Moradia Estudantil da Unicamp passa por mudanças estruturais, privilegiando debate interno e ações coletivas
Luísa nos espera em frente à casa B-08, na Moradia Estudantil da Unicamp. Seu jardim cintila neste inverno sem nuvens. Ela “abriu” vários canteiros no gramado e planta de tudo um pouco: frutas, temperos, ervas medicinais. A estudante de letras vai contando a história de cada muda, como chegou, quem trouxe, onde germinou, como se desenvolveu e, no caso das plantas medicinais, como usar, para que serve. Em frente à porta de entrada, Luísa Ghidotti chama a atenção para a árvore que é soberana naquele jardim: a moringa oleífera. Na delicadeza de tanto verde, a gente percebe: ali tem dedo de criança.
Luísa vive com os filhos Clarisse, de 3 anos, e Rui, de 1 ano, numa das unidades reservadas a estudantes com suas famílias. Ela também recebe uma Bolsa Auxílio Social (BAS), oferecida a estudantes com maior vulnerabilidade social, identificados pelo Serviço de Apoio aos Estudantes (SAE). Durante a semana, juntamente com os filhos, Luísa faz a manutenção e rega os canteiros em frente e ao redor da casa. Aos sábados os três levam para a horta comunitária as mudas que germinaram ou, simplesmente, cuidam do que já está crescendo por lá. Recentemente cercada e fechada com um alambrado, a horta é um projeto em construção na Moradia.
A estudante enxerga naquele espaço de terra um grande potencial para a educação ambiental, mas sabe que trabalhar com a comunidade depende de adesão. “Nós gostaríamos de fazer um debate sobre os conceitos de horta urbana e horta coletiva, porque, talvez, se as pessoas tivessem mais acesso ao espaço, elas pudessem contribuir de várias maneiras”, diz. Luísa pensa dessa maneira, mas há outros estudantes que não têm as mesmas preocupações. A vida no ambiente coletivo é cheia de contrastes e diversidade.
Na Moradia, a beleza dos jardins cultivados por moradores se opõe ao lixo por vezes descartado incorretamente. Segunda-feira é dia de recolher resquícios de atividades de lazer do fim de semana. Mas também há roupas disponíveis em um canto do ponto de ônibus para quem quiser pegar ou deixar mais peças que ainda podem servir para outros moradores. A presença de hóspedes, muitas vezes intercambistas, ou familiares “de passagem”, está na rotina da Moradia. Entender a dinâmica de morar num ambiente compartilhado por tantos – e lidar com ela – requer compreender os direitos e deveres de cada um na comunidade.
“Nós acreditamos que os problemas que acontecem aqui na Moradia Estudantil da Unicamp ocorrem em qualquer comunidade”, afirma a aluna de mestrado em educação e treinel de capoeira angola Mariana de Sousa Lima. Mariana é uma das representantes discentes no Conselho Deliberativo da Moradia, reativado recentemente e que tem sua constituição paritária, ou seja, metade alunos e metade administração. Em reuniões semanais, o Conselho vem procurando uma ampliação do diálogo com os moradores para resolver questões comuns. Um dos trabalhos já realizados foi o debate sobre as regras de vivência, onde se incluem as questões do lixo e das atividades de lazer, entre outras.
Mariana é moradora há sete anos, com o companheiro e o filho. Após a graduação, ela permaneceu no programa porque continuou como aluna. Atualmente faz mestrado no Grupo de Estudos e Pesquisa em Diferenciação Sociocultural (Gepedisc) da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Da mesma forma que Luísa, ocupa um dos 27 estúdios, que são residências voltadas para famílias. No período da noite, Mariana leva adiante o projeto de um núcleo de capoeira na Moradia. Ela e seu companheiro são responsáveis pelos treinos de um grupo de 15 crianças e de outro grupo, formado por adultos.
“Nós pensamos que o espaço público precisa ser compartilhado porque todos nós pagamos impostos. Cuidar ou usufruir dele faz com que as pessoas se sintam pertencentes”, destaca. Para Mariana, isso tem a ver com a capoeira. “A capoeira tem essa ideia de ser uma comunidade litúrgica, ela trabalha o ritual onde o corpo estiver, principalmente o corpo negro. Esta é a conexão que procuramos fazer”.
São quase 30 anos de história desde que foram entregues as primeiras 30 casas, em 1989/90. A moradia foi uma conquista de estudantes que ocuparam salas do Ciclo Básico 1, onde funcionava antigamente a Faculdade de Educação. O movimento começou em meados dos anos 1980 e a ocupação ficou conhecida como “A Taba”.
Na greve de 2016, uma das reivindicações dos estudantes era a ampliação da Moradia. Com o fim do movimento foram criados grupos de trabalho (GTs) para estudar as possibilidades de ampliação e os programas de permanência estudantil da Unicamp. “O GT de ampliação propôs uma nova Moradia, mas veio a crise e o prédio não pode ser construído. Decidimos então retomar as discussões trazendo um novo olhar sobre o que é a moradia estudantil”, salienta a professora Dora Maria Grassi Kassisse, assessora do Gabinete do Reitor e presidente do Conselho Deliberativo da Moradia.
De acordo com a professora, o foco do Conselho é validar as regras de vivência. “A Moradia é um espaço mantido pelo Estado, e que está dentro de um país que tem também suas regras. Queremos validar o que os moradores consideram saudável para o ambiente deles, dentro das regras gerais. Hoje, eles compreendem isso claramente”. A deliberação do Conselho Universitário (Consu) que trata das regras de permanência na vaga da Moradia também está sendo estudada.
Os representantes discentes realizaram um estudo para tentar entender o perfil dos moradores. “O que nós já observamos é que as pessoas aqui não são adolescentes recém-saídos do ensino médio e sustentados pelos pais. Muitos já passaram por uma graduação e resolveram mudar de curso, ou estão na pós-graduação. A grande maioria já morava sozinho, alguns também trabalham e há muitos que fazem trabalhos voluntários o tempo todo”, destaca Mariana.
Para o atual coordenador da Moradia, o professor Marcos Aparecido Lopes, muitas vezes a história de êxitos que o programa proporcionou durante todos esses anos é esquecida. “A Moradia ajudou para que muitos estudantes pudessem se manter na Universidade, se formarem e assumirem postos de trabalho dentro e fora da Unicamp”. Lopes comenta, por exemplo, que vários professores da Unicamp passaram pela moradia. Ele próprio foi um deles, um dos primeiros moradores inclusive.
Cursando filosofia entre 1989 e 1993, o professor também foi bolsista SAE. Filho de pai operário e mãe dona de casa, foi o primeiro da família a fazer faculdade. “Em parte, isso foi possível porque tive condições de estudar, e porque a política de permanência estudantil, nos anos de 1980/90, me permitiu uma formação adequada”. Quando foi convidado para o cargo de coordenador da Moradia, entendeu que aceitar seria uma espécie de compromisso ético.
Há muitos projetos a serem desenvolvidos para melhorar o dia a dia de quem vive na Moradia. O coordenador destaca as tentativas que vêm sendo feitas para a implementação de projetos pilotos de sustentabilidade ligados à energia elétrica, coleta do lixo e no campo das artes.
A Moradia também está inserida no projeto de georreferenciamento da Universidade, realizado pela Diretoria Executiva de Planejamento Integrado (Depi) da Unicamp. O responsável pelo trabalho, Vanderlei Braga, também é ex-morador. “O georreferenciamento é um sistema de informações geográficas em uma base de dados única que elimine redundâncias. O programa reúne um grande acervo físico e humano da Universidade. Todos os bancos de dados e informações podem se transformar em mapas para que a Universidade se conheça melhor”.
No caso da Moradia, acrescenta, o mapa com a geografia do espaço já está pronto para a inserção de todos os dados necessários. O mapa permite que o administrador clique sobre cada casa e verifique número de moradores, problemas de infraestrutura e o que mais for necessário.
Vanderlei ocupou uma vaga na moradia entre 2002 e 2004. No seu entendimento, há pessoas que veem a oferta de moradia como assistencialista, mas essa não é sua visão. “Acho que é uma grande estratégia da Universidade ter uma moradia estudantil para que os alunos não tenham esse tipo de preocupação. É difícil, para muitos, estudar sem esse apoio da Universidade. Certamente essas pessoas deixariam a faculdade, e isso eu via claramente”.
Sobre a diversidade do espaço, “é o Brasil inteiro ali”, pontua o geógrafo. A Moradia acaba sendo outra faculdade porque é preciso aprender a conviver com o outro. “Me lembro da Moradia e me lembro de pessoas que agarram as oportunidades. O pessoal valoriza aquilo, luta para que o programa continue e seja aprimorado. A questão da coletividade é muito forte”.
E talvez seja esta a motivação para a existência, há duas décadas, do cursinho pré-universitário que funciona no Centro de Vivência 2. Flávia Angarten Luiz da Silva, formada em química pela Unicamp, ex-moradora, volta do trabalho numa indústria em Jundiaí para dar aulas no período noturno para a turma que atualmente é de 45 estudantes. Ela também se envolveu com a parte administrativa do cursinho e hoje é uma das coordenadoras.
As aulas começam às 18h45 e terminam às 22h30. Como muita gente vem direto do trabalho, com fome e só o dinheiro do transporte, a organização sempre oferece um jantarzinho simples, feito com recursos levantados em eventos. Dos 40 professores que se revezam nas aulas, 15 ainda são estudantes da Unicamp, que vivem na Moradia.
Há quatro anos o cursinho foi reestruturado, os alunos foram divididos em duas turmas menores e as aprovações aumentaram muito. São em média 30 por ano. “É um projeto popular, para beneficiar pessoas que não teriam acesso à educação. Nós falamos para alunos que vêm de uma realidade social que cria uma defasagem, então não adianta ‘cuspir’ conteúdo, as aulas são diferenciadas”.
Flávia considera ainda a vivência dos alunos no espaço da Moradia uma das lições mais importantes que eles podem aprender. “Nós queremos mostrar que existe esse tipo de assistência, que existe a Moradia, que existe bolsa, que é possível estudar na Unicamp”. Sim, quem não tem dinheiro também pode fazer faculdade, se a faculdade é pública, e se há, como há na Unicamp, um programa de permanência estudantil.
Direito
O acesso à moradia, por aqueles que não tem recursos financeiros, deve ser visto como um direito. É a mudança de paradigma que os representantes discentes propõem para a comunidade. Mariana de Sousa Lima salienta que a Moradia, e o programa de permanência em geral, também estão relacionados com a qualidade da pesquisa que a Universidade produz. “A Unicamp tem cerca de 40 mil alunos, quase metade de pós-graduação. Esses estudantes estão aqui também, por muitas vezes sem bolsa, em uma universidade de pesquisa e precisam de apoio”.
Mariana afirma que os alunos consideram bom o programa de permanência da Unicamp mas acredita que ele não atende a quantidade suficiente de alunos. Hoje, cerca de 2,6 mil alunos são atendidos, com vagas na Moradia ou auxílio da bolsa-moradia, recebido por cerca 1600 estudantes. “A gente acredita que a Unicamp está pensando nisso porque temos conseguido muitos avanços”. Um deles, ela cita, será o espaço noturno para acolhimento de crianças de mães estudantes, que deverá funcionar no espaço atual do berçário do Centro de Convivência Infantil (Ceci).
A professora da Faculdade de Educação (FE) Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis, também membro do GT ampliação, afirma que há hoje uma discussão muito forte das questões psicológicas do estudante dentro da universidade. “A educação integral vai pensar o educando em todos os seus aspectos, inclusive nos seus espaços de estudo. No ensino superior não é diferente e, se a casa dele não é adequada, ele vai ter dificuldades”. Segundo ela, em relação ao ensino superior, as discussões em torno da permanência estudantil estão tomando o lugar do debate sobre o acesso e têm sido objetivo de políticas nacionais.
“A Moradia é o que, para muitos, torna possível cursar a Universidade. Está diretamente ligada ao direito à educação, não é uma dádiva ou um privilégio, mas uma necessidade importantíssima para os estudantes de baixa-renda”. A professora ainda observa que a Unicamp está se firmando como um lugar de segurança de direitos. “Somos uma instituição que defende direitos sociais e precisamos refletir como podemos fazer isso da melhor forma possível. Pensar a Moradia tem tudo a ver com a efetivação adequada, plena, do que vem a ser direito à educação.”.
NO ENTORNO
Altamiro de Freitas, o “Berinha”, sapateiro em Barão Geraldo há 67 anos, veio da cidade paulista de Tupã com dois meses de idade:
Tiche Vianna, diretora e pesquisadora teatral, sócia-fundadora do Barracão Teatro:
Maria Antônia dos Santos Teles, a “Tonha”, dona do restaurante Canto do Acarajé:
Veja sequência de fotos de Antonio Scarpinetti
Para saber mais sobre a Moradia e suas regras de vivência, acesse:
http://www.pme.unicamp.br/
Sobre a política de permanência estudantil, bolsas e vagas na moradia acesse:
https://www.portal.sae.unicamp.br/index.php/pt/