Walter Carnielli escreve sobre o livro “O Sentido da Nova Lógica”, cuja tradução foi coordenada por ele
O filósofo e lógico norte-americano Willard van Orman Quine (1908-2000), considerado uma das figuras imponentes do século XX, campeão do naturalismo na filosofia da ciência, pioneiro da matemática e da lógica, entusiasta de línguas e viajante do mundo, impulsionou sua longa trajetória intelectual no Brasil. Mais precisamente em São Paulo, em seu curso na Escola Livre de Sociologia e Política, na época ligada à Universidade de São Paulo, onde escreveu em 1944 seu livro em português “O Sentido da Nova Lógica”. Este foi seu quarto e último livro no tema, que mudou o panorama da lógica e das mais recentes ciências formais no Brasil, antes dominado pelo pensamento escoslático e pela lógica tradicional aristotélica ensinada nos seminários católicos.
Matemáticos e outros cientistas da chamada "área das ciências formais", como lógicos e cientistas da computação, não fazem experiências da maneira que químicos, biólogos ou outros cientistas naturais as fazem. Eles parecem simplesmente pensar, no máximo, com caneta e papel, às vezes com auxílio de editores de texto ou sistemas computadorizados. E, no entanto, tanto matemáticos como outros cientistas em princípio atingem a verdade. Ou pelo menos tentam da melhor maneira possível.
Haveria duas maneiras genuinamente distintas de pensar? Seriam as proposições matemáticas, ou das ciências formais em geral, “analíticas”, no sentido em que são verdadeiras em virtude somente de seu significado, enquanto as proposições das outras ciências ditas naturais seriam “sintéticas”, ou verdadeiras pelo modo como seu significado se relaciona com o mundo? E que dizer das ciências humanas? Filósofos têm debatido se existe uma tal distinção legítima desde que Immanuel Kant usou os termos “analítico” e “sintético” para dividir proposições em duas categorias na sua “Crítica da Razão Pura”(1781).
Quine, que se interessou pelas verdades da matemática, da psicologia e da linguística, é conhecido entre os filósofos pelo seu ataque à distinção entre verdades analíticas e verdades sintéticas. Quine argumentou vivamente que lógica, linguagem e matemática são contínuas à ciência, não separáveis dela.
Em uma carta a seu amigo e mentor Rudolf Carnap, um dos principais expoentes do positivismo lógico, Quine descreveu “O Sentido da Nova Lógica” como uma mudança crucial em seu pensamento em significado e analiticidade (Quine 1990: 299). O que é a "nova lógica", e por que filósofos do mundo todo negligenciaram uma fonte tão interessante até agora? A resposta é que eles simplesmente não conseguiam ler este livro, por estar em português.
O movimento da "nova lógica" resultou na "lógica clássica" e em seus desdobramentos, as "lógicas não-clássicas", ensinadas e estudadas no mundo todo, e onde o grupo de pesquisa em lógica da Unicamp (GLTA, Grupo de Lógica Teórica e Aplicada, reconhecido pelo CNPq) tem papel internacional reconhecido e destacado.
‘The Significance of the New Logic” (editado e traduzido por Walter Carnielli, Frederique Janssen-Lauret, e William Pickering) é a versão revisada e anotada. de “O Sentido da Nova Lógica”, que acaba de ser publicado pela Cambridge University Press.
"Enquanto eu", diz a agora professora Frederique Janssen-Lauret, "uma filósofa da lógica anglófona e estudiosa de Quine, cumpria um pós-doutorado na Unicamp em março de 2014 com uma bolsa financiada pela Capes, o professor Carnielli concebeu o projeto de uma tradução de 'O Sentido da Nova Lógica' em conjunto entre ele, eu e nosso colega Dr. William Pickering, linguista norte-americano bilíngue em inglês e português, pós-doutorando pela Fapesp.
Juntando esforços com Walter Carnielli, colaboramos, na Unicamp, na primeira tradução completa em inglês deste livro”.
Para além dos pós-doutorandos, participou ativamente na discussão, na revisão e no debate acerca de como melhor apresentar ideias quase centenárias em lógica para um público contemporâneo o doutorando Alfredo Roque Freire, bolsista da Fapesp atualmente em um estágio na CUNY em Nova Iorque.
“Quando eu soube que o coordenador do Inter-American Affairs, em Washington, estava se preparando para enviar um filósofo visitante ao Brasil”, conta Quine em Quine (1997), “candidatei-me com sucesso. Fui aconselhado que o francês seria mais amplamente entendido que o inglês, mas optei pelo português. Comecei a participar das aulas de português do segundo ano em Harvard, e sintonizava as rádios de ondas curtas do Brasil. Em maio de 1942, eu voei para o Rio em minha missão de quatro meses”.
Quine havia estado nos Açores, com sua esposa e filhas, e foi em Ponta Delgada que adquiriu os rudimentos do português. “Embarquei então no meu quarto livro, ‘0 Sentido da Nova Lógica’ ”. Enquanto ministrava seu curso, Quine ditou uma tradução dos textos em português de seu livro brasileiro para um estenógrafo inglês em São Paulo sob o título “Notes on existence and necessity” (Journal of Philosophy, 1943), trabalho que se tornou referência sobre o pensamento quineano.
“Eu não sabia”, diz ele ainda em “Mission to Brazil” , “se meu livro estava tendo algum impacto no Brasil, nem se estava fora de catálogo. Observei apenas que o papel, pobre em qualidade, ficou amarelo e frágil ao longo das décadas. Mais de meio século tinha se passado quando, para meu espanto e prazer, os professores Marcelo Tsuji e Newton da Costa conceberam o projeto de uma edição de reimpressão. O professor da Newton da Costa, o mais eminente lógico do Brasil ao longo dos anos, escreveu-me que foi ‘O Sentido da Nova Lógica’ que o levou à profissão. A nova edição atraente, em bom papel, foi publicado em 1996 pela Universidade Federal do Paraná. É um glorioso cumprimento”.
Além da tradução do livro de Quine, agora com as duas edições brasileiras fora de catálogo, o volume em língua inglesa também contém como acompanhamento um prefácio pelos editores e um ensaio filosófico de F. Janssen-Lauret (Janssen-Lauret,2018). Ela explica a importância do livro para a história das visões de Quine sobre analiticidade, e mostra como este livro seminal contém desenvolvimentos igualmente cruciais na filosofia da lógica e nas visões sobre a ontologia de Quine. Outra doutrina quineana chave, primeiramente articulada no livro brasileiro, é a teoria virtual de conjuntos, que teve um papel importante no trabalho posterior de Quine sobre a teoria dos conjuntos (Quine 1963, Quine 1970). Quine também originou vários dos bem-conhecidos argumentos de “On What There Is” (Quine 1948), ou precursores deles, pela primeira vez em “O Sentido da Nova lógica”. Do ponto de vista histórico, o livro revela a influência de importantes filósofos além de Carnap no pensamento de Quine, incluindo Whitehead e Russell, Tarski, e especialmente Frege, a quem Quine atribui o "conteúdo essencial" de seu trabalho sobre referência impura (Quine 2018: 85).
Quine insistia que a lógica é um produto de dois fatores, verdade e gramática, mas argumentava contra a doutrina de que as verdades lógicas são verdadeiras por causa da gramática ou da linguagem. Em vez disso, ao apresentar uma teoria geral da gramática e discutir os limites e possíveis extensões da lógica, Quine mostrou que a lógica não é uma mera questão de palavras, mas os fundamentos e princípios do raciocínio sólido e seguro, dos quais dependem toda a ciência e a tecnologia moderna. O livro que ficou 74 anos inacessível por barreiras linguísticas e edições esgotadas, agora ganha o mundo e mostra como importantes ideias de Quine foram gestadas em seu período sabático no Brasil – e mostra também como o esforço material e intelectual de estágios de pós-doutorado pode ser bem aproveitado.
Quem são
Walter Carnielli é professor titular do Departamento de Filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp na área de Lógica e Fundamentos da Matemática, e membro e ex-diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Universidade. Suas publicações incluem mais de 100 artigos científicos e cerca de 20 livros sobre teoria da computabilidade, lógica modal, teoria dos conjuntos, lógica paraconsistente e combinações de lógicas.
Frederique Janssen-Lauret é atualmente professora de Filosofia na Universidade de Manchester, depois de um estágio de pós-doutorado junto ao Departamento de Filosofia e ao CLE. Ela é coeditora de “Quine an His Place in History” (2015), e seu trabalho sobre Quine em lógica e ontologia foi publicado em “Synthese” e em “The Monist”.
William Pickering é tradutor e editor de trabalhos acadêmicos nas áreas de lógica e linguística, com doutorado em linguística no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Com um pós-doutorado no CLE em 2014 e 2015, Pickering lecionou e publicou sobre as aplicações da teoria dos sistemas complexos em linguística.
Referências
F. Janssen-Lauret (2018) ‘Willard Van Orman Quine’s Philosophical Development in the 1930s and 1940s’, in The Significance of the New Logic (ed. and tr. W. Carnielli, F. Janssen-Lauret, e W. Pickering), Cambridge University Press.
F. Janssen-Lauret (2018b) Note on The Significance of the New Logic
The Reasoner, Volume 12, Number 6 June 2018 pp. 47-48.
W.V. Quine (1943). ‘Notes on Existence and Necessity’, Journal of Philosophy, 40, 113-127.
W.V. Quine (1944) O Sentido da Nova Lógica, São Paulo: Martins.
W.V. Quine (1948) ‘On What There Is’, Review of Metaphysics, 2(5), 21-38.
W.V. Quine (1963) Set Theory and Its Logic, Harvard University Press.
W.V. Quine (1970) Philosophy of Logic, Prentice-Hall.
W.V. Quine (1990) Correspondence with Carnap, in R. Creath (ed.) Dear Carnap, Dear Van, University of California Press, pp. 47-103.
W.V. Quine (2018) ‘The Significance of the New Logic’, in The Significance of the New Logic (ed. and tr. W. Carnielli, F. Janssen-Lauret, and W. Pickering), Cambridge University Press.
W.V. Quine (1997) Mission to Brazil. Logique et Analyse 157, pp. 5-8