Em texto que funde o real e o ficcional, Ronaldo Entler relembra a relação de Oswald de Andrade com a fotografia
Oswald de Andrade saía-se muito bem diante da câmera, tanto a dos estúdios quanto a dos amigos. Não fazia alarde, mas gostava. Tinha aprendido com os futuristas a admirar o ritmo que as máquinas imprimiam ao mundo. E, além disso, era vaidoso.
Oswald nunca deu à fotografia um lugar entre as artes modernas. Ao contrário, definiu como antifotográfica a estética que reivindicava para a pintura e a escultura. E via algo de caricatural nesse personagem que difundia o naturalismo entre as novas elites: apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo, disse ele.
A certa altura, a câmera já fazia parte da paisagem moderna, e Oswald acabou por se acostumar com a presença desse fixador de corações que oferecia poesia às dúzias em logradouros públicos. Um dia, numa viagem a Guaratinguetá, até confessou sentir uma vontade vadia, como um fotógrafo. De fato, sua poética era tão mundana quanto esse hábito, cada vez mais desrritualizado pelas câmeras de pequeno tamanho, de perambular pelo mundo buscando imagens banais.
Pelo que muitos imaginam, ficou mesmo só na vontade. Nunca se dedicou à prática fotográfica como Mário de Andrade, que já nos anos 1920 circulava com sua primeira Codaque. Não há em seus arquivos imagens que tenham merecido grande atenção.
Mas, sim, esporadicamente, Oswald fotografou. Já em seu primeiro livro de poemas, o mesmo em que fala do fixador de corações e da viagem à Guaratinguetá, reconhecemos uma pequena série de fotos que ele clicou numa tarde de domingo, num passeio pela Mooca.
Oswald gostava daquele bairro paulistano de imigrantes. Ainda criança, visitava com seu pai as propriedades da família na região. Ainda não tinha entendido bem a extensão do Brasil, mas pode ter sido ali que percebeu pela primeira vez um idioma nacional bem diferente do que tinha aprendido em casa. Nos anos 1920, quando concebia sua ideia de arte moderna antropofágica, aqueles italianos que haviam se tornado brasileiros já tinham lhe mostrado como partir de um idioma europeu para inventar uma língua local.
A Mooca era a fronteira entre duas paisagens muito distintas da cidade: de um lado, a metrópole, de outro, bairros-dormitório que se consolidavam em meio às chácaras que sobreviviam na periferia de São Paulo. Pelas ruas, uma grande mescla de ícones da produtividade, do ócio e do lazer. Muitas indústrias, mas também o comércio e restaurantes para todas as classes. Uma dezena de teatros e cinemas, um clube de futebol popular, um hipódromo bem frequentado.
A movimentação dos operários chegando e saindo do trabalho era barulhenta e desordenada como as festas de rua. Um tanto de distração e um tanto de rebeldia faziam o maquinário das fábricas operar com jogo. As esquinas da Mooca se tornaram ponto de encontro de negociantes, mas também de nossos primeiros socialistas: foi ali que se deflagrou a onda de greves que, em 1917, acabou contagiando outros bairros industriais da cidade. Não foi de imediato que Oswald entendeu os movimentos desse bairro, mas temos a impressão de reencontrar muitos deles em suas peças.
Uma década depois, quando soube que Marinetti viria a São Paulo, foi aquela paisagem que veio à cabeça de Oswald. Já não era tão urgente importar as vanguardas europeias, tínhamos inventado uma versão muito autêntica do futurismo: um progresso desordenado e charmoso, maturado pelos anarquistas que fugiram da Itália, mais do que pelos fascistas que lá se acomodaram.
Pois foi num passeio pela Mooca que, em algum momento dos anos 1920, Oswald fez a seu modo algumas de suas primeiras fotografias. Divertindo-se com a agitação do Hipódromo, surpreendeu-se com a massa de ruídos que aquele lugar produzia. Deu uma volta lenta em torno de si mesmo. Marcou com o olhar o ponto de onde cada som brotava: lá fora, nas arquibancadas, a empolgação da plateia com o espetáculo; na arena, o trote dos cavalos e os cavaleiros elegantes atiçando o público. Mais próximo dele, homens bonachões gargalhando, moças polidas conversando sobre assuntos diversos, uma melodia de Eduardo Souto ao fundo, uma colher tilintando na louça, muitas colheres tilintando nas louças e gelos tilintando nos copos. Imaginando-se com uma câmera, enquadrou na memória cada uma dessas cenas.
Para cada uma delas, imitou o gesto de apertar o disparador de uma câmera e, com a boca, reproduziu o som que ouvia na Codaque de Mário. Dias depois, temendo o esmaecimento dessas imagens, anotou num caderno, na mesma ordem em que foram captadas, uma legenda para cada uma delas. Ficou assim: Saltos records; cavalos da Penha; correm jóqueis de Higienópolis; os magnatas, as meninas; E a orquestra toca; Chá; na sala de cocktails. É provável que tenha feito outras fotos como essas, será preciso investigar melhor.
Quando organizava seu primeiro livro, o mesmo já citado, confundiu deliberadamente essas anotações com seus poemas e acabou por publicá-las. Não foi fácil entender essas imagens que, décadas depois, os críticos chamariam de poemas-minuto. Como literatura, eles eram demasiadamente ligeiros. Como fotografia, um pouco borrados pela longa exposição.
Nota: Os trechos assinalados em itálico são fragmentos de poemas de Oswald. A relação do poeta com a Mooca é uma hipótese construída a partir de informações trazidas nos livros Teatro da Ruptura: Oswald de Andrade, de Sábato Magaldi (Global, 2004) e Oswald de Andrade: Biografia, de Maria Augusta Fonseca (Globo, 2007). O imaginário fotográfico de Oswald por trás de seu poema Hípica (Pau Brasil, 1925) é uma ficção construída a partir da tese de doutorado A apreensão do Instante – relações entre a literatura e a fotografia, de Fábio d’Abadia de Souza (UFG, 2009).
Ronaldo Entler é pesquisador e crítico de fotografia. É jornalista, mestre em Multimeios (IA-Unicamp), doutor em Artes (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da FAAP.