Cientistas do IB-Unicamp agora estudam um método para combater com eficiência a praga que ataca a cacauicultura
No final da década de 1980, o Brasil era o segundo maior produtor mundial de cacau. O país colhia cerca de 400 mil toneladas do fruto ao ano. O excelente desempenho da cacauicultura brasileira, porém, foi duramente afetado nos anos seguintes por causa da ação de uma doença denominada vassoura-de-bruxa, causada pelo fungo de nome Moniliophtora perniciosa, que devastou inúmeras plantações. Atualmente, a safra nacional do produto gira em torno de 180 mil toneladas anuais, sendo que chegou a 120 mil toneladas no final dos anos 1990. Desde que a vassoura-de-bruxa foi identificada, pesquisadores do Laboratório de Genômica e Expressão (LGE) do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp vêm desenvolvendo diversos estudos para tentar descobrir como o fungo atua, com o objetivo de combatê-lo. Recentemente, os cientistas deram um importante passo nessa direção. Eles descobriram um mecanismo usado pelo micro-organismo para “driblar” o sistema imune de planta, e assim infectá-la. O trabalho rendeu artigo que acaba de ser publicado pela prestigiada revista Current Biology, um selo da editora Cell Press da Elsevier.
De acordo com o professor Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, coordenador do LGE, a descoberta é resultado de quase 20 anos de pesquisas e da dedicação de centenas de alunos ao longo desse período, desde a iniciação científica até o pós-doutorado. “Tivemos um grande sucesso nessa empreitada. Descrevemos a vassoura-de-bruxa em detalhes e identificamos as vias metabólicas envolvidas na estratégia de ação do fungo. Também desenvolvemos métodos de manejo das plantas, em parceria com os produtores. Apesar desses avanços, ainda não conseguimos chegar a um produto ou processo que possa eliminar o micro-organismo. A partir de agora, com a identificação do mecanismo de ação do patógeno, estou convencido de que poderemos obter novos progressos”, considera o docente.
O que os pesquisadores do LGE descobriram é que o Moniliophtora perniciosa é bastante astuto e insidioso. Ele se vale de uma estratégia incomum para enganar o sistema imune da planta, como explica o biólogo Paulo José Pereira Lima Teixeira, que pesquisou o assunto em sua tese de doutorado. Atualmente, ele é pesquisador do Howard Hughes Medical Institute (HHMI), da Universidade da Carolina do Norte (EUA), e no próximo ano vai assumir a posição de professor assistente na ESALQ-USP. Dito de maneira simplificada, o mecanismo de ação do fungo funciona da seguinte forma. Micro-organismo e a planta estabelecem o que os especialistas qualificam de “frente de batalha”.
O objetivo do patógeno, que atua como um parasita, é se desenvolver a partir da energia extraída do hospedeiro. A planta, por sua vez, responde ao ataque acionando o seu sistema imune para tentar eliminar esse corpo estranho. Estabelece-se, portanto, um embate. “Ocorre que, ao longo da sua evolução, que pode ter levado milhares de anos, o fungo desenvolveu um mecanismo muito sofisticado para enganar o sistema imune do cacaueiro. Nós descobrimos que ele produz várias proteínas durante a infecção, entre elas uma quitinase, que normalmente funciona para quebrar a quitina, uma espécie de polímero que protege a parede do fungo e sem o qual o micro-organismo não consegue sobreviver”, detalha Paulo Teixeira.
Passada dessa forma, a informação soa contraditória. A pergunta que surge imediatamente é: por que o micro-organismo produziria uma proteína que teria a função de quebrar uma substância que lhe é essencial? “Nós também nos fizemos esse questionamento e fomos investigar a possível resposta. Um dos meus orientandos, o Gabriel Fiorin, que hoje faz doutorado na Holanda, decifrou esse mecanismo. O que acontece é que, ao infectar a planta, o Moniliophtora perniciosa secreta uma grande quantidade de quitinase. À primeira vista, isso não faz qualquer sentido. Entretanto, ao olharmos essa proteína com mais cuidado, verificamos que as regiões responsáveis pela clivagem (separação) da quitina estão mutadas. Com isso, a quitinase interage com a quitina, sem que esta última seja clivada. O resultado dessas interações é que a quitinase deixa de destruir a quitina, e passa a capturá-la. Isso é importante porque os fragmentos de quitina livres são reconhecidos pela planta como moléculas estranhas, o que leva à ativação do seu sistema imune. Essa estratégia de captura utilizada pelo fungo impede que a planta reconheça a quitina e dispare todo o arsenal do sistema imune contra o parasita, que assim consegue sobreviver”, detalha Gonçalo Pereira.
A primeira consequência da ação desse mecanismo, que ainda não havia sido descrito pela literatura científica, é o surgimento da vassoura verde, etapa que antecede a vassoura seca ou vassoura-de-bruxa. A vassoura verde é caracterizada pelo intumescimento do ramo, que fica inchado, como se tivesse tomado anabolizante, para estabelecer uma analogia com o ser humano. “Nesse momento, a planta parece gastar uma grande quantidade de energia para tentar combater o patógeno. Depois de algum tempo, ela sucumbe e entra em estado de senescência (envelhecimento) prematura. Na sequência, o ramo necrosa e seca, assumindo a aparência de vassoura-de-bruxa”, acrescenta o docente
Em busca da solução
A partir dos dados obtidos com a pesquisa, a equipe do LGE já iniciou estudos com o propósito de desenvolver uma “arma” eficiente contra o fungo causador da doença. Para enfrentar um inimigo tão traiçoeiro, admitem os cientistas, será necessário somar técnica à criatividade. Uma rota possível, adianta Gonçalo Pereira, será retribuir o drible que vem sendo aplicado pelo fungo. “Em vez de nos dedicarmos à formulação de um fungicida, como seria usual, nós vamos partir para a produção de uma substância que possa fortalecer o sistema imunológico do cacaueiro, para este conseguir destruir o patógeno”, revela o docente.
Tanto Gonçalo Pereira quanto Paulo Teixeira observam que, embora trabalhe fortemente com pesquisa básica, o LGE tem como meta o desenvolvimento de pesquisas que possa favorecer a aplicação. “Mais que isso, nosso foco está nos problemas brasileiros que trazem impacto econômico e social. A vassoura-de-bruxa é um exemplo disso. Depois que a cacauicultura da Bahia foi praticamente dizimada pela doença, o Sul do Estado em particular passou por um processo profundo de empobrecimento. A violência e a prostituição infantil aumentaram e o número de favelas cresceu assustadoramente. Penso que a ciência pode e deve contribuir para o enfretamento de questões como essa”, avalia Gonçalo Pereira.
Outro dado importante relativo à pesquisa está destacado no artigo publicado pela revista Current Biology. Segundo Paulo Teixeira, vários grupos, tanto no Brasil quanto no exterior, têm tentado entender mais profundamente como funcionam os fatores de ataque dos fungos aos hospedeiros. “Nós levantamos ótimas evidencias de um desses mecanismos. Conseguimos mostrar pela primeira vez que uma proteína conservada durante a evolução, a quitinase, tem função importante na interação fungo-planta. Como a quitinase está presente em outros organismos, como vírus, bactérias e até no ser humano, é possível que ela também atue como supressora do sistema imunológico do hospedeiro de outros organismos, a exemplo do que ocorre com o cacaueiro. A hipótese está colocada para quem quiser investigar”, indica o pesquisador, que deve prosseguir com essas investigações na sua nova carreira de professor.