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Francisco Aoki, do 1º paciente com Aids no Brasil à coordenação de laboratório de ponta

Médico infectologista está à frente do LPAids, unidade de pesquisa instalada no Hospital de Clínicas da Unicamp

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Isolamento. Assim era chamado um predinho na Irmandade de Misericórdia da Santa Casa de Campinas, onde um grupo de docentes da área de Moléstias Infecciosas da Unicamp recebeu o primeiro paciente com Aids no Brasil, em 1982, “O predinho foi construído por conta da epidemia de meningite na década de 1970, isolado, porque ninguém queria mexer com doenças infecciosas – oportunidade bem aproveitada para que a nossa área tivesse uma sede própria. Na época todas as áreas médicas da Universidade ainda funcionavam na Santa Casa, especialmente no que dizia respeito a internações”, recorda o professor Francisco Hideo Aoki.

Então ainda residente da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), Aoki hoje coordena o Laboratório de Pesquisas em Aids (LPAids), instalado no Hospital de Clínicas (HC) e que está completando 30 anos de atividades, celebrados em evento no último 10 de agosto. “O primeiro paciente com imunodeficiência adquirida vinha sendo atendido em vários hospitais e chegou muito mal à Enfermaria de Moléstias Infecciosas, com quadro de pneumonia, intensa candidíase (profunda infecção fúngica na cavidade oral), bastante emagrecido e com dificuldade respiratória – sintomas bem característicos de indivíduo imunossuprimido.”

O caso do paciente foi discutido pelos professores Rogério de Jesus Pedro, Luiz Jacintho da Silva (já falecido), Marcelo de Carvalho Ramos, Maria Luiza Moretti e Fernando Lopes Gonçales, conta o coordenador do LPAids. “Ninguém sabia exatamente a causa, mas a literatura informava que americanos constataram, a partir de 1979, que os primeiros casos de infecção fora do comum, antes atribuída a um protozoário, Pneumocystis carinii, na verdade era um fungo, conhecido nos dias atuais como Pneumocystis jirovecii. Os casos vinham ocorrendo em indivíduos jovens de sexo masculino, provavelmente com algum grau de imunossupressão.”

Foto: Scarpa
O médico Francisco Aoki, coordenador do LPAids: ‘Nossos treinamentos servem para estimular as equipes locais e inclusive viraram exemplo para o Ministério da Saúde”  

Aventada esta possibilidade, iniciou-se o tratamento do paciente brasileiro, de maneira empírica, com a medicação considerada ideal e até hoje ministrada para infecções graves causadas por agente infeccioso de tal porte: o antimicrobiano sulfametoxazol em conjunto com trimetoprim. “Infelizmente o quadro era grave demais e o paciente faleceu. Levado para necropsia, as professoras Ingrid Almstalden e Liliana Andrade, do Departamento de Anatomia Patológica, observaram uma dupla infecção pulmonar causada por Pneumocystis carinii e também por cytomegalovírus. Este caso com imunodeficiência foi relatado na revista da Associação Paulista de Medicina. Eu me lembro perfeitamente do paciente e do receio e preconceito de se ter contato com ele, o medo do desconhecido, que perdurou por muito tempo e se vê ainda hoje, inclusive na comunidade médica.”

Segundo Francisco Aoki, não havia exame para comprovar a doença, o que passou a ocorrer a partir de 1985, com uma metodologia ainda inicial. “Era o método de Elisa (Enzyme linked immunossorbent assay), que foi sendo aprimorado a ponto de apresentar, atualmente, um índice de sensibilidade e especificidade de mais de 97/99%, sendo bastante confiável mesmo para testes rápidos. Naquele período se iniciava um périplo de pacientes por nossos ambulatórios de doenças infecciosas. Parte dos ambulatórios já havia migrado para o Hospital de Clínicas no final dos 70, funcionando nas tardes de segunda, quarta e sexta para atender a casos novos e retornos.”

Aoki afirma que de 1983 a 85, a Unicamp chegou a atender 60 pacientes por período de ambulatório, numa procura alimentada pelo receio de estar infectado pelo HIV, sobretudo por quem pertencia aos “grupos de risco” – denominação da época para se referir a homossexuais, bissexuais, heterossexuais promíscuos, prostitutas, travestis e usuários de drogas (especialmente as injetáveis). “Devido ao grande fluxo, e para poder atender a outros tipos de doenças infecciosas, os docentes decidiram abrir um ambulatório dedicado apenas à Aids – ou de doenças e infecções sexualmente transmissíveis (DST/MI), para aliviar o preconceito – que começou a funcionar numa terça-feira pela manhã, em 1985.  Eu havia prestado concurso e entrei para o quadro de  docentes da Unicamp naquele ano, atuando também nesse ambulatório.”

O Laboratório de Pesquisas em Aids foi implantado fisicamente em 1988, no 4º andar do HC, sendo que dois anos antes, a bióloga Neiva Sellan Lopes Gonçales, estimulada por colegas médicos da Hemoterapia, já havia começado a desenvolver estudos por conta própria, inicialmente sorologias, juntamente com Ronald Menghini, na época técnico de laboratório, que depois se graduou em biologia e permanece nos quadros. “Além deles, Moacir Rodrigues, técnico de laboratório hoje aposentado, formou o trio que iniciou as atividades do laboratório, a princípio em locais emprestados. Sempre seguimos um mote: que fazemos exames em laboratório de instituição pública, e para pacientes do Sistema Único de Saúde, que dependem plenamente dos serviços prestados aqui. Qualidade, velocidade de entrega e larga escala de realização sempre foram preocupações constantes dos servidores do LPAids.


Evolução

A evolução do laboratório, diz o docente da Unicamp, deveu-se também à sua inclusão em redes de assistência, a começar pela Rede Nacional de Sorologia e de Triagem para HIV, voltada a diagnóstico. “Mais tarde esta rede foi descentralizada, ficando para os estados, depois para os municípios e agora para cada instituição, que compra os insumos e faz os diagnósticos. Lutamos bastante para pertencer às redes de quantificação de linfócitos [células de defesa do organismo], como LTCD4 e LTCD8, que definem a situação em que se encontra o sistema imunológico do indivíduo: se muito baixo, está imunossuprimido; se elevado, a doença está controlada, com tratamento adequado.”

O laboratório também passou a integrar as redes de carga viral para HIV e de genotipagem, esta última destinada a detectar tipos de resistência a tratamentos. “Com o uso dos medicamentos anti-retrovirais, esses pacientes melhoram, mas vez ou outra, por uso inadequado ou falta de adesão ao tratamento, podem induzir ao desenvolvimento de resistência do vírus a essas drogas. Periodicamente surgem financiamentos para pesquisas em outras áreas e auxílios extras para diagnósticos em doenças infecciosas graves; ou para doenças endêmicas como a dengue, sempre com colegas da área de infectologia. A vida do laboratório é mais ou menos essa.”


Qualidade

A bióloga Marcina Garcia, supervisora técnica do LPAids, reitera que o corpo de profissionais tem sempre em mente que está trabalhando para o paciente. “A preocupação é controlar o material que chega (adequadamente acondicionado e transportado de acordo com as portarias ministeriais), agilizar o resultado dos exames e trabalhar com qualidade. Preservamos muito a questão da qualidade dos exames, sendo este o objetivo do curso que oferecemos aos municípios para que garantam as boas condições do material transportado e permitam que realizemos os exames rapidamente – o prazo é de quinze dias, mas estamos entregando no máximo em 48 horas.”

Foto: Scarpa
Profissional do LPAids prepara equipamentos e amostras para extração da carga viral de HIV e hepatites

De acordo com Francisco Aoki, existem normas para amostras biológicas que o laboratório precisa cumprir e que envolvem também a área pré-analítica, ou seja, no ambulatório dos municípios, onde enfermeiros e técnicos coletam e acondicionam as amostras em recipiente apropriado. “O material deve ser transportado em temperatura e tempo determinados, e por motorista treinado. Nossos treinamentos servem para estimular as equipes locais e inclusive viraram exemplo para o Ministério da Saúde, que propõe a prática em mais de 50 cidades das Diretorias Regionais de Campinas e de São João da Boa Vista.”

Marcina Garcia informa que hoje são realizados, por mês, aproximadamente 2.200 exames de carga viral; entre 1.600 e 1.800 de linfócito TCD4; e de 1.300 a 1.600 triagens (sorologia). Diariamente, são atendidos entre 200 e 220 pacientes da macrorregião. O professor Aoki observa que a carga de trabalho aumentou com o estímulo do governo federal ao diagnóstico de hepatites B e C, com a meta de extinguir as infecções pelo vírus até 2030. “A pessoa com hepatite tem 80% de chances de desenvolver hepatite crônica e, portanto, cirrose. O fígado passa a funcionar tão mal que a única solução é o transplante, sendo que há fila de doares e muitos pacientes morrem à espera do órgão. Quanto mais precoce o diagnóstico e o tratamento, maior a possibilidade de cura, já que os antivirais são muito potentes.”


Estabilização

O docente da FCM observa certa estabilização da aids em algumas regiões do Brasil, mas ressalva que estabilização não significa que os números deixaram de ser ascendentes. “A velocidade de propagação já não é a mesma de anteriormente. As epidemias em geral são assim: há uma explosão e quando vem o processo de controle e tratamento, o número de novos casos começa a estabilizar; com o tempo, quando se descobre novas formas de tratamento, evitando mecanismos de transmissão e com prevenções adequadas, ocorre uma queda. Estamos ainda num patamar de estabilização e, dependendo da área ou região do país, ainda temos aumento do número de casos.”

O coordenador do LPAids é de opinião que os medicamentos de hoje controlam bem a doença, induzindo menos efeitos colaterais e com quantidade reduzida de pílulas ou comprimidos, o que facilita a adesão ao tratamento. “Lá no início da epidemia, para combater os vários tipos infecções oportunísticas, como toxoplasmose e tuberculose (e ao mesmo tempo), chegava-se a tomar mais de 50 comprimidos por dia, junto com o tratamento específico da aids. A dose do AZT era de 1.600 miligramas (16 cápsulas de 100mg) e atualmente é de 300mg, pois estudos indicaram ser inútil uma dosagem maior. Além do AZT, temos agora muito mais anti-retrovirais, que inibem os vírus em pontos diferentes, como a Lamivudina (300mg) ou o Tenofovir (300), mais o Dolutegravir – que ainda juntaram em um só comprimido. Está muito mais facilitado o tratamento em termos de posologia.”

Foto: Scarpa
Amostras de exames feitos no LPAids

Francisco Aoki admite que, como a Aids já não é vista como letal, há o risco de relaxamento da população nas relações sexuais, com menor rigor na utilização de preservativos, principalmente entre os jovens. “Atualmente, o número de casos de sífilis e papilomavírus traz ao governo a preocupação de promover uma vacinação para grupos específicos de jovens que vão iniciar a vida sexual – e no bojo dessas doenças corre junto o HIV. Vemos jovens que não estão se cuidando e se infectando, e isso é preocupante. É preciso tomar o devido cuidado de usar preservativos. Na dúvida, basta procurar o serviço da unidade básica de saúde, onde geralmente se faz quatro exames: hepatites B e C, sífilis e HIV. É muito rápido.”


Tiro no pé

Em que pese o bem sucedido serviço prestado pelo LPAids em 30 anos, o coordenador vê com extrema preocupação o corte de gastos públicos em prática pelo governo, principalmente na área da saúde. “Há uma luta constante em lidar com as dificuldades relacionadas aos recursos orçamentários de ordem pública. É uma luta contínua, desde que o SUS foi criado: em determinados anos o financiamento se estabiliza, em outros decai, trazendo grandes dificuldades para o sistema de atendimento público. Ainda existem centenas, talvez milhares de municípios dependentes unicamente do programa Mais Médicos, apenas para citar um pequeno exemplo. Agora ouvimos que a Capes não terá condições de liberar as bolsas a partir de 2019. O país dá um tiro no próprio pé, pois decisões como esta podem conduzir o país a uma situação cada vez mais subserviente. E nós, que batalhamos nesta micro-área para que tudo funcione bem, devemos lutar com todo o arsenal democrático para que o Brasil volte a se desenvolver econômica e socialmente.”

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Em laboratório médico, imagem frontal e de busto, homem sentado, ao centro na imagem, fala gesticulando com o braço direito, mantendo-o recolhido e levemente erguido para o alto, apontando com o dedo indicador para cima. Às costas dele, na junção das paredes, há uma bancada de madeira na cor branca, sendo que sobre ela há vários equipamentos de laboratório. Ao fundo, à esquerda na imagem, há uma janela de vidro transparente, permitindo ver outras pessoas em pé do lado de fora. Imagem 1 de 1.

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