveu sem utilizar a arte como forma de expressão, uma indicação de que a linguagem da arte é a própria linguagem da humanidade. Por isso, e para isso, a arte precisa ser mais bem compreendida e valorizada na educação, em todos os níveis de ensino, desde o ensino fundamental, em toda e qualquer escola, até o ensino de pós-graduação, para a formação de docentes e cientistas com orientação holística. A arte pode interagir com a ciência como parte de uma estratégia pedagógica explícita para a educação científica da população.”
Para a influenciadora digital, essa união significou também realização pessoal. “Como lutei a maior parte da minha vida para unir meu interesse pela ciência e pela arte, é imensamente gratificante saber que posso ajudar os outros, especialmente a geração mais jovem, a superar essa divisão. Acredito que o aprendizado e as colaborações interdisciplinares são fundamentais para impulsionar as inovações e devem ser estendidas não apenas às disciplinas científicas, mas também à arte. Há mais pontos em comum entre ciência e arte do que a maioria pensa, como a curiosidade e a criatividade que impulsionam as duas disciplinas, a apreciação do mundo ao nosso redor e a exploração por meio da experimentação”.
Ultimamente, Jen tem focado principalmente no @STEAMotype, projeto do qual é co-fundadora e no qual são realizados desafios semanais de tipografia inspirados em ciência, tecnologia, engenharia, artes e matemática (STEAM, na sigla em inglês). “A STEAMotype se esforça para inspirar valorização e engajamento nessas ciências por meio da arte. Capitalizando o recente aumento na popularidade da tipografia, nossos desafios semanais oferecem uma plataforma para pessoas, incluindo aquelas sem bagagem científica, fomentando um engajamento nessas áreas de uma maneira acessível, divertida e compartilhável”.
Jen discute também a representação social do cientista e a aproximação do público com os fazedores de ciência. “Percebo que postagens que expressam outras dimensões, por meio da arte, fazem com que as pessoas me percebam como uma cientista mais real e humana. De uma maneira que eu não pretendia inicialmente, estou promovendo uma imagem mais compreensível e acessível dos cientistas que é contrária aos estereótipos – um aspecto importante da comunicação científica”.
O que tem funcionado nesse novo modelo de divulgação científica? “Ainda estamos muito na fase de aprendizado, mas descobrimos que os posts populares geralmente consistem em dois elementos-chave: recursos visuais atraentes e conteúdo relacionável. O visual é o que chama a atenção das pessoas. Às vezes, isso é suficiente para intrigar nosso público e promover o engajamento. As pessoas também preferem conteúdo com o qual possam se relacionar, como citações de cientistas inspiradores, trocadilhos científicos, fatos interessantes que envolvem nosso cotidiano ou tópicos populares como saúde, natureza e exploração espacial.” As imagens são apenas uma parte da comunicação realizada. “Geralmente, compartilhamos as informações científicas na descrição do post, o que é mais difícil de medir a receptividade do nosso público a estilos diferentes. Tentamos manter a sinopse curta, usar uma linguagem que seja fácil de entender e apresentar conceitos usando técnicas de narrativa. Humor e analogias também ajudam a tornar nossos posts mais acessíveis”.
Jen pretende continuar apostando no modelo: “A resposta que temos até agora, tanto na minha conta pessoal como na STEAMotype, é muito positiva e encorajadora. A comunidade científica considera nossa abordagem e conteúdo acessíveis, além de ajudá-los a se conectar com seu lado artístico. Os não-cientistas também gostam de nossos posts, descrevendo-os como informativos e acessíveis. Nós inspiramos um público mais jovem, enquanto outros nos disseram que gostariam que esse tipo de conteúdo estivesse disponível quando eram jovens. Estas pequenas vitórias, combinadas com os cientistas e artistas que encontro através do meu esforços na comunicação científica, são o que me mantém motivada”.
Para Samantha Yammine, é importante também dar visibilidade para os cientistas locais que produzem conteúdo parecido. “Gostaria que os cientistas locais sentissem-se empoderados no sentido de que eles também podem contribuir para essas mudanças na cultura científica, especialmente uma vez que o estado das políticas científicas no Brasil tem sido tão desafiador. Recebo muitas mensagens passionais de brasileiros frustrados com a situação atual da ciência no país”, afirma.
O mapeamento realizado por Germana é uma tentativa de dar mais visibilidade para esse novo perfil de divulgadores científicos, que não precisam mais de intermediários para dialogar com o público. “Queremos que esse trabalho seja reconhecido, permita mais parcerias entre divulgadores e que o público interessado tenha acesso fácil a essa informação. Também será uma forma de mostrar para as agências de fomento que é preciso direcionar verba para essas iniciativas – ou veremos belos trabalhos terminando por falta de financiamento, afinal a maior parte faz como hobby e com verbas próprias”, conclui.
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