Instrumento foi desenvolvido com afinação que dispensa o uso de uma das mãos
Reinaldo Amorim Casteluzzo nasceu em Petrolina, interior do Estado de Pernambuco. Veio de uma região de rara beleza natural, próxima do Rio São Francisco. Porém, com tristeza, testemunhou as estatísticas do seu município que, em 2010, tinha 12,5% dos seus habitantes vivendo entre a linha da pobreza e da indigência e 8,3% abaixo dessa linha, sem recursos para viver, apesar da redução de 47,6% nesse percentual. Ele também teve uma vida difícil.
Mas, aos cinco anos de idade, o garoto contou com uma virada a seu favor. Ganhou um violão de presente da mãe, para ser compartilhado com os dois irmãos. Deslanchou. Seguiu carreira de músico, aprendendo o violão clássico. E o irmão se tornou luthier.
Na década de 1980, Reinaldo começou a atuar como professor e não demorou a perceber que não havia instrumentos adaptados mundialmente, escolas especializadas ou métodos dirigidos a pessoas com deficiência. Nessa época, dava aulas de violão em um conservatório. Notou que alguns alunos tinham mutilações, deficiências congênitas, não tinham mobilidade nas falanges. No entanto, tinham em comum o fato de amar a música. Não faltavam aos recitais de violão e piano.
Decidiu que faria algo para incluí-los nesse universo. Ingressou no mestrado na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Orientado pelo pediatra Roberto Teixeira Mendes, avaliou o uso de um violão adaptado por crianças com paralisia cerebral (PC). O violão foi criado por Reinaldo sob a alcunha de “violão terapêutico”.
Reinaldo fez uma intervenção com 22 jovens da Apae de Arthur Nogueira, SP, atendidos pelo HC da Unicamp. Apresentou-lhes o violão que, num primeiro momento, não levantou suspeita. Aos primeiros acordes, eles perceberam que o instrumento era diferente: podia ser tocado só com uma mão. E mais: os jovens estavam diante do seu inventor.
Para a intervenção, o pesquisador foi acompanhado de uma psicóloga, de uma assistente social e de uma professora de música. Eles aplicaram um questionário aos pacientes, que avaliou o conceito de autoestima, de Rosenberg (1965), adaptado para língua portuguesa.
Noventa dias após a primeira intervenção, o questionário foi reaplicado. Os resultados surpreenderam. Todos os alunos com paralisia cerebral conseguiram tocar o instrumento e uma grande mudança se operou neles: no visual, no bem-estar e na qualidade de vida.
Violão
Reinaldo criou o violão terapêutico de 12 cordas com base teórica que segue as notas fundamentais da música e que foi trabalhado na luthieria para permanecer com a mesma estética do tradicional, mas exercendo a função de três violões. “Eu os acoplei em um braço só. Ficou um pouco largo, contudo pode ser construído com outras medidas. Fiz várias tentativas. Essa foi a invenção que mais deu certo: uma afinação chamada ‘cebolão’, no popular, de modo que as notas que pertencem à escala já estão todas afinadas”, contou.”
O violão convencional, informou, tem seis cordas e precisa da sincronia das duas mãos para tocar. “O nosso, inédito no mundo, é afinado de uma forma que dispensa o uso de uma das mãos, ficando somente a mão que tange as cordas, que dedilha e faz a batida rítmica.”
Esse violão veio com a proposta de tocar rapidamente porque a mão que faria os acordes acaba sendo substituída pela afinação. “As cordas têm uma afinação que foi construída com a invenção do violão, vinda do alaúde e dos instrumentos remotos”, explicou. “Com uma palheta ou com o próprio dedilhado, já se alcança o acorde desejado.”
O novo violão é aparentemente formado por três acordes. Porém, o método completo emprega mais de 30 acordes. Um capotraste também é utilizado para transpor as notas, afinado em “lá”, mas pode ser transposto para “si”, “dó”, “ré” e outras notas.
“Gosto tanto do violão que eu não quero ver uma pessoa que não o toque por não ter condições físicas”, disse. “Para quem tem dois braços, o violão é o instrumento mais fácil que existe.”
No violão convencional e no adaptado são três cordas grossas (mi, lá, ré). “Eu peguei o ‘mi’ da corda grossa do violão e o abri numa escala tonal (antes era só modal – só dava o ‘mi’). Agora eu consigo fazer o ‘mi’, o ‘lá’ e o ‘ré’ numa escala tonal, com quatro sons cada. Estão abertos em acordes, e não só melódicos da escala modal”, esclareceu.
Produções
Reinaldo é classicista e foi influenciado por compositores como Francisco Tárrega e Andrés Segovia (o maior intérprete violonístico, pai do violão erudito). Tem 15 CDs gravados, lançou vários métodos de ensino de violão e compôs mais de 200 músicas instrumentais.
O violonista foi duas vezes premiado no Festival de Música Cidade Canção (Femucic), da TV Cultura do Paraná, graças à sua técnica violonística apurada, construída em 40 anos de estudos eruditos. “Mas a minha grande obra mesmo foi o violão que toca com apenas uma mão. Na verdade, inventei dois violões. Outro eu esqueci no passado, pois não anotei o seu processo. Mas um dia eu me lembro”, torce.
Ao falar sobre outras adaptações, o músico imagina que a nova geração de violões poderá ganhar algum recurso eletrônico de uma mão que faça os acordes sozinho. “Mas o nosso é artesanal e deve continuar sendo o modelo tradicional, pois pode ser tocado em qualquer lugar”, sublinhou.
Ele também falou da expectativa de colocar o seu violão no mercado, porque já tem muitos pedidos, apesar de não se dedicar só a essa área. “Já vendemos mais de 50 violões, porém o custo ainda é alto. Um violão não sai por menos de R$ 2 mil.”
Reinaldo acrescentou que o seu instrumento serve tanto para o paciente quanto para uso pelo terapeuta, em sua atividade profissional. “Em uma semana, qualquer pessoa consegue tocar dezenas de músicas. Alguns participantes da pesquisa tinham comprometimento nos dois braços, outros eram cadeirantes. Para um dos alunos, tivemos que prender uma palheta nos dois dedos. Ele conseguia fazer poucos movimentos, mas era tudo o que precisávamos para a nossa intervenção”, garantiu.
A pesquisa de Reinaldo envolveu pessoas com paralisia cerebral, todavia o seu método pode contemplar pessoas com AVC, sem membro superior ou com outras deficiências, crianças e adultos sem deficiência que sentem que o instrumento fere-lhes os dedos ou que não têm muito tempo para aprender.
O músico crê que pode ter dado o start para a adaptação de instrumentos como o cavaquinho, a viola, a guitarra. “Os alunos sequer sonhavam em tocar violão, por acharem que era impossível. Mas já esperávamos esses resultados porque a música tem o poder de distrair e de acalmar. Explicar isso cientificamente é complexo, quando se analisa a fisiologia, entretanto, comportamentalmente, os resultados foram incontestáveis”, explicou.
Reinaldo, hoje atuando na área terapêutica, contou que agora será preciso elaborar todas as etapas do procedimento para desenvolver o violão, construir o instrumento a um menor custo e oferecê-lo a centros de reabilitação ou às pessoas que trabalhem com reabilitação. “Essa é uma apenas uma retribuição que damos no sentido de incluir essas pessoas, pois elas podem fazer muito mais do que pensamos”, atestou.