O fazer musical e processos que o envolvem são tema de projeto temático
No projeto temático Fapesp “O Musicar Local – novas trilhas para a etnomusicologia”, o “musicar” não é verbo, e sim um verbo substantivado que não existe no dicionário português e que soa tão estranho quanto seu original em inglês, “musicking”, igualmente inventado. “É uma palavra cunhada pelo musicólogo neozelandês Christopher Small, que queria um termo mais abrangente do que o fazer musical que nos leva a pensar em pessoas atuando e criando música”, conta Suzel Ana Reily, professora do Instituto de Artes (IA) e coordenadora do projeto, cuja equipe é formada por 46 docentes, pós-doutorandos, pós-graduandos e alunos de iniciação científica, sediados entre a Unicamp e a USP.
Para Suzel Reily, a invenção da palavra se justifica por se tratar de um conceito novo, seguindo a noção de que existem muitas formas de engajamento além de fazer música. “Se pensarmos nos engajamentos contemporâneos da população em geral, trata-se muito mais de ouvir música, fazer download, criar playlist para o celular. A ideia é exatamente abrir muito mais o leque do que se estuda, até para compreender melhor o processo do fazer musical. Em todo musicar ao vivo, por exemplo, existe muita gente envolvida que não está necessariamente fazendo música: o produtor, o iluminador, o pessoal do estúdio, o fotógrafo que documenta o show.”
A professora do IA esclarece que o “musicar local” do projeto não se refere a uma localidade específica, mas de estudar como a localidade impacta o processo do musicar e vice-versa. “Isso fica evidente quando pensamos em formas globalizadas, como o funk, que chegou dos Estados Unidos e foi adaptado ao Rio de Janeiro com outras sonoridades, práticas de palco e instrumentos; e, além do funk carioca, temos o funk de Santos, o funk das periferias de São Paulo. Da mesma forma, toda igreja tem coral e há corais no mundo inteiro. Um estudioso de musicologia não vai se ater a um coral de bairro, o de estudioso da música popular não vai considerá-lo como de música popular, nem o folclorista como de raiz, nem o etnomusicólogo como música de grupo étnico.”
Com o conceito do musicar, observa Suzel Reily, abre-se uma grande brecha para estudar práticas musicais do dia a dia, amadorísticas e que não estavam sendo contempladas por estudiosos. “Dentro da ideia de musicar local, podemos trazer para o escopo da musicologia todas essas formas de fazer música. O projeto temático original contava com pouco mais de 20 pesquisadores e agora são 46, mostrando que atendemos a uma demanda importante por esse tema, principalmente na Unicamp e na USP, mas também de estrangeiros que aderiram à proposta e estão participando da equipe.”
A coordenadora do temático Fapesp explica que cada pesquisador possui seu projeto particular, todos contemplando esta relação entre música e localidade. “Algumas pessoas estão trabalhando com tradições globalizadas como o funk, outras com grupos amadores e outras com formas tradicionais como as afro-brasileiras, bandas, corais. As localidades variam bastante, desde aldeias indígenas, cenas diversas em São Paulo, uma orquestra no Nordeste até um coral de senhores na França, que cantavam juntos na igreja quando meninos e se recompuseram gerando uma arena de sociabilidade no seu vilarejo.”
Suzel Reily aponta também estudos mostrando como a música cria ambientes sociais nas localidades, promovendo a confraternização entre as pessoas. “Não há casamento ou festa sem música. Temos músicos nos bares, nas igrejas, em procissões, servindo às suas comunidades. O projeto traz pesquisas focando músicos profissionais, que criam uma identidade do lugar, como de ponto do choro ou do jazz, ou que por falta de um público específico, precisam se adaptar com um repertório de gêneros diferentes. Uma pesquisadora grega, cuja tese de doutorado foi sobre músicos imigrantes nigerianos em Atenas, agora observa essa mesma comunidade em Manchester e São Paulo. E tenho minha própria pesquisa, voltada a um movimento de música antiga que acontece no estado de São Paulo.”
Coletânea
Resultados deste projeto temático conduzido pela professora ao IA já estão publicados na coletânea The Routledge Companion to the Study of Local Musicking, que ela organizou juntamente com a etnomusicóloga americana Katherine Brucher – parceria que já havia resultado em livro anterior, sobre bandas: Brass Bands of the World: Militarism, Colonial Legacies and Local Music Making. “Routledge Companion é uma série que esta editora produz, buscando temáticas novas e reunindo em cada volume até 40 artigos. Agora a coletânea está atrelada ao projeto Fapesp, mas já vinha trabalhando nela antes de vir para a Unicamp, onde estou apenas desde 2015. Passei 26 anos na Irlanda do Norte; fui inicialmente com uma bolsa sanduíche para a Queen’s University de Belfast e acabei contratada pela instituição.”
Suzel Reily explica que a coletânea traz uma conceituação sobre o musicar local e artigos tratando de temas variados, como a formação de comunidades locais na internet, onde as pessoas de diversas partes do mundo se encontram para ouvir repertórios de nicho; o ritual de ir a um concerto de música popular entre jovens da Groelândia, que envolve mais que o conserto em si (há uma preparação anterior e ao final do concerto os jovens se encontram numa casa para uma festa onde eles mesmos cantam um repertório tradicional); os serviços prestados à comunidade por uma rádio de Chicago; e mesmo as tensões refletidas pela música em certas localidades. “Por exemplo, um artigo é sobre a Irlanda do Norte, onde a música marca a distinção entre protestantes e católicos.”