A partir de estudo etnográfico e da biografia do “Hitler americano”, antropóloga detalha as conexões do movimento em escala global, inclusive no Brasil
Observando o ódio é o título da tese de doutorado que marca mais de 15 anos de pesquisas da antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias junto a sites, blogs, fóruns e comunidades neonazistas na rede mundial de computadores, e em documentos e atividades não digitais. Ela buscou, basicamente, descrever o que pensam esses extremistas de direita, como cultivam o ódio e as suas formas de ação. O subtítulo “Entre uma etnografia do neonazismo e a biografia de David Lane” denota o foco, nesta tese, no líder chamado de “Hitler americano” e “Herói da guerra racial”, em seu papel na formação do atual estágio do neonazismo nos Estados Unidos e no mundo, na repercussão do movimento no Brasil e em como a obra do biografado vem sendo usada para formatar uma união da extrema direita no âmbito global.
“Em 2002, quando comecei a pesquisar a extrema direita no Brasil e no mundo, as pessoas não viam sentido nesse esforço, porque não acreditavam na existência de um movimento neonazista. Infelizmente, os dados apontaram para um caminho que se mostrou verdadeiro. Agora as pessoas estão muito conscientes de que o fenômeno existe”, recorda Adriana Dias, que foi orientada pela professora Suely Kofes, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. “No meu mestrado em 2007, a situação já estava muito mais grave do que quando iniciei as pesquisas. E, hoje, vivemos o que considero um tsunami do movimento da direita.”
A antropóloga esclarece que o meio digital a favorece, por ser também programadora, tendo facilidade para lidar com banco de dados, softwares e redes. Mas ela própria custou a acreditar nos números. “Sou muito exigente com meus dados e, na primeira vez que os vi, achei que estavam mentindo, que não era possível o fenômeno ser tão grande. Levantei números de sites, postagens, downloads em redes, inscritos e postagens em fóruns, integrantes em comunidades como Facebook e Twitter. Há uma postagem antissemita no Twitter a cada quatro segundos; uma postagem em português contra negros, pessoas com deficiência e LGBTs a cada 8 segundos. David Lane, mesmo morto, recebe um mínimo de 500 tweets por dia – e em dias especiais, como do seu aniversário ou da morte, o número atinge milhões.”
Justamente para ter certeza dos números, Adriana Dias trabalhou com muitas ferramentas, várias delas pouco conhecidas pela antropologia, como Gephi e N*Vivo, e principalmente a rede Thor, a fim de acessar a denominada Deep Web, formada com muito material não indexado, mas onde circulam também conteúdos de outros tipos: acadêmicos, pornográficos, ativistas e criminosos, entre outros. “Trabalhei com algoritmos que buscam palavras-chave e criei ferramentas que fornecem extratos numéricos que eu não teria como manipular. Utilizei quatro ferramentas de análise quantitativa (no mestrado foram duas), sendo que uma confirma o resultado da outra. Quem mais gostaria que esses dados não existissem sou eu, mas se trata do meu objeto de pesquisa.”
Personagem central
Adriana conta que a trajetória de David Eden Lane começou na National Alliance, grupo supremacista branco formado por William Pierce, um PhD em física que havia pertencido ao Partido Nazista Americano fundado por George Rockwell. “Quando Rockwell foi assassinado por um membro do próprio partido, Pierce usou um pseudônimo para escrever O Diário de Turner, em que conta a história de um grupo de jovens que derrubaria o Estado americano através de uma série de roubos e assassinatos – e então David Lane ajudou na formação de The Order, grupo que tentou transformar a história de ficção em realidade.”
Entre os crimes praticados pela Ordem estão o assalto à transportadora de valores Brink’s, num montante que hoje equivaleria a mais de 1 milhão de dólares, e o assassinato do judeu Alan Berg, radialista de talk show e crítico da Ku Klux Klan e do Partido Nazista Americano. “A Ordem foi fundada em 1983, o assassinato ocorreu em 84 e David Lane ficou foragido até março de 85, quando acabou preso e condenado em júri, mas por assalto a banco, com base em lei antiterrorista contra aqueles que atentam contra a estabilidade do governo americano. Ele morreu na prisão em 2007, quando eu estava defendendo meu mestrado – e aí começaram a surgir inúmeros textos sobre sua morte e importância.”
A autora da tese ainda não tinha consciência do papel de liderança de Lane, mas já o conhecia por conta de 14 Palavras: “We must secure the existence of our people and a future for White Children” (Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as Crianças Brancas), slogan que teria sido inspirado em um trecho de 88 palavras do livro Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler. “Esse livro em que Hitler expressou suas ideias antissemitas, racistas e nacional-socialistas se tornou um guia ideológico e de ação que ainda hoje influencia os neonazistas. Li Mein Kampf dezenas de vezes para desconstruir os textos de David Lane – não que sejam plágios, diria que as palavras são bem reinterpretadas para o contexto dos Estados Unidos, e daí o ‘Hitler americano’”.
Ao pesquisar a vida de Lane mais profundamente para o doutorado, Adriana Dias percebeu uma série de aspectos irreais, como o seu “casamento” com Katja Lane (ou Katuscha Maddox), com a qual, na verdade, só se relacionou por cartas da prisão. “Para o movimento interessava que ele permanecesse casado, mas é fato que Katja fugiu com uma fortuna que seus livros renderam. Ela o ajudou a escrever o primeiro livro, Creed of Iron, sobre Odinismo – a crença nos deuses germânicos, sendo Odin a figura central –, em que Lane se coloca como profeta da raça ariana e prevê a chegada de um novo Cristo. Ele quis satisfazer a demanda de religiosidade e de identidade cristã na América do Norte – me refiro tanto à Identidade Cristã, grupo neonazista americano, quanto ao fato de o país ser evangélico.”
A antropóloga observa que David Lane escreve muito no limbo da duplicidade entre ele e Cristo, entre ele e Hitler, tendo seus textos principais traduzidos para 35 línguas, a ponto de todos os movimentos de extrema direita utilizar o slogan de 14 palavras. “14 Words virou símbolo e 14/88, uma sigla: 88 de ‘Heil Hitler’ (agá, agá, a oitava letra do alfabeto). São símbolos, senhas, nomes usados à exaustão, o que chega a ser desesperador, pois a impressão é de estar lendo a mesma coisa um milhão de vezes. Essa repetição à exaustão é muito semelhante ao que foi a doutrinação nazista [por Joseph Goebbels] para mecanizar o pensamento. Ao se repetir algo indefinidamente, o objetivo não é apenas criar fanatismo ou alienação, é que as pessoas parem de pensar e refletir sobre o que estão repetindo.”
Vigor da direita
A autora da pesquisa afirma que os movimentos de extrema direita foram se tornando cada vez mais vigorosos a partir do discurso sobre a ameaça de genocídio branco (white genocide). “Trata-se da ameaça por parte de negros, imigrantes, povos nativos, mulheres, judeus, gays, deficientes físicos, que estão ocupando os lugares ‘naturalmente dos brancos’. O discurso é que o branco está sendo morto pelo casamento inter-racial, pela adoção de crianças negras por brancos, pelo desejo das mulheres brancas por negros e uma infinidade outras justificativas. Qualquer um que tente ocupar este lugar do branco tem que ser eliminado.”
Uma mudança recente no cenário, e que mais preocupa a pesquisadora, é a diminuição acentuada de sites de movimentos neonazistas na rede de computadores. “No meu mestrado, eram muitos os sites individuais, mas eles passaram a migrar para fóruns coletivos, que são espaços de diálogo, o que eu já via como um sinal de perigo. Depois dos diálogos vieram as alianças de movimentos. E agora temos os rallies [comícios], a exemplo do realizado no estado da Virgínia em agosto do ano passado [na cidade de Charlotessville, com centenas de manifestantes carregando tochas, fazendo saudações nazistas e gritando palavras de ordem contra negros, imigrantes, homossexuais e judeus] – ali ficou patente que os grupos de direita estão se unindo.”
De acordo com Adriana Dias, David Lane é lido no Brasil há pelo menos 20 anos, e não apenas ele, todos os líderes neonazistas são lidos. “Ocorre que, enquanto nos Estados Unidos há uma clara divisão entre os movimentos – Klan é Klan, The Order é The Order –, os movimentos daqui absorvem e misturam tudo o que é traduzido. A pessoa lê David Lane e A Ordem achando que é a mesma coisa, quando o primeiro é hitlerista clássico e o segundo um movimento neopagão. Os zines [impressos] brasileiros trazem textos de autores que se odeiam e jamais almoçariam juntos, quanto menos dividir uma publicação.”
Confusões à parte, a antropóloga identificou movimentos brasileiros bem organizados, como o Neuland (“nova” terra), liderado por Ricardo Barollo. “Conhecia o grupo, mas não sabia que Barollo era o líder, apenas que se tratava de uma pessoa de São Paulo, com perfil universitário, e que sua célula possuía em torno de 200 membros, por conta da circulação de material. Em 2009, em disputa pelo poder, ele matou o diretor de outra célula, Bernardo Dayrell (e também a namorada), criador da revista online O Martelo. Tentou culpar os judeus pelo duplo homicídio, mas acabou preso e o grupo, desbaratado. O Neuland queria eleger vereadores e prefeitos em duas cidades de Santa Catarina e do PR, e assim ir ganhando força para tomar os estados do Sul e São Paulo, em um movimento separatista.”
A construção do ódio
A pesquisadora recorre a Peter Gay, autor de O cultivo ao ódio, para explicar o pensamento e as práticas dos neonazistas, o que também ajuda a compreender o momento de intolerância em que o mundo está mergulhado. “O ódio é cultivado sobre um tripé. Em primeiro lugar está a crença na meritocracia: a ideia – resultante da má interpretação da teoria darwiniana – de que estamos em evolução e alguns mais aptos têm direitos conquistados ‘meritocraticamente’. Isso é uma farsa, pois nem todos saem do mesmo lugar. É uma falácia, por exemplo, a propaganda do governo de que, agora que existe a Base Comum Curricular, todas as crianças vão sair do mesmo lugar, quando temos a que tomou café da manhã e a outra, não; a que tem pai com salário de 40 mil e a outra com pai ganhando salário mínimo – elas saem de lugares muito diferentes.”
O segundo instrumento do ódio, prossegue Adriana Dias, é a construção de um “outro” conveniente, para justificar porque brancos nem sempre conseguem conquistar o melhor lugar “naturalizado”. “A explicação é que o ‘outro’ roubou o lugar dele: o outro é o gay, o negro, o imigrante, o judeu, o deficiente, que são construídos como inimigos do branco que deveria ter o lugar natural. O neonazista precisa justificar a falha do primeiro argumento construindo este segundo, sobre o outro conveniente, em que vale qualquer coisa: o judeu é culpado pela peste negra, o negro pela varíola, o deficiente físico pela degenerescência da raça branca, a mulher por ser vadia e estuprada.”
A antropóloga acrescenta que é no terceiro elemento, entretanto, que o ódio se sustenta: o culto à masculinidade, vendo-se a mulher apenas como a receptora da raça, que vai dar a criança para o homem construir um novo mundo. “David Lane achava natural que os machos cacem e dominem as fêmeas; em seu último livro, propõe que os machos sequestrem as fêmeas em casamento inter-racial e as estuprem para que tenham filhos brancos. Desse culto à masculinidade vêm a homofobia, o estupro corretivo de lésbicas e a teoria de estupro histórico como arma de guerra. Lane foi cremado e 14 mulheres dividiram as cinzas depositadas em 14 urnas em forma de pirâmide – um grupo nazista ameaçou uma das mulheres de estupro porque queria as cinzas para rituais.”
Para oferecer uma ideia da dimensão do movimento, Adriana Dias informa que o Criatividade conta 10 milhões de membros no hemisfério norte, tendo sido responsável pelo grande avanço do neonazismo americano, de 500 mil para 2 a 3 milhões de adeptos. “No Brasil, creio que os simpatizantes cheguem à casa de 300 mil. E tenho medo que o Criatividade chegue ao país, por ser um movimento de cunho religioso, que não prega a ‘minha raça’ e sim a ‘minha fé’, o que atrai muita gente. O fato é que nesse longo período de pesquisa vi uma explosão do movimento de extrema direita, bem como a situação se agravar e se radicalizar. Na banca de tese me perguntaram se estamos perto de algum Estado se tornar neonazista. Não tenho ideia, pois meus dados são apenas da direita. Não sei se esse tsunami pode ser interrompido por um tsunami de esquerda.”