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Arte e ecologia na linha de frente contra a ditatura militar

Projeto de historiadora detalha engajamento de artistas que tinham como foco a preservação ambiental

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Em 1972, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) organizou a exposição Hileia Amazônica, segundo o diretor Pietro Maria Bardi para tornar público um pouco da história e da vida daquela região, uma vastidão então ainda desconhecida e ameaçada por projetos grandiosos como a rodovia Transamazônica, o Projeto Carajás para exploração de minérios e a construção da hidroelétrica de Tucuruí. Tratava-se de trazer uma imagem da floresta amazônica que servisse de contraponto crítico à intensa campanha desenvolvimentista promovida pelo governo militar; uma forma de denúncia e resistência aos projetos intervencionistas. Porém, não é com este foco que Hileia Amazônica aparece na história da arte brasileira.

“Arte, Ecologia e Engajamento Político no Brasil (1964-1985)” é um projeto de pesquisa da professora Claudia Valladão de Mattos Avolese, do Instituto de Artes (IA), que visa investigar o envolvimento e atuação de artistas em questões ecológicas durante o período da ditadura militar. “A principal hipótese do projeto é de que o engajamento de artistas em causas ecológicas constituiu, ao lado do engajamento político-partidário, um campo importante de oposição e resistência ao governo militar. O objetivo da pesquisa é recuperar uma parte significativa da história da arte do período, que se relaciona também com movimentos importantes no âmbito internacional”, explica a docente.

Claudia Mattos Avolese conta que começou a trabalhar com o tema da arte e ecologia há cerca de cinco anos, meio que por acaso, ao estudar uma obra do século XIX,

Vista de um mato virgem que está se reduzindo a carvão, de Félix-Émile Taunay, no Museu Nacional de Belas Artes – o interesse pela temática a fez pleitear e obter junto ao CNPq uma Bolsa Produtividade em Pesquisa, que espera ter renovado para este novo projeto. “Minhas pesquisas deixam claro que nos anos 1840, no Brasil recém-independente, houve um profundo debate envolvendo vários artistas do período, numa tentativa de pensar a questão do ambiente, em o que fazer com nosso patrimônio natural. E isso é pouco conhecido no campo da história da arte.”

Foto: Luis Paulo Silva
A professora Claudia Valladão de Mattos Avolese: “O objetivo da pesquisa é recuperar uma parte significativa da história da arte do período, que se relaciona também com movimentos importantes no âmbito internacional”

Segundo a historiadora, a utilização dos recursos ambientais e os danos dela decorrentes aparecem como preocupação entre os cientistas do século XIX de forma geral, por causa de várias secas traumáticas e da crise de abastecimento de água na capital Rio de Janeiro. “As discussões sobre as razões da escassez se davam no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o lugar de encontro de intelectuais. E a melhor hipótese, que de fato fazia sentido, era de que a monocultura do café, que começou nos morros do Rio de Janeiro, devastou a região e as nascentes da água que descia das montanhas e supria a cidade estavam secando.”

Claudia afirma que este debate foi tão importante que, em última instância, resultou no projeto de reflorestamento da Tijuca, na década de 1870. “À medida que a cultura do café foi deixando o Rio de Janeiro, as montanhas ficaram abandonadas em um estado como vemos hoje no Vale do Paraíba totalmente desmatado. A floresta da Tijuca foi um dos primeiros projetos de reflorestamento do mundo. Hoje as pessoas acham que se trata de mata nativa, quando é secundária – os botânicos reconhecem espécies que não são do local, foram replantadas. O fato é que a preocupação com o ambiente no Brasil começou por uma questão prática: a falta de água.”

Os artistas da época, acrescenta a professora da Unicamp, avançavam em outras frentes, a exemplo de Benedito Calixto, que pintaria muitos quadros denunciando principalmente a destruição das matas. “Muitos viajantes também trouxeram a questão para o Brasil, como os alemães Carl von Martius e Johan Rugendas, que comentavam a devastação que ocorria nas Américas; antes deles, Alexander von Humboldt focava a diminuição do volume de água em um lago da Venezuela, o que atribuía ao desmatamento da região. Outra figura central foi José Bonifácio, ao repercutir uma discussão que se dava no Jardim Botânico de Portugal em torno de Domenico Vandelli, que pensava todas essas questões dentro da chave ambiental.”


Ano em Harvard

Claudia Mattos Avolese escreveu artigos sobre o momento pós-independência, mas constatou que a relação entre arte e ecologia é um tema maior da história da arte no Brasil. “Logo percebi que o engajamento de artistas em questões ecológicas ocorre em outros momentos, como na contemporaneidade, quando se tornam extremamente críticos. E outro momento foi o período da ditadura militar, de grandes projetos de Estado impactando fortemente o patrimônio natural. Por outro lado, houve o crescimento brutal de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, por conta das migrações nordestinas, gerando problemas como da poluição e do lixo.”

Os primeiros passos para esta pesquisa no período da ditadura, diz a pesquisadora, foram iniciados no ano passado, que passou em Harvard como professora visitante e aproveitou para coletar bibliografia sobre o nascimento do movimento ecológico na década de 1970, nos EUA e Europa. “Surgiam as primeiras instituições de proteção ao meio ambiente e criava-se o Dia da Terra, fortalecendo a ideia de consciência ambiental. Minha proposta é investigar como esse movimento chegou ao Brasil, como os artistas se envolveram e como ele transformou a produção artística. Além disso, vários artistas passaram por períodos de autoexílio ou exílio no exterior, retornando com uma visão nova da arte, do seu potencial de contestação e de transformação.”

Reprodução
Anna Bella Geiger, “Brasil Nativo – Brasil Alienígena”, 1977

A historiadora identificou inúmeros artistas brasileiros que produziram obras vinculadas a questões ecológicas, ressaltando que havia uma interação com o ambiente americano, onde a história da arte sofria uma revisão. “Apareceram movimentos muito importantes nos anos 70, como o Land art, que significou a retirada dos artistas das galerias para trabalhos com a paisagem. Robert Smithson, expoente desse movimento, que criou a obra Spiral Jetty, iria escrever muito sobre a degradação ambiental e a importância da arte se engajar em questões ecológicas. Recentemente o historiador da arte James Nisbet escreveu um livro sobre o tema da relação entre arte e ecologia nos anos 60 e 70 nos Estados Unidos que gerou uma revisão importante da produção artística do período.


Pesquisa sistemática

Claudia, que teve o segundo semestre em Harvard financiado pela Fapesp, retornou ao Brasil em fevereiro, agora para uma pesquisa sistemática. Ela já realizou um levantamento nos jornais brasileiros e encontrou artigos e mesmo exposições voltados ao tema, mas que não ficaram registrados na história da arte do período da ditadura militar. “A bibliografia valoriza muito – e é natural – a relação entre arte e política no sentido tradicional: a relação dos artistas com a esquerda, seu envolvimento no movimento contra a ditadura e a necessidade de mudar de linguagem para uma contestação velada. O tema ecológico não aparece, mas minha tese é de que foi uma entrada importante de crítica ao governo, para construção de novas utopias, sem sofrer uma censura direta como à via política.”

De acordo com a pesquisadora, em Hileia Amazônica foram expostos trabalhos dos fotógrafos Claudia Andujar e George Love, que haviam percorrido o território de Roraima em 1970 para produzir uma reportagem sobre a região para a revista Realidade. “Claudia Andujar me disse que essa viagem foi decisiva para o seu engajamento político a favor da causa indígena e da preservação do seu ambiente natural. Diante da propaganda do governo militar pregando levar 'o povo sem terra do Nordeste para uma terra sem povos, recolonizando a Amazônia', a exposição mostrava justamente que a região já era povoada e tinha a sua história e cultura.”

No mês passado, a historiadora esteve na residência de Claudio Tozzi, que juntamente com Rubens Gerchman organizou uma exposição sobre “Poluição” em São Paulo. “Ele me disse que, de fato, Hileia Amazônica foi um marco na arte brasileira, e que o tema tornou-se especialmente significativo para ele ao participar da Bienal de Veneza de 1976, sobre “ambiente” (environment em inglês). Maria Tomaselli trabalhou bastante com o tema indígena no período militar e, segundo ela, devido ao que viu na exposição do Masp. Uma série de artistas – Cildo Meireles, Ana Bella Geiger, Miguel Abellá – tem uma produção dentro da chave ambiental. Estão vivos na maioria e pretendo entrevistá-los ao longo do ano.”

Foto: Reprodução
Franz Krajcberg, “A Flor do Mangue”, 3 x 9 m, 1970

A historiadora lembra ainda que, durante o governo militar, o movimento ecológico ganhou muita força no Sul do país, devido ao processo de desocupação do parque das Sete Quedas para a instalação da represa de Itaipu, e que muitos artistas se envolveram na resistência organizando happenings, exposições e grafites nas ruas da cidade. “Já no final dos 70 e início dos 80, vieram os protestos contra a tentativa de se construir uma usina nuclear na Jureia, litoral norte de São Paulo, o que foi extremamente mobilizador da comunidade intelectual e também artística. Seria estranho pensar que tudo aquilo estava acontecendo no período da ditadura sem o envolvimento de artistas.”

Claudia Mattos Avolese adianta que pretende escrever um livro que pelo menos dê conta destes três momentos da arte relacionada à ecologia e ao engajamento político no Brasil: o século 19, o período da ditadura e um pouco da cena contemporânea. “A história é sempre seletiva, escolhendo um eixo de interpretação e muitas vezes deixando de lado fatos que pareciam menos relevantes, mas que retrospectivamente se tornam importantes: em função da dimensão que a temática ecológica ganhou nos tempos atuais, nos voltamos para o passado e vemos que ela já estava presente, havendo uma história a resgatar e incorporar em nossas narrativas, a fim de entender a história da arte de forma mais rica e menos unidirecionada.”

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Imagem estilizada e em perspectiva da letra a e da letra r, bastante ampliadas e em tom de azul. Elas são elaboradas em madeira e parecem apoiadas sobre alguma superfície preta. Imagem 1 de 1.

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