Descoberta sinaliza para modificações que permitem o aumento da produção de sacarose e a criação de variedades resistentes a pragas
Pesquisa realizada no Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) e no Departamento de Biologia Vegetal do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp revela em que partes do código genético da cana-de-açúcar estão os fragmentos de genes responsáveis pela produção de açúcar. A estratégia utilizada para a descoberta, além de abrir portas para melhoramentos e modificações genéticas que aumentem a capacidade da cana de produzir sacarose, também pode ser empregada para criar variedades de cana resistentes a pragas.
O trabalho, coordenado pela professora Anete Pereira de Souza, do Departamento de Biologia Vegetal do Instituto de Biologia (IB) da Universidade e responsável pelo Laboratório de Análise Genética Molecular do CBMEG, foi realizado pelos biólogos e geneticistas Danilo Augusto Sforça, Melina Cristina Mancini e Cláudio Benício Cardoso da Silva e pela química Aline da Costa Lima Moraes. O estudo, apoiado pela Fapesp, CNPq e Capes, foi publicado em março no periódico Frontiers in Plant Science.
A pesquisa objetivou obter sequências de genes da cana-de-açúcar de interesse econômico por outras vias que não o do sequenciamento genético do genoma completo até então não disponível. Com efeito, da família das gramíneas, à qual pertence a cana-de-açúcar, já foram sequenciadas 33 espécies, entre as quais arroz, cevada, milho, sorgo e trigo, mas não ainda o código genético total da cana, embora dezenas de laboratórios em todo o mundo o venham tentando há anos. Mas essa tarefa revelou-se por demais intrincada em face da complexidade do DNA dessa espécie. “Como não existe ainda o genoma da cana completamente sequenciado, procuramos estratégias que nos possibilitassem conseguir sequências de genes de importância para o melhoramento da planta e, no caso, escolhemos aqueles responsáveis pela produção de açúcar, os mais importantes do ponto de vista econômico”, explica a professora Anete.
Sabia-se que uma região do sorgo sacarino – espécie semelhante ao milho e utilizada na ração animal – é responsável pela acumulação de açúcar no colmo. Como o sorgo e a cana são espécies aparentadas, com genótipos semelhantes, lembra Melina Mancini, “partimos do pressuposto de que os genes para a produção de açúcar no sorgo deveriam conservar a mesma função na cana-de-açúcar e em decorrência procuramos identificar essa mesma sequência genética dentro do genoma da cana”.
A ideia era a de utilizar uma estratégia que permitisse sequenciar os genes de interesse com vistas a utilizá-los em uma nova tecnologia de melhoramentos de plantas que se chama hoje de seleção genômica, que é muito mais eficiente e traz ganhos maiores. Anete estranhou que, embora se soubesse que o sorgo e a cana são muito parecidos, a ninguém tenha ocorrido antes a ideia de estabelecer uma correlação entre essas plantas, embora isso seja muito comum nos estudos entre animais, a exemplo dos ratos utilizados como cobaias para predizer o que pode vir a ocorrer no organismo humano. Posteriormente à publicação do trabalho, em março, um grupo francês publicou em julho último um mosaico de sequências da cana baseando-se na estratégia descrita, conta a professora Anete.
As pesquisas
As pesquisas centraram-se inicialmente no sorgo, que tem genoma mais simples, com cerca de um décimo de comprimento do genoma da cana, e com sequenciamento já muito bem definido, pensando-se em transpor depois o conhecimento adquirido para a cana-de-açúcar. Mas na verdade, o ponto de partida do projeto ocorreu em 2011, quando Danilo Sforça, então doutorando, foi para o Instituto Nacional de Pesquisas Agronômicas em Toulouse, França, para montar um banco de fragmentos de cana, chamado de biblioteca de clones do genoma da cana-de-açúcar. Conhecendo-se os genes do sorgo para o acúmulo de açúcar pode-se então localizar uma sequência similar na biblioteca da cana. A partir daí, Melina decidiu vasculhar essa biblioteca em busca das sequências similares entre o sorgo e a cana, orientando o estudo para uma característica ligada à produção e ao acúmulo de açúcar. Os pedaços de DNA de cana selecionados pelos marcadores moleculares na biblioteca foram então sequenciados e organizados na ordem correta em que se encontram no genoma da cana.
Em outras palavras, utilizando a sequência genética do sorgo sacarino e ferramentas da bioinformática, os pesquisadores conseguiram, a partir do genoma responsável pela produção de açúcar no sorgo, encontrar a correspondência com genomas da cana com funções supostamente similares, mesmo não dispondo de sua sequência genômica. Se confirmada essa hipótese, a descoberta pode levar a grandes saltos na produção de etanol e açúcar por hectare plantado, otimizando os espaços agrícolas. E ainda elevar o poder calórico do bagaço de cana oriundo da indústria sucroalcooleira, queimado em usinas termoelétricas, o que levaria a maior produção de energia por quantidade de bagaço.
Entretanto, a coordenadora do programa frisa que não basta supor que os genes encontrados na cana, a exemplo do que ocorre no sorgo, de fato sejam os responsáveis pela produção e acúmulo de açúcar, embora faça sentido supor que assim o seja. Mas a ciência não funciona assim, ela exige comprovação. Portanto, é preciso ainda demonstrar sem quaisquer dúvidas que a função dos 53 genes, semelhantes aos do sorgo e identificados na cana, é realmente de produzir açúcar. A etapa de confirmação da função dos genes encontra-se em andamento, juntamente com os programas de melhoramento de cana de açúcar do Centro de Cana do Instituto Agronômica de Campinas (IAC) e da Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético, em Araras (RIDESA).
Contexto
A professora Anete enfatiza: “Nosso interesse nesta pesquisa não foi o de sequenciar o genoma inteiro da cana, mas a partir do sorgo, localizar regiões importantes dele que codificam genes para a produção de açúcar, que possam conferir tolerância da variedade à seca, a fungos, bactérias ou vírus, ou que permitam o crescimento em solos pobres, em áreas com maior ou menor insolação e variação de disponibilidade de adubo. Nosso trabalho é voltado para que os melhoristas de cana possam usar os resultados em seus programas de melhoramento”. A importância do estudo ressalta quando se sabe que o Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, com quase o dobro da safra do segundo colocado, a Índia.
Mas, certamente, melhor de tudo, é o que a tecnologia desenvolvida permite vislumbrar, para além do caso particular do sorgo com a cana. Pode-se vir a utilizar o mesmo sistema de comparação para estudar outras plantas, que a exemplo da cana, também tenham genoma complicado. É o que acontece, por exemplo, com o genoma complexo da seringueira, que pode ser estudado a partir do genoma da mamona, que tem a sequência genômica muito bem caracterizada, ou dos capins utilizados em pastagens comparados com a espécie de capim chamada de setária, a qual já teve o seu genoma sequenciado, por ser mais simples que os capins usados no Brasil. Aliás, esta é também outra frente de pesquisa do CBMEG e Departamento de Biologia Vegetal do IB.
Cláudio da Silva ressalta ainda o ganho em tempo e dinheiro que o emprego da tecnologia proposta possibilita: “A busca da similaridade dentre os genes do sorgo e da cana envolve a utilização de um genoma já sequenciado, bem definido e conhecido, que demandou anos de trabalho envolvendo muitas esquipes de pesquisadores e muitos recursos. Utilizando-se um conjunto de genes do sorgo potencialmente relacionados com as características da produção de açúcar dá-se um salto incomensurável. Com esse tipo de correlação se ganha um tempo excepcional e uma grande economia de trabalho e recursos”.