Estudo integra linha de pesquisa cujo foco é o olhar sociodemográfico sobre a “macrometrópole paulista”
Em Santos, “o céu é o limite”, na expressão utilizada pelo demógrafo Luiz Antonio Chaves de Farias em referência à intensificação da especulação imobiliária no município, fenômeno amparado por legislações urbanísticas instituídas, quase que explicitamente, para atender aos interesses deste mercado. “O exemplo mais prático disso foi o não estabelecimento de um limite de gabarito para os prédios na área insular da cidade, onde as construções são cada vez mais altas, com menos residências e de metragem maior, voltadas para as elites locais ou do planalto. É uma especulação que se estende principalmente à orla de outros municípios centrais da Baixada Santista.”
Luiz Antonio Farias analisa este processo detalhadamente já no primeiro capítulo de sua tese de doutorado, “Mobilidade populacional e produção do espaço urbano na Baixada Santista: um olhar sociodemográfico sobre sua trajetória nos últimos 20 anos”, orientada pelo professor José Marcos Pinto da Cunha, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). “A tese foi desenvolvida no âmbito do projeto de pesquisa de meu orientador, que visa produzir um olhar sociodemográfico sobre as regiões metropolitanas que conformam o que temos denominado ‘macrometrópole paulista’ ou ‘cidade-região paulista’ – que envolve as regiões de São Paulo, Campinas, Baixada Santista, Vale do Paraíba, Litoral Norte e Sorocaba.”
O autor da pesquisa observa que nos anos 2000 vivenciou-se um ciclo de crescimento econômico, com uma política de valorização do salário mínimo, grandes investimentos em infraestrutura e aumento do crédito imobiliário, o que refletiu no elevado ritmo de produção do ambiente construído das cidades, incluindo as da Baixa Santista. “Mas um dado que chama a atenção é que, em determinados setores censitários de Santos, as taxas de crescimento de domicílios foram negativas. Essa situação é corriqueira em termos populacionais – podem morrer (ou emigrar) mais habitantes do que nascem – mas em termos de domicílios, não.”
Na opinião de Farias, a queda de domicílios em Santos ocorre porque muitos deles foram substituídos por construções voltadas ao público de maior poder aquisitivo, com poucas unidades domiciliares e muitas áreas comuns de lazer. “Outro efeito desse processo se dá sobre o preço do solo urbano, que foi medido através da planta de valores venais do município. Em alguns casos, com todas as ressalvas inerentes à atualização do tipo de registro administrativo, verificamos que o preço do metro quadrado da orla de Santos corresponde a cerca de 10 vezes ao praticado na zona noroeste da cidade.”
A esperada consequência, diz o demógrafo, é que as camadas populares se veem excluídas de residir nas melhores localizações. “Quando da minha pesquisa bibliográfica, pude ver que mesmo as áreas mais recuadas da praia em Santos, até então desprezadas pelo mercado imobiliário, também passaram a ser valorizadas, fazendo com que os grupos sociais de menor poder aquisitivo não tenham, de fato, a opção de residência na cidade. Para oferecer uma dimensão do problema, apenas no quinquênio 2005-2010, de acordo com o Censo de 2010, cerca de vinte mil pessoas tiveram que migrar para municípios periféricos da região.”
Luiz Antonio Farias ressalta que este êxodo das áreas centrais em direção a zonas mais periféricas é recorrente em outras regiões metropolitanas paulistas e do Brasil, mas que adquire dramaticidade maior na RMBS. “Além do alto preço do solo e da legislação urbanística de cunho elitista, temos ainda a falta de espaço para novas construções em toda a área da Baixada Santista, especialmente no núcleo metropolitano (Santos, São Vicente, Cubatão e Guarujá). De acordo com os dados da Agência Metropolitana de Santos, em 2014, apenas 5% do território da RMBS eram passíveis de expansão do ambiente construído.”
Outro fator que limita as opções de moradia das famílias mais jovens e de menor aquisitivo, acrescenta o pesquisador, é que boa parcela do estoque de domicílios da região é de uso ocasional (segunda residência, veraneio, aluguel por temporada, etc.) e estão nas melhores localizações, que concentram as infraestruturas urbanas, oportunidades de emprego e ofertas de serviços e de lazer. “Em Bertioga, Mongaguá e Praia Grande, os domicílios de uso ocasional correspondem a mais da metade do total. E, em municípios centrais como Santos, os domicílios de uso ocasional beiram 100% nas quadras imediatamente próximas à praia.”
Mito do envelhecimento
Farias estudou a dinâmica sociodemográfica da RMBS através de indicadores como taxa de crescimento populacional, índice de envelhecimento e taxas de migração, associados à inserção regional da mesma e produção do seu espaço urbano-metropolitano. Ele afirma que, em linhas gerais, seus resultados ratificam tendências sociodemográficas apontadas anteriormente, como por Alberto Jacob, em matéria publicada no Jornal da Unicamp em 2005. “Há uma continuidade do decréscimo da taxa de crescimento populacional (de 1,2% ao ano entre 2000 e 2010) e de aumento dos índices de envelhecimento (de 114,4% em Santos, em 2010, para uma média no Brasil de 44,8%) e do processo de periferização metropolitano.”
Conforme o demógrafo, o efeito mais perverso deste processo é a intensificação da segregação socioespacial, o que também já foi retratado em outras pesquisas e agora no Atlas da “Região Metropolitana da Baixada Santista: diversidades socioespaciais na virada para o século XXI”, organizado e publicado por ele e o orientador José Marcos Pinto da Cunha, concomitantemente à feitura da tese. “Um efeito ainda pouco falado é sobre a associação do processo de especulação imobiliária com o envelhecimento populacional da região. Há de fato um processo de envelhecimento, mas que o senso comum atribui ao mito da migração de ‘velhinhos’, especialmente do planalto – e preferencialmente para Santos – em busca de melhor qualidade de vida.”
Luiz Antonio Farias observa que este fluxo persiste e se apresenta cada vez mais envelhecido, mas que seu peso demográfico não justifica o mito, como fica claro nos dados apresentados na tese referentes ao quinquênio 2005-2010. “Os saldos negativos se concentram nos grupos etários mais jovens (por exemplo, de 15 a 29 anos, a uma taxa de -0,8% ao ano), enquanto que os grupos de idosos (60 anos ou mais) também apresentam taxa negativa, de -0,2% ao ano – era de se esperar que, pelo menos para os idosos locais, as taxas fossem positivas. Podemos afirmar, até enfaticamente, que o envelhecimento está ligado essencialmente à saída de famílias mais jovens, que ficam sem opções de moradia devido à especulação imobiliária e aos preços exorbitantes.”
Mobilidade pendular
Como novidade, a pesquisa de doutorado aponta a tendência de redução deste movimento migratório das áreas centrais para as mais periféricas da RMSB, e também dos fluxos de longa distância, como os provenientes do Nordeste. “No entanto, a despeito do baixo volume do que chamamos de mobilidade residencial, a mobilidade pendular para trabalho ou estudo só vem aumentando. Entre 2000 e 2010, observou-se na Baixada Santista um aumento de quase 58 mil indivíduos em idade ativa que saíam de seu município de residência para tais atividades. Isso atesta que, se o processo de periferização continua ativo na RMSB, não foi acompanhado da desconcentração regional das atividades econômicas: 33,7% dos migrantes intrametropolitanos continuavam trabalhando no município de residência anterior.”
Em relação aos fluxos pendulares, outra novidade trazida por Farias está na inserção regional da Baixada Santista na “macrometrópole paulista”. “Ainda que a pendularidade se vincule principalmente à segregação socioespacial na região, os dados mostram uma elitização do processo de ocupação do litoral norte (orla de Guarujá e Bertioga) e mesmo do litoral sul (como Praia Grande). Boa parte dessa ocupação está ligada à migração intrametropolitana, para as áreas citadas, das classes médias e elites locais de Santos. Mas também temos aquela população mais velha que migra da Região Metropolitana de São Paulo, em fluxos que chegam a ser maiores do que os provenientes da própria região.”
Existem ainda, segundo o pesquisador, aqueles que vêm morar na Baixada Santista, mas continuam trabalhando no planalto. “Em Praia Grande, por exemplo, 18,5% das pessoas que migraram de alguma cidade da região da macrometrópole continuavam trabalhando lá, no momento da pesquisa. Ou seja, podemos dizer que alguns municípios da Baixada, além de serem periferias metropolitanas, cumprem simultaneamente o papel de ‘periferias elitizadas’ da Região Metropolitana de São Paulo. Elitizadas, pois participar desse processo não é para qualquer um, em virtude dos custos pelos deslocamentos frequentes (combustível, pedágio, etc.). Porém, a ocorrência pode ser explicada por vantagens como a facilidade e rapidez de acesso pelo Sistema Anchieta-Imigrantes, pela popularização do home office e pelas amenidades naturais da região.”
‘Fenômeno do pré-sal’
O autor da tese admite que a questão do pré-sal, embora tenha permeado seu trabalho, acabou representando uma lacuna, por ter se baseado obrigatoriamente nos dados do Censo Demográfico de 2010. “Sabemos que, naquela época, o fenômeno do pré-sal era ainda muito incipiente na Baixada Santista, já que sua descoberta na Bacia de Santos data de 2006-2007. Logo, ele não pôde ser captado quanto à magnitude de seus impactos sobre a dinâmica sociodemográfica regional. Um agravante foi a não realização pelo IBGE da tradicional Contagem Populacional no período intercensitário, em 2016, que ofereceria um panorama mais claro dos efeitos do pré-sal da região.”
De qualquer forma, ao analisar os dados de 2010 na Baixada Santista, Farias observou uma flutuação positiva de imigrantes ocupados em atividades ligadas à indústria extrativista, passando de 1.160 indivíduos em 1995-2000 para 2.240 em 2005-2010. “O interessante é que isso aconteceu em período de queda do volume de migração. Observou-se um frenesi com a perspectiva de investimentos na região por parte da Petrobrás e o consequente incremento da arrecadação dos municípios com os royalties. Em Santos, no bairro Valongo, houve aumento do valor do metro quadrado diante da perspectiva de construção de três torres de escritórios da Petrobrás no local.”
Segundo o demógrafo, apenas uma torre foi construída e o hotel erguido ao redor do empreendimento apresenta baixa taxa de ocupação. “Além disso, as operações logísticas na Bacia de Santos são realizadas em sua maioria pela cidade do Rio de Janeiro, o que mitigou os impactos esperados na Baixada Santista. De qualquer forma, o aumento da arrecadação de royalties já é realidade em alguns municípios, faltando apenas os dados demográficos de 2020 para podermos enxergar os impactos sobre a produção do espaço e a dinâmica populacional na região.”
Luiz Antonio Farias conclui que, mais do que o fenômeno pré-sal, a dinâmica econômica que se sobressaiu para determinar os resultados demográficos na RMBS foi a do mercado imobiliário, no período 2000-2010. “Se antes os excedentes de capital eram reinvestidos na própria produção industrial, agora são reinvestidos no mercado imobiliário, onde as rendas só valorizam, ao contrário dos lucros industriais. Isso foi o que norteou essa construção frenética de empreendimentos verificada no período estudado e que parece ter-se mantido inclusive no ciclo de crise econômica pós-2014, conforme pudemos constatar em visitas à região.”