Dissertação aponta semelhanças nas descrições, principalmente a existência de recursos para exotizar a fauna e a flora do país
A epígrafe foi extraída da carta que o escrivão Pero Vaz de Caminha enviou a D. Manuel I, rei de Portugal, em 1º de Maio de 1500. O documento presta contas ao monarca sobre as características da terra recém-achada, então chamada de Pindorama pelos indígenas e batizada inicialmente como Ilha de Vera Cruz pelos portugueses. Foi o primeiro relato de viagem descrevendo a fauna e a flora nacionais. A ele se seguiram vários outros, produzidos principalmente por viajantes europeus. Dissertação de mestrado do historiador Eduardo Teixeira Akiyama, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, comparou as descrições feitas por quatro desses autores (dois portugueses e dois franceses) ao longo do século XVI. O pesquisador encontrou várias semelhanças entre elas, notadamente recursos narrativos que contribuíram para tornar exótica a natureza do Brasil.
Orientado pelo professor Paulo Celso Miceli, o trabalho concentrou-se prioritariamente nos relatos de viagens do próprio Caminha e também de Pero de Magalhães Gandavo, André Thévet e Jean de Léry. “Além disso, eu também analisei, de forma complementar, descrições feitas por outros viajantes contemporâneos, como Hans Staden, igualmente em território nacional, e Cristóvão Colombo, em sua primeira viagem à América. A opção por um campo amostral mais amplo foi de grande importância para que eu pudesse perceber e explicar algumas semelhanças entre os relatos”, explica Akiyama.
Um elemento comum às narrativas dos quatro viajantes analisados, aponta o autor da dissertação, vem justamente da herança que receberam dos autores da Antiguidade e Idade Média. Estes últimos costumavam destacar em suas descrições seres fantásticos e elementos extraordinários da natureza, muitas vezes dando-lhes um colorido extra. “É importante lembrar que, além de seguir esse estilo, os europeus que vieram ao Brasil tinham a dificuldade extra de descrever plantas e animais totalmente desconhecidos dos seus conterrâneos”, observa o historiador.
Alguns relatos, como o de Jean de Léry sobre a nossa trivial anta, são reveladores de como – e com quais recursos - elementos e atributos da natureza brasileira eram transmitidos para além-mar: “Direi desde logo (...) que não existe no Brasil nenhum quadrúpede em tudo e por tudo semelhante aos nossos [...] O primeiro e mais comum é o tapirussú de pelo avermelhado e assaz comprido, do tamanho mais ou menos de uma vaca, mas sem chifres, com pescoço mais curto, orelhas mais longas e pendentes, pernas mais finas e pé inteiriço com forma de casco de asno. Pode-se dizer que, participando de um e outro animal, é semivaca e semi-asno. Difere entretanto de ambos pela cauda, que é muito curta (há aqui na América inúmeras alimárias sem causa), pelos dentes que são cortantes e aguçados; não é entretanto animal perigoso, pois só se defendem fugindo”.
Além dessa influência estilística, as narrativas dos viajantes do século XVI apresentam outros traços importantes, conforme apurou Akiyama. O historiador assinala que as narrativas são obviamente moldadas pela visão de mundo dos autores, bem como pelos interesses tanto deles próprios quanto daqueles aos quais representavam ou serviam. “Descrever exuberâncias e exotizar a natureza brasileira era uma forma de animar os sonhos imperialistas dos monarcas demonstrando a extensão e a variedade de seus territórios ultramarinos, assim como dar indícios de riqueza das novas terras aos financiadores das viagens. Mais do que uma prestação de contas, era uma forma de cair no gosto dos grandes e ricos senhores e com isso obter favores e posições de destaque quando da volta aos países de origem, o que de fato aconteceu em alguns casos. Um exemplo foi André Thévet, frade franciscano que foi elevado à condição de cosmógrafo do rei da França, Henrique II, após sua passagem pelo Brasil”, informa o autor da dissertação.
Imprensa
O advento da imprensa, prossegue o historiador, cumpriu um importante papel na difusão desses relatos de viagens, dado que criou um importante mercado consumidor de leitores ávidos pelas histórias vindas do “paraíso tropical”. “Gandavo, por exemplo, fez do Brasil um “paraíso terrestre” no intuito de atrair colonos portugueses para cá, desejando tornar a terra produtiva e segura quanto às tentativas estrangeiras de invasão. Para isso, omitiu uma série de problemas da terra que constavam em suas versões manuscritas, como formigas que destruíam as plantações. Além disso, vale frisar que se o Brasil pode ser retratado como paraíso para atrair colonos, é porque na Europa havia um tanto de inferno: pobreza, crises de fome e pestes”, comenta o autor da dissertação.
Cientes desse fenômeno, os viajantes passaram a replicar o estilo naturalista hegemônico, que tinha entre as suas características mais marcantes o discurso da observação direta, ainda que esta não correspondesse necessariamente à realidade. “Para dar veracidade à narrativa, um recurso muito utilizado pelos autores era assegurar: ‘se eu não tivesse visto com os meus olhos, eu também não acreditaria no que estou lhes dizendo’”, pontua o pesquisador, que denomina esse recurso de “retórica da experiência”.
Outra estratégia utilizada pelos cronistas de viagem para tornar seus relatos mais críveis foi materializá-los por meio da oferta de souvenires a seus compatriotas. Essa prática, de acordo com Akiyama, estabeleceu na Europa um mercado de produtos exóticos, formado pela transação de animais e objetos aborígenes, entre outros. “O curioso é que esse movimento criou um círculo vicioso. Os viajantes relatavam as novidades, que se transformavam em mercadorias, que por sua vez passavam a condicionar o olhar dos futuros viajantes”.
Na interpretação do autor da dissertação, que contou bom bolsa concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), tanto os relatos de viagem quanto a circulação de objetos relacionados à natureza brasileira possivelmente constituíram a maior contribuição do país à historiografia do século XVI. “Obviamente, esse é um dos aspectos que marcam o período. Entendo que o tema ainda merece ser aprofundado por meio de outras pesquisas”, avalia o historiador.