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A construção de sentido na fotografia: singularidades e justaposições

Felipe Abreu escreve sobre a fuga da imagem-síntese, materializada em elementos narrativos presentes em fotolivros e livros de arte

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Produtores de imagens fotográficas carregaram consigo durante muito tempo o desejo de criar imagens-síntese, que dessem conta de transmitir uma narrativa completa dentro dos limites de seu quadro. Pode-se argumentar que este desejo vem da tradição jornalística, grandemente desenvolvida ao longo do século XX e calcada nas criações de Henri Cartier-Bresson, da agência Magnum e de tantos outros grandes fotógrafos. Existem, além do mundo da fotografia noticiosa, artistas que encaram a fotografia de forma relativamente similar, criando projetos que têm em cada uma de suas fotografias uma força descomunal, como Andreas Gursky e Hiroshi Sugimoto, como um breve exemplo.

Foto: Reprodução
“Cabanagem”, obra de André Penteado

Este desejo é relativizado quando encaramos a imagem fotográfica apresentada como publicação, especialmente em projetos que entendem este como seu formato final, caso de fotolivros e livros de artista. Esta fuga da imagem-síntese não é algo recente dentro deste universo. Ao falar sobre American Photographs, principal livro de Walker Evans e um dos pilares dentro desta tradição fotográfica, o crítico Gerry Badger afirma:

“Ele não só deu uma ideia do que um fotolivro era capaz de fazer, mas também do que a própria fotografia podia ser – um meio que não era apenas um método de documentação ou um acessório à arte ‘de verdade’, e sim, ele próprio, uma arte dotada de estrutura intricada e de coerência intelectual. Fotografias Americanas demonstrou, como pretendia Evans, que a fotografia era em essência uma arte literária, na qual fotos ordenadas em uma sequência específica podiam dizer algo mais que a mera soma de suas partes isoladas”.

(BADGER, 2015)

Este entendimento da imagem fotográfica como um elemento narrativo que cresce em sentido ao ser apresentado como sequência é assunto cada vez mais central dentro deste campo de estudo e criação, especialmente graças às contribuições do próprio Gerry Badger e de Marin Parr com a trinca The Photobook: A History.

Foto: Reprodução
“The Photobook: A History”, de Gerry Badger e de Marin Parr

Com esta aproximação entre fotografia, cinema e literatura, a maneira de se olhar para um ensaio fotográfico muda. Além da atenção às imagens que o compõe, é essencial construir sentido para as conexões entre as imagens, suas vizinhas e companheiras próximas, deixando para trás a ideia de uma imagem-síntese e abraçando uma construção narrativa que se dá não pelo conteúdo interno de cada quadro, mas pelas possibilidades de sentido criadas por suas justaposições. Tate Shaw, diretor do Visual Studies Workshop, resume muito bem este paradigma criativo em seu texto Strategic Linkage: Binding and Sequence in Photobooks, publicado na segunda edição do The Photobook Review:

“A maneira com que imagens e texto se vinculam para criar narrativas é crítica para a sequência fotográfica. Uso a palavra vincular no sentido conceitual, como imagens mentalmente se unem ou a um texto. A sequência fotográfica combina imagens em uma ordem específica para criar um contexto para que o sentido seja inferido entre as imagens. (...) Este vínculo compele o leitor a dar uma única e predominante identidade às duas imagens e reconhecê-las como um todo. Um salto narrativo é requerido para ver as duas imagens como uma única entidade. Para formar um desfecho, nós pensamos sobre os motivos que elas estão juntos, apesar de que este processo de pensamento nem sempre é inteiramente consciente”.

(Shaw, 2012, p.2)

O estudo destes processos narrativos em publicações fotográficas tem se apresentado como um rico campo de atenção, despertando interesses em espaços acadêmicos [1] e de criação artística, especialmente através da construção de grupos de estudo [2] e produção sobre o tema. Ao encarar as construções de sentido desenvolvidas entre as imagens, suas possibilidades narrativas se tornam mais amplas e mutantes, se transformando consideravelmente de acordo com as aproximações visuais propostas pelo autor ou editor do projeto. Esta liberdade criativa permite a criação de obras marcantes como Cabanagem e Missão Francesa, de André Penteado, Centro, de Felipe Russo, e Ressaca Tropical, de Jonhatas de Andrade, para citar apenas alguns dos fotolivros brasileiros de narrativa mais envolvente publicados nos últimos anos. Além disso, este entendimento propicia uma nova etapa em um processo de alfabetização visual, como divertidamente aponta o livro This Equals That, de Jason Fulford e Tamara Shopsin.

Foto: Reprodução
“American Photographs”, principal livro de Walker Evans

Há uma infinidade de lógicas e estilos de sequenciamento visual presentes em fotolivros, com projetos que se valem deste formato para apresentar narrativas documentais ultra detalhadas, construir intrigantes ficções, dar novo sentido a arquivos fotográficos, revisitar eventos históricos, criar atmosferas visuais próprias, tudo isso com abordagens lineares e não lineares, provando que não há grandes restrições para criação dentro deste universo narrativo. A grande mudança em relação à lógica pensada para a imagem-síntese é que o entendimento da fotografia deixa de ser restrito ao seu quadro e passa a ser construído também pelo espaço entre as imagens, abrindo uma infinidade de possibilidades de conexão e construção de sentido dentro destas obras que pensam a sequência fotográfica como um de suas principais ferramentas narrativas.


Felipe Abreu é doutorando no programa de Artes Visuais do Instituto de Artes (IA) da Unicamp e atua como editor da revista OLD: www.revistaold.com

 

Bibliografia:

BADGER, G. Por que fotolivros são importantes. Revista Zum, 2015.

SHAW, T. Strategic Linkage: Binding and Sequence in Photobooks. Photobook Review, n. 002, p. 2–3, 2012.

 

Publicações citadas:

BADGER, G.; PARR, M. The Photobook: A History, vols. I,II e III. Londres: Phaidon, 2004-2014.

EVANS, W. American Photographs. Edição especial de 75º aniversário. Nova Iorque: Museum of Modern Art, 2012.

FULFORD, J.; SHOPSIN, T. This Equals That. Nova Iorque: Aperture, 2014.

PENTEADO, A. Cabanagem. São Paulo: Ed. Madalena, 2015.

PENTEADO, A. Missão Francesa. São Paulo: Ed. Madalena, 2017.

RUSSO, F. Centro. São Paulo: Autopublicado, 2014.

ANDRADE, J. Ressaca Tropical. São Paulo: Ed. Ubu, 2017.

 



[1] O Instituto de Artes da Unicamp se apresenta como um dos polos de pesquisa no tema, com trabalhos ligados ao tema de Fernanda Grigolin, Lívia Aquino, Beatriz Vampré, entre outros. Além da Unicamp, USP e UFRGS também possuem marcantes trabalhos sobre a temática de publicações fotográficas.

[2] Estão entre os principais grupos de estudo e criação fotográfica no Brasil os de Marco Antonio Filho e Tiago Coelho, de Walter Costa, de André Penteado e de Rony Maltz, espalhados entre as regiões sul e sudeste do país.

 

Imagem de capa JU-online
“Centro”, de Felipe Russo | Foto: Reprodução

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