Testes demostram que produtos feitos com silicone liberaram concentrações de contaminantes acima de índices preconizados pela Anvisa
Sabe-se que plásticos não são inertes e podem interagir com produtos alimentícios, a exemplo dos materiais utilizados na fabricação de mamadeiras que, em decorrência da migração de componentes para o leite, podem expor as crianças a substâncias potencialmente nocivas. Apesar de mais de 50% da população utilizar mamadeiras na alimentação de crianças com até um ano de idade, faltam dados sobre a migração de determinadas substâncias para o alimento, a partir de propileno, Tritan e silicone, materiais comumente utilizados no Brasil para fabricação desses utensílios e de outros destinados em geral ao acondicionamento de alimentos. Some-se a isso o fato de essas mamadeiras utilizarem pigmentos para coloração do corpo e do bico e nas impressões decorativas, que devem ser levados em conta porque todos esses aditivos podem migrar para o alimento, constituindo fator de risco.
Torna-se imprescindível, portanto, avaliar a segurança desses materiais em relação aos fins a que se destinam, particularmente porque lactentes e crianças de primeira infância representam um grupo vulnerável à toxidade de certos compostos, uma vez que as suas vias metabólicas são ainda imaturas e o consumo alimentar por peso corpóreo é maior que o dos adultos. Evidências sugerem que a exposição precoce a vários destes compostos aumenta o risco do desenvolvimento de determinadas doenças crônicas e neurodegenerativas, alguns tipos de cânceres, além de disfunções nos sistemas endócrino e reprodutor.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estabelece limites máximos de migração especifica para aditivos como ftalatos, antioxidantes, nitrosaminas em materiais que entram em contato com alimentos. Até o momento, poucos estudos reportam à migração desses contaminantes a partir de produtos disponíveis no mercado brasileiro. Este cenário orientou o doutorado do engenheiro de alimentos Wellington da Silva Oliveira que teve como objetivo avaliar a segurança dos materiais utilizados para fabricação de mamadeiras, por meio de análises qualitativas e quantitativas de migrantes, simulando a utilização do utensílio pela população.
Em seis marcas de mamadeiras mais comercializadas no Brasil, ele avaliou a migração de ftalatos, antioxidantes, aminas aromáticas, nitrosaminas e metais, utilizando cromatografia gasosa e líquida, acopladas à espectrometria de massas, e a espectroscopia. Avaliou ainda o impacto sensorial da migração através da olfatometria e também a presença de outras substâncias adicionadas não intencionalmente, que resultam de processos de reação, de degradação ou da presença de impurezas nas matérias-primas utilizadas na produção do utensílio.
O trabalho, desenvolvido no Departamento de Ciência de Alimentos, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp, foi orientado pela professora Helena Teixeira Godoy, que atua na área de Ciência e Tecnologia de Alimentos com ênfase em análise de alimentos, em parceria com a pesquisadora Marisa Padula, do Centro de Tecnologia de Embalagens do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital). Parte da pesquisa também foi realizada na Universidade de Zaragoza, Espanha – sob supervisão da professora Cristina Nerin.
As mamadeiras de polipropileno – predominantes no mercado –, Tritan e silicone foram submetidas às analises instrumentais para avaliar a conformidade dos utensílios. Todos os três materiais estavam em conformidade em relação à migração de metais, nitrosaminas e aminas aromáticas. Por outro lado, embora a migração de ftalatos tenha sido detectada em todas as amostras, somente a mamadeira de silicone liberou concentrações acima do preconizado pela Anvisa. Em relação às substâncias não adicionadas intencionalmente, as amostras de silicone não mostraram conformidade, pois apresentaram migração de substâncias não listadas para uso em materiais de contato com alimentos. Por fim, uma complexa mistura de aromas foi ainda detectada nas mamadeiras de silicone, responsáveis pelo odor forte e desagradável do utensílio.
De modo geral, o autor conclui que “mesmo com limites de migração abaixo do preconizado pela Anvisa, ainda é necessário adequar os utensílios de polipropileno e Tritan de modo a restringir a presença de ftaltos em materiais destinados a crianças. No tocante ao silicone, deve ser reavaliada a sua utilização na fabricação de materiais destinados a crianças”. Ele acredita que os resultados obtidos possam dar suporte aos órgãos regulamentadores em relação à aprovação de uso de materiais e de novos aditivos e, também, para o gerenciamento do risco à saúde do consumidor.
Desenvolvimento do trabalho
As mamadeiras de polipropileno, Tritan e silicone foram avaliadas em relação à migração de substâncias para simulantes de alimentos, constituídos de misturas que os imitam, e não sobre eles mesmos, seguindo as recomendações da Anvisa. Os simulantes, que devem ser postos em contato com os materiais a serem estudados, são adequados a cada grupo de alimento e, para cada um deles, são especificados a temperatura e o tempo de contato.
Inicialmente o trabalho se ateve à identificação dos materiais das mamadeiras encontradas no mercado para que pudesse ser previsto os contaminantes que poderiam ser liberados. A partir daí foram selecionados doze modelos de mamadeiras mais vendidos no Brasil e os utensílios passaram por ensaios para avaliação de parâmetros como altura, peso capacidade volumétrica, espessura e diâmetro. Depois de validadas as metodologias para os grupos ftalatos e nitrosaminas, aminas aromáticas e antioxidantes, e metais como chumbo, zinco e cadmio, entre outros, foram então realizados os ensaios de migração específica utilizando para os ensaios, como simulantes, respectivamente, solução de etanol 50%, ácido acético 3% e saliva sintética, constituída por uma mistura de sais. Como as mamadeiras têm uso repetitivo, os ensaios foram feitos três vezes no mesmo corpo de prova, conforme recomenda a Anvisa.
Tanto o corpo como o bico da mamadeira foram submetidos aos ensaios de migração em condições mais drásticas em termos de tempo de exposição e temperatura daquelas efetivamente praticadas no uso diário. O pesquisador esclarece: “O ensaio com solução de etanol a 50% para determinação dos ftalatos, por exemplo, foi realizado durante duas horas a 70 graus, situação que nunca são cumpridas pelas mães. Com isso se consegue garantir que, se a mamadeira é inerte nessas condições, ela também o será no uso corriqueiro”.
Das 196 amostras totais analisadas, 127 foram fabricadas com propileno, 49 com Tritan e 20 com silicone. Em todas elas, com a utilização do álcool 50%, foram detectadas a migração do dibutil ftalato, mas nas amostras de silicone a migração se mostrou superior aos valores preconizados pela Anvisa. Especificamente nelas detectaram-se também altas concentrações de di-isobutil ftalato, um plastificante não regulamentado para uso em materiais de contato com alimentos. A avaliação de riscos para os ftalatos mostrou que há um potencial de efeito adverso associado ao uso de mamadeiras de silicone. A propósito o pesquisador afirma: “A simples incidência desses contaminantes em mamadeiras já é um fator extremamente preocupante. Tanto a Europa como os Estados Unidos baniram o uso de ftalatos em materiais destinados às crianças e, entre eles, encontram os detectados em nosso estudo. No Brasil essas proibições ainda não existem.”
Os ensaios de migração para ftalatos também foram realizados no leite e revelaram menores concentrações da substância que as encontradas quando do uso do álcool 50% mas, mesmo assim, superiores aos limites estabelecidos pelas normas internacionais adotadas pela Anvisa, embora as condições fossem menos drásticas que as verificadas quando do uso do simulante.
Para a determinação de aminas aromáticas e metais no corpo da mamadeira foi utilizada uma solução de ácido acético a 3%, e para avaliar as nitrosaminas e os metais nos bicos empregou-se um simulador de saliva, porque a capacidade extratora de cada simulante depende do composto que está sendo avaliado.
As migrações dos metais dos bicos das mamadeiras foram simuladas por meio de suas imersões em solução de saliva sintética por 24 horas a 40 graus, conforme o recomendado pela Anvisa, e as presenças de zinco, bário e chumbo situaram-se abaixo dos valores preconizados. Mesmo assim, o autor considera necessário o monitoramento de metais em bicos, em razão da neurotoxicidade associada ao chumbo, principalmente para bebês.
De outro lado, mesmo com a ampla utilização de tinta de impressão nas ilustrações externas ao copo e o pigmento utilizado para colorir o corpo e o bico das mamadeiras, não foram detectadas aminas aromáticas nos copos dos utensílios e nem nos bicos de borracha sintéticas, constituídas de silicone.
Nas mamadeiras de polipropileno, as aminas aromáticas e os antioxidantes, cujos ensaios foram feitos com acido acético a 3%, todos esses compostos migraram abaixo dos limites tolerados. Mas, nas mamadeiras de silicone, foram identificados 17 compostos não intencionalmente adicionados. Essas substâncias, não contempladas nas listas da Anvisa, podem constituir um risco toxicológico para os bebês.
Em relação aos compostos voláteis, dos 45 compostos identificados nas mamadeiras, 84% provinham do uso do silicone. Mereceram particular menção os aldeídos que compõem os compostos voláteis responsáveis pelo odor desagradável da mamadeira de silicone. Nestes casos, revela-se importante a análise olfatométrica, pois os compostos odoríferos podem afetar as propriedades dos alimentos e levar à rejeição do produto, mesmo em baixíssimas concentrações.