Pesquisadores empregam pela primeira vez a microtomografia, que permite a geração de imagens internas em 2D e 3D
Estudo desenvolvido por pesquisadores da Unicamp em colaboração com a Universidade de Harvard (EUA) utilizou pela primeira vez a microtomografia computadorizada de raios-x (Micro-CT) para descrever a anatomia detalhada de pequenos bivalves marinhos, com comprimentos inferiores a 3 milímetros. A técnica permite a geração de imagens internas (2D e 3D) com elevada resolução dos espécimes analisados e a consequente dissecção virtual de seus órgãos. Graças ao recurso, os animais não precisam ser destruídos. O trabalho deu origem a artigo recém-publicado em uma das principais revistas sobre zoologia do mundo, o Zoological Journal of the Linnean Society.
A pesquisa foi realizada durante o doutorado sanduíche do zoólogo e pesquisador Fabrizio Marcondes Machado. Na Unicamp, ele foi orientado pelo professor Flávio Dias Passos, do Departamento de Biologia Animal do Instituto de Biologia (IB). Em Harvard, no Department of Organismic & Evolutionay Biolology (OEB), o orientador foi o professor Gonzalo Giribet, do giribetgroup.oeb.harvard.edu. De acordo com Machado, os resultados do estudo foram muito promissores. “Nós concluímos que o uso do Micro-CT, ferramenta não invasiva e não destrutiva, pode vir a substituir as técnicas clássicas como a dissecção e a histologia que destroem e/ou alteram permanentemente os espécimes analisados”, sustenta.
Por causa da sua originalidade, o trabalho, acrescenta o zoólogo, deve servir de base para que o uso do Micro-CT avance ainda mais entre os pesquisadores, inclusive em áreas que se ocupem do estudo de outros organismos marinhos. Segundo ele, existem alguns pontos em que a microtomografia precisa ser melhorada, como a capacidade de diferenciar estruturas de densidade semelhantes e a resolução das imagens de pequenas estruturas. “A ferramenta não substitui totalmente algumas técnicas, mas está caminhando para isso. Imagino que daqui a no máximo dez anos nós não vamos mais precisar dissecar um indivíduo para descrever as suas partes internas”, arrisca.
O professor Passos assinala a importância desse avanço, lembrando que, em alguns casos, os espécimes analisados são muito antigos e, às vezes, únicos. “Ou seja, sem o uso do Micro-CT esse indivíduo teria que ser destruído para ser estudado sob o ponto de vista anatômico. Agora, com esse novo recurso, nós podemos dissecá-lo apenas virtualmente e preservá-lo em seguida”, argumenta. O microtomógrafo, explica o docente, proporciona não somente reconstruções volumétricas em 3D, mas também permite que os órgãos dos moluscos marinhos sejam analisados por meio de cortes virtuais em 2D.
Isso possibilita que os pesquisadores enxerguem as fatias (secções) de um mesmo indivíduo em três diferentes planos: transversal, sagital e frontal. “Um dado importante sobre essa técnica é que ela possibilita que as descrições deixem de ser feitas com base em desenhos e passem a ser realizadas a partir de imagens. O desenho exige talento por parte do autor e está sujeito à interpretação deste. A imagem, não. Ela retrata o real”, argumenta o orientador da tese.
Profundezas do mar
O autor do trabalho conta que analisou oito espécies de bivalves. Esses moluscos recebem tal classificação porque têm o corpo protegido por uma concha com duas valvas, como é o caso das ostras, vieiras e mexilhões. Machado selecionou animais de difícil coleta, que ocorrem em águas profundas, em países como Brasil, Argentina e região do Caribe. “Escolhemos esse grupo por ser constituído de espécies pouco conhecidas anatomicamente. Nós estudamos desde animais coletados recentemente, mas também indivíduos coletados há mais de 50 anos, como foi o caso de um espécime que pertence ao Museu de Harvard”, detalha o zoólogo.
Um ponto destacado por orientador e orientado é a possibilidade da construção de um repositório virtual nacional, que possa armazenar e disponibilizar as imagens produzidas via Micro-CT por pesquisadores do mundo todo. “O acesso ao material permitirá que o interessado disseque e reconstrua os indivíduos analisados de diferentes maneiras, de modo a eliminar quaisquer dúvidas. Para fazer uma analogia com o futebol, essa ferramenta tem tudo para se tornar o VAR [árbitro de vídeo] dos anatomistas”, compara, em tom bem-humorado, o autor da tese. O pesquisador destaca ainda que o conjunto de dados tomográficos das espécies estudadas no artigo está disponível online no Harvard Dataverse, repositório virtual de acesso livre, permitindo a qualquer pesquisador do mundo reanalisar a anatomia desses bivalves.
Machado conta que escolheu a Universidade de Harvard para fazer o doutorado sanduíche por dois motivos principalmente. Primeiro, porque o professor Gonzalo Giribet é uma das maiores autoridades mundiais em filogenia de invertebrados. É, por assim dizer, “o cara” em matéria de evolução. Segundo, porque na instituição norte-americana o zoólogo tinha maior acesso ao microtomógrafo. “Aqui no Brasil, não temos tantos equipamentos assim disponíveis”, justifica.
Antes de submeter o seu projeto de doutorado a Harvard, o zoólogo utilizou inicialmente os microtomógrafos da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) e também do Instituto de Biologia (IB), ambos da Unicamp. “Os resultados não foram tão bons porque faltavam alguns ajustes na solução de contraste e também porque descobri que cada equipamento tem um nível de resolução diferente. Ou seja, os equipamentos da FOP e do IB não eram os mais indicados para a aquisição de imagens de pequenos moluscos”. Posteriormente, o pesquisador usou o equipamento do Brazilian Nanotechnology National Laboratory, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), localizado em Campinas, onde parte das imagens tomográficas adquiridas compôs o artigo recém-publicado.
Ocorre que a tecnologia tem uma enorme procura por parte de pesquisadores de todo o país, das mais diversas áreas do conhecimento. “Os interessados têm que fazer agendamento. Dá para usar o microtomógrafo, no máximo, duas a três vezes por ano. Em Harvard, no laboratório do professor Gonzalo, eu cheguei a usar o equipamento inúmeras vezes. Numa oportunidade, fiz isso todos os dias durante uma semana”, relata Machado, que contou com bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão vinculado ao Ministério da Educação, e com apoio do Museum of Comparative Zoology de Harvard. O pesquisador mantém uma página com informações sobre pesquisas em sua área de atuação.
Leia o artigo no Zoological Journal of the Linnean Society