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Taxonomistas e conservacionistas divergem sobre revisões recorrentes de espécies

Mudanças na nomeação e classificação desencadeiam debate acerca das implicações na preservação da biodiversidade

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Classificar o mundo real nunca foi tarefa fácil, sejam cores, cheiros, relevo, clima, etnias, etc. Quando se trata de classificar e dar nome aos animais, plantas e microrganismos, as discussões sobre as fronteiras da unidade de análise “espécie”, são recorrentes e apoiadas em evidências científicas. A ciência responsável por nomear e classificar a biodiversidade chama-se taxonomia. Batizar espécies novas, reorganizar gêneros e descontinuar nomes antigos são algumas das consequências dos progressos da ciência que nomeia os seres vivos.

Os avanços – ou como preferem alguns, inconstâncias – trazem implicações, sobretudo nas políticas de conservação da biodiversidade em todo mundo. Os australianos Stephen T. Garnett e Les Christidis foram os porta-vozes do grupo que vê o que eles chamam de “uma grande anarquia” no processo de classificação e retrataram seus pontos de vista na revista Nature de maio de 2017. Para os autores, espécies são frequentemente criadas ou descartadas arbitrariamente. Segundo ambos, o rearranjo varia de acordo com o alinhamento teórico do taxonomista. Mais: acrescentam que não há uma supervisão global das decisões taxonômicas, que possibilita que os pesquisadores possam “dividir ou agrupar” espécies sem considerar as consequências, por exemplo, para a conservação da biodiversidade.

Dentre as consequências, os australianos mencionam o fato de um grupo de espécies parecer mais ameaçado do que outro, e assim receber uma fatia maior de financiamento para conservação. Em 2012, por exemplo, aproximadamente a mesma quantia de recursos foi destinada, por espécie, para aves e mamíferos, de acordo com a Lei de Espécies em Perigo dos EUA. Mas se os mamíferos são divididos em mais grupos do que os pássaros, isso significa que mais dinheiro está sendo canalizado para a proteção dos mamíferos em geral.

Foto: perri
O professor André Freitas: as espécies continuam ameaçadas, só mudam de nome

Paradoxalmente, uma divisão mais precisa também poderia tornar certas espécies mais vulneráveis. Por exemplo, na África do Sul ocorrem torneios de caça de antílopes com chifres em espiral nos quais se contabilizavam nove espécies. Com os recentes desenvolvimentos da taxonomia, este número subiu para 25. Dividir espécies em unidades menores significa que há mais espécies com menos indivíduos, logo, possivelmente elas atendarão às definições de “espécies em risco”, o que resulta no aumento da lista de animais ameaçados do país e consequentemente restrições à caça de muitas das espécies válidas. No Cazaquistão, uma espécie de ovelha selvagem foi redividida em nove. Tigres previamente eram considerados nove subespécies, agora são seis espécies.

“Estas alterações afetam regulações, mudam legislações, especialmente de espécies ameaçadas, simplesmente em decorrência de uma decisão baseada em filosofia. Cada taxonomista pode propor uma nova estrutura de nomenclatura. Eles devem ter responsabilidade sobre o que propõem e saber que suas decisões têm implicações” argumenta Christidis [1].

Em termos mais amplos, uma revisão taxonômica poderia afetar programas inteiros de conservação, empreendimentos turísticos e oportunidades de emprego. Conservacionistas e outros profundamente ligados a uma determinada espécie poderiam ter o objeto de seu apego redefinido para fora da existência ou subdividido.

As listas de espécies são uma ferramenta importante para a tomada de decisão”, afirma Natália Ivanauskas, pesquisadora científica do Instituto Florestal, órgão responsável pela gestão da maior parte das unidades de conservação do Estado de São Paulo. É a partir dessas listas, juntamente com a frequência das espécies, que se determina o grau de degradação ou de conservação de uma determinada área e também quais são prioritárias para conservação ou com alto valor nos processos de licenciamento.

A divisão ou fusão altera as frequências de espécies de um determinado local, pois leva ao aumento ou redução da riqueza de espécies. Situação mais difícil é quando uma espécie ameaçada é dividida em duas ou mais após uma revisão taxonômica. Nem sempre a revisão do status de ameaça acompanha o rearranjo das espécies no mesmo ritmo. “Há um espaço temporal entre a publicação científica e a revisão das listas de ameaçadas, o que de fato pode ser prejudicial para a conservação” alerta Ivanauskas. “Mas considero que é uma questão de avanço de conhecimento científico que deve ser respeitada”, ressalva.

Os autores do editorial da revista Nature oferecem uma solução: que a União Internacional de Ciências Biológicas (IUBS) – o ramo de biologia do Internacional Science Council – deveria “tomar uma liderança decisiva” e iniciar uma comissão taxonômica. A comissão, como eles propõem, estabeleceria regras rígidas para delinear novas espécies e se encarregaria de revisar os documentos taxonômicos para fins de conformidade. Esse processo, segundo eles, resultaria na primeira lista global padronizada de espécies.


Revolução científica em curso

As queixas de Garnett e Christidis mobilizaram – e indignaram – fortemente a comunidade de taxomistas de todo mundo, que respondeu em forma de artigo publicado na PLoS Biology em março de 2018. O artigo Taxonomy based on science is necessary for global conservation contou com 184 autores de 37 países que escreveram contestando a dupla australiana. Do Brasil, participaram cientistas de 12 instituições de ensino e pesquisa, dentre as quais a Unicamp.

O artigo é liderado por Scott A. Thomson, taxonomista de tartarugas e pesquisador visitante do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. O texto ecoa a voz de um grupo que não se vê como meros fornecedores de nomes de espécies para outras áreas do conhecimento e, sim, como uma ciência viva, que avança pari passu com as novas técnicas moleculares, levando a uma constante reavaliação das fronteiras entre entidades taxonômicas. Na opinião dos 184 autores, colocar a governança sobre a ciência da taxonomia obscurece a distinção entre taxonomia e nomenclatura.

A definição do que seja uma espécie está mudando. “Essa mudança não é compreendida por todos. E aí gera a insatisfação daqueles que têm uma visão mais utilitarista do que é espécie e que se veem prejudicados com estas mudanças. Não entendem que por ser uma ciência baseada em pressupostos hipotéticos dedutivos, ela pode mudar ao longo do tempo” explica André Garraffoni, especialista em gastrotrícos (organismos minúsculos que vivem entre os grãos de areia das praias), coautor do artigo de resposta e professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.

Foto: Perri
O professor André Garraffoni: a taxonomia muda ao longo do tempo

Atualmente a taxonomia é produto do casamento das tradicionais análises morfológicas e das modernas técnicas moleculares. “Estamos no meio de uma revolução científica na taxonomia” posiciona Garraffoni. Nos últimos anos aumentou expressivamente o número de espécies descritas utilizando evidências morfológicas e moleculares. Esta revolução varia de grupo para grupo. Nas algas isso já vem ocorrendo há 30 anos. No grupo dos delicados gastrotrícos, a revolução ocorre com maior intensidade de cinco anos para cá.

“O uso destas ferramentas tem se mostrado fundamental para o entendimento da diversidade de espécies, sua distribuição geográfica e afinidades filogenéticas”, explica Mariana Cabral de Oliveira, professora da USP, especialista em algas (leia texto abaixo).

O Plano de Ação Nacional para Conservação dos Lepidópteros Ameaçados de Extinção, documento de 2011, já sentiu alguns dos impactos das alterações taxonômicas das borboletas. A revisão da nomenclatura com abordagem molecular e morfológica apontou que duas ou três espécies ameaçadas mudaram de gênero. “A espécie continua ameaçada, só mudou de nome”, argumenta André Freitas, especialista em borboletas, coautor do artigo da PLOS e professor do IB-Unicamp.

Quem também está sob “suspeita” taxonômica são algumas espécies do gênero Drosophila, as moscas-de-frutas, que ficaram famosas com os estudos genéticos de Theodosius Dobzhansky e Thomas Morgan na década de 1930. As moscas mais bem estudadas do mundo, caso tivessem seu grupo taxonômico revisado hoje, poderiam mudar para outros gêneros próximos à Drosophila, ou seja, para outros grupos evolutivos. “Mas o que fazer? Fechar os olhos? Negar que faz parte de outro grupo evolutivo? Que deveria mudar de gênero? Isso desagrada pessoas que não entendem a taxonomia. É como se um irmão da mesma família passasse a ter um sobrenome diferente” compara Freitas.


Vandalismo taxonômico

A taxonomia segue o sistema lineano de classificação, iniciado pelo biólogo sueco Carl Linnaeus em 1735. Os nomes das espécies são em latim e compostos de duas partes. O primeiro nome corresponde ao gênero e o segundo, ao nome (ou epíteto) específico.

Quando um cientista quer nomear uma forma de vida recém-descoberta, seu primeiro passo é reunir de duas a três linhas de evidência – de DNA e morfologia, por exemplo – que sugerem que se está lidando com algo desconhecido para a ciência. Então, é necessário selecionar um exemplar – ou parte dele – para ser designado como holótipo, que é o indivíduo de referência da nova espécie e que servirá como um identificador para futuros pesquisadores.

Em seguida, o pesquisador escreverá seu artigo, no qual descreve a descoberta, nomeando a nova espécie de acordo com as regras de nomenclatura taxonômica. Finalmente, o pesquisador envia seu trabalho para um periódico científico para publicação. Se ele for o primeiro a publicar, o nome escolhido tem prioridade sobre outros. Entretanto essa última etapa – a publicação – não é tarefa fácil. Ou pelo menos, não costuma ser. Em teoria, as evidências que se apresentam devem seguir o alto padrão de referência científica e ética da revisão por pares. A publicação pode levar meses ou até anos.

As regras para nomear um novo táxon animal são regidas pela Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica (ICZN), que produz o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica (mesma sigla, ICZN). No caso da Botânica não há um órgão correspondente. O Código Internacional de Nomenclatura para Algas, Fungos e Plantas é debatido amplamente e atualizado a cada seis anos, nos congressos internacionais de botânica.

No entanto, existe uma brecha. Embora o ICZN exija – dentre as mais de suas 300 regras – que os nomes sejam publicados em periódico científico, não se faz menção quanto à qualidade do periódico. Portanto, é possível que as revisões taxonômicas sejam publicadas em revistas de qualidade duvidosa.

Este lapso possibilitou que alguns taxonomistas publicassem revisões taxonômicas consideradas questionáveis. Vândalos taxonômicos, como eles são referidos, são aqueles que nomeiam dezenas de novos táxons sem apresentar evidências suficientes para suas descobertas. Assim como os plagiadores que tentam passar o trabalho dos outros como seus, esses cientistas usam a pesquisa original de outros para justificar suas chamadas “descobertas”.

O expoente deste caso é um herpetólogo australiano Raymond Hoser que é editor, revisor e autor dos próprios artigos no Australasian Journal of Herpetology. Este pesquisador é acusado de provocar uma verdadeira bagunça na classificação das serpentes ao ponto de 90% dos herpetólogos não reconhecerem ou usarem sua classificação. O pesquisador se defende dizendo que, com sua experiência, é capaz de, a partir de uma árvore filogenética já publicada, saber onde se encaixa a nova serpente, sendo, portanto desnecessárias as evidências moleculares para respaldar seu conhecimento. Isto cria um ambiente de desestabilidade na aplicação dos nomes. A falta de consenso entre os taxonomistas, neste caso, não advém do debate científico e sim da falta de transparência das práticas científicas utilizadas.

 

Um outro olhar para classificação das algas vermelhas

A mesma espécie de alga pode ter diferentes formas, dependendo do local em que se encontra. Isto se chama plasticidade fenotípica. Da mesma forma, diferentes espécies podem ter formatos semelhantes quando ocupam ambientes similares. Isto se chama convergência morfológica. Além disso, a presença de estruturas reprodutivas para identificação é uma característica fundamental para auxiliar na correta identificação das algas. Estas são as principais dificuldades da identificação das algas vermelhas quando o pesquisador dependia exclusivamente da identificação a olho nu. A saída encontrada pelos pesquisadores para desfazer este grande nó foi lançar mão de técnicas de DNA Barcode, ou seja, utilizar sequências curtas de DNA, amplificadas e sequenciadas, que podem ser utilizadas na distinção e identificação de espécies.

Os marcadores moleculares para identificação de algas foram um verdadeiro sucesso para a identificação de espécies no grupo. A ferramenta passou a ser tão usual que transformou a perspectiva da morfologia na taxonomia de algas nos últimos 30 anos. Isto porque estes organismos têm um número de caracteres morfológicos muito limitados para descrever toda a diversidade genética do grupo (estruturas morfológicos, tamanho da célula, cor), razão pela qual se encontram muitas espécies crípticas, aquelas que são praticamente idênticas. “Antigamente se identificava no campo. Hoje, primeiro se faz a análise molecular, identificam-se os grupos genéticos, por fim, analisa-se a morfologia. Digamos que é outro olhar para a morfologia”, afirma Mariana Cabral de Oliveira, professora da USP. Se no início dos anos 1990, o sequenciamento do DNA de uma alga levava cinco dias, atualmente levam-se 30 minutos, dependendo da alga, se tem muito ágar ou se é calcária.

A tendência atual é o estudo de algas migrar para uma genômica de nova geração, a filogenômica, ou seja, reconstruir as histórias evolutivas dos organismos por meio da análise de todo genoma ou grandes partes dele. Esta abordagem foi possível graças aos avanços das análises filogenéticas (que analisam e comparam um gene ou um conjunto pequeno de genes) que aumentou o número de marcadores genéticos juntamente com as novas tecnologias de sequenciadores de alta capacidade.

 

 



[1] Para o Podcast da Revista Nature que foi ao ar em 1/06/2017.

 

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Imagem close-up e frontal de cinco borboletas de coleção de laboratório, sendo que elas estão com as asas abertas, dispostas horizontal, uma ao lado da outra, sendo três horizontal mente, acima, e duas abaixo, em outra fileira. Elas possuem tamanhos diferentes, sendo a da esquerda a maior, e a da direita e menor. Elas têm asas em marrom escuro, e detalhes em tons de rosa, vermelho e branco. Imagem 1 de 1.

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