Documento lançado hoje no Rio reforça protagonismo de ativos ambientais para impulsionar a economia
A nove dias da 14ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que acontecerá no Egito de 17 a 29/11, e a menos de dois meses da posse do novo presidente e dos governadores eleitos, o lançamento, hoje, no Rio de Janeiro, do Sumário para Tomadores de Decisão do 1° Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, marca um momento tão crítico quanto oportuno para a agenda do desenvolvimento sustentável nas conjunturas internacional e nacional. O Sumário foi elaborado pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES).
No âmbito global, os olhares sempre se voltam para o Brasil que, por ser o detentor da maior biodiversidade do planeta, exerce um papel central nas discussões-macro e cujo declínio da riqueza biológica gera impactos para além de suas fronteiras. O cenário político do país, com a alternância de mandatos que irá ocorrer nos poderes Executivo e Legislativo, também sinaliza para um leque de possibilidades e rumos, a depender das deliberações dos novos planos de governo e das propostas a serem pautadas e aprovadas no Congresso Nacional.
Os serviços ecossistêmicos são os benefícios proporcionados pela natureza que sustentam a vida no planeta, como água limpa, ar puro, alimentos, regulação do clima e proteção contra desastres naturais, energia, polinização, lazer e até bens culturais e valores emocionais. Por isso, o impacto da perda de biodiversidade para a qualidade de vida é grande, assim como o desafio premente de mostrar para a sociedade a importância desses serviços prestados pelos sistemas naturais para o ser humano. “A elaboração de um documento dessa magnitude para o Brasil tem uma repercussão mundial pela relevância que o país tem nesse tema, e é um passo marcante para o reconhecimento da Plataforma e para influenciar os tomadores de decisão, especialmente no momento em que estamos vivendo, por se tratar de um relatório isento”, avalia o consultor e ambientalista Fábio Feldmann.
O Sumário é um documento que visa apoiar a tomada de decisão nas esferas pública e privada e traz os principais resultados consolidados no Primeiro Diagnóstico, elaborado por um grupo de mais de 120 pesquisadores. Participaram da coordenação do Diagnóstico Carlos Joly, do Instituto de Biologia (IB), e Cristiana Seixas, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam), ambos da Unicamp.
Da Universidade, além de pesquisadores do IB e Nepam, colaboraram autores do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri), Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) e Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor).
O biólogo e professor Carlos Joly, coordenador da Plataforma, revela que o documento reforça os resultados que vêm sendo apontados desde 2005 pela Avaliação Ecossistêmica do Milênio, a primeira análise da saúde dos ecossistemas do planeta e sua relação com o bem-estar humano. “Ali ficou claro que eram as atividades humanas, principalmente a mudança no uso da terra e as mudanças climáticas, os principais vetores de perda de biodiversidade, seja por perda de habitat, por poluição, por demanda de exploração. E a realização do Primeiro Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos confirmou que esse cenário também é uma realidade no Brasil, e que vem se acentuando de uma forma bastante rápida, talvez porque sejamos justamente o país com a maior biodiversidade do planeta”, explica.
Megadiversidade ameaçada
A dimensão continental proporciona ao Brasil uma grande heterogeneidade espacial e de recursos naturais. Estima-se que o país abrigue 42 mil espécies vegetais e cerca de 9 mil vertebrados, incluindo altas taxas de endemismo, ou seja, espécies que só existem em seu território. Em relação a invertebrados são conhecidas cerca de 130 mil espécies, mas as estimativas do número total ainda são muito imprecisas.
Além disso, Brasil possui uma diversidade cultural que é tão rica quanto a biológica. O país abriga mais de 500 sítios naturais sagrados associados a múltiplas manifestações culturais. Segundo o IBGE, vivem no país cerca de 900 mil indígenas, que se dividem entre 305 etnias e falam ao menos 274 línguas. As comunidades tradicionais (tais como caiçaras, quilombolas, seringueiros, ribeirinhos, quebradeiras de coco-babaçu, pantaneiros, dentre outros) constituem cerca de 5 milhões de brasileiros e ocupam 1/4 do território.
Os povos indígenas e as comunidades tradicionais dependem diretamente da natureza para manter seus modos de vida e sua cultura e, por isso, têm um conhecimento riquíssimo sobre as dinâmicas dos ecossistemas e sobre as interações homem-meio ambiente. Tais povos são detentores de conhecimento e práticas de agrobiodiversidade, pesca, manejo do fogo e medicina natural, dentre outras de valor comercial, cultural e espiritual. Ainda que milenares, muitas vezes estas são desconhecidas da sociedade em geral. “Incorporar conhecimentos indígenas e tradicionais sobre a biodiversidade brasileira ao dia-a-dia da sociedade representa uma grande oportunidade”, afirma a bióloga Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e também coordenadora da Plataforma.
De acordo com Bustamante, nas duas últimas décadas os biomas brasileiros têm sofrido mudanças críticas, resultantes tanto de impactos de atividades humanas mal planejadas, quanto de desastres naturais, que ocasionam crescentes perdas de biodiversidade e de serviços ecossistêmicos que, por sua vez, repercutem diretamente na economia e no bem-estar humano.
A lista nacional de espécies ameaçadas conta hoje com 1.173 espécies da fauna e 2.118 da flora. Bustamante aponta que, até 2030 e ao longo de boa parte do século 21, mudanças no uso da terra que geram conversão e fragmentação de habitat naturais para introdução de novos ambientes, sobretudo de áreas agrícolas e urbanas, estão entre os principais fatores de perda de biodiversidade e de degradação ambiental no Brasil.
Ela lembra, no entanto, que outros vetores diretos de pressão se somam a esse contexto, como mudança climática, poluição e invasão biológica. “Por isso, a conservação e o manejo dos recursos naturais demandam uma articulação entre diferentes setores da economia e da sociedade para garantir as bases de um desenvolvimento sustentável para o Brasil”, alerta Bustamante.
Governança bipolar
Segundo os autores do Sumário, a governança oficial da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos no Brasil é “bipolar”. Se, por um lado, o país tem instituições fortes e capazes, por outro, sobram problemas de infraestrutura, processos lentos, conflitos jurídicos, sociais e ecológicos e há ineficiência nas ações.
Joly observa que o Brasil tem uma posição dúbia em relação aos acordos internacionais. “É protagonista no exterior, como foi o caso em Nagoya, quando as Metas de Aichi foram estabelecidas, e na discussão climática mundial do Acordo de Paris. Deu um grande apoio na discussão dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que nasceram na RIO+20, em 2012. No entanto, tirando esse protagonismo internacional, internamente o país faz exatamente o contrário do que pregam esses acordos. O Brasil vem, sistematicamente, num processo de desmonte de sua política ambiental”, pontua o cientista.
O documento também salienta que, no país, os recursos naturais recebem tratamento no âmbito de políticas setoriais. “A biodiversidade e os serviços ecossistêmicos são percebidos como um obstáculo ou no máximo um apêndice ao processo de desenvolvimento quando, na verdade, constituem a base de ganho de competividade em um ambiente global”, destaca um dos pontos do Sumário. O relatório alerta que a forma de governança sobre o território afeta diretamente a biodiversidade e os ecossistemas com consequências para o bem-estar dos brasileiros. “As decisões e a forma como são tomadas determinam o estado atual e futuro do ambiente. Por isso, um dos principais desafios do Brasil para os próximos anos é o alinhamento de políticas de desenvolvimento, sobretudo a política agrícola, com o uso e a conservação da biodiversidade. Adicionalmente, a restauração de ecossistemas nativos emerge como uma estratégia promissora para mitigar, e em alguns casos, reverter efeitos da degradação ambiental, mas ainda carece de mecanismos e políticas apropriadas para sua efetivação”, afirma Bustamante.
Oportunidade com data de validade
Ainda segundo o documento, a janela de tempo e de oportunidades para consolidar a base de um futuro sustentável no Brasil é limitada. Requer que a biodiversidade seja colocada no centro das discussões prontamente, e de maneira transversal, e que seus fatores de ameaça sejam efetivamente combatidos e atenuados. Há urgência nas escolhas por esse futuro sustentável e é essencial também assegurar o cumprimento de leis existentes através de mecanismos regulatórios e de incentivo, em consonância com os compromissos internacionais de sustentabilidade assumidos pelo país. “As pressões globais e nacionais atuais, nos campos social, econômico e ambiental, são inúmeras e crescentes e o modelo de desenvolvimento vigente está prescrevendo. É preciso um novo modelo que incorpore os desafios de um planeta em rápida transformação socioambiental e climática”, diz o texto.
Tomada de decisão fundamentada
O Primeiro Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos compilou a síntese, materializada no Sumário, do conhecimento disponível acerca da temática, ao longo dos últimos 10 anos. Após uma análise de todos os resultados de estudos realizados sobre o assunto, os cientistas passam a ter uma base sólida para subsidiar o aperfeiçoamento de políticas públicas e privadas e indicar caminhos e opções possíveis, para que a trajetória de perda contínua de biodiversidade possa ser revertida.
“Ao longo das últimas décadas, estudos científicos geraram bases de dados que nos mostram com clareza tendências e cenários. Com as ferramentas disponíveis hoje, como a modelagem, por exemplo, nós conseguimos também prever qual seria a trajetória de uma determinada política baseada em evidência científica, se ela for aplicada corretamente. Ou seja, nós podemos dar ao tomador de decisão a opção de avaliar qual será o impacto futuro da decisão que ele está tomando hoje”, explica Joly.
“Se indicarmos uma política de proteção aos polinizadores que mostre com clareza que esse resultado vai não só proteger as espécies de polinizadores, mas irá também aumentar a nossa produtividade agrícola, o tomador de decisão tem dados reais na mão para discutir com diferentes setores e chegar a decisões que sejam aplicáveis e de fato implementadas”, complementa.
O engenheiro florestal Fabio Scarano, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que também é um dos coordenadores da Plataforma, revela que a expectativa é a de que o governo federal, os governos estaduais e o Congresso eleitos se informem sobre a oportunidade que significa o país possuir a maior diversidade de espécies do planeta. “Caso os novos governantes não entendam ou tenham dúvidas, estamos à disposição para esclarecer e dialogar. Como a elaboração do Diagnóstico contou com mais de uma centena de cientistas e com avaliações, críticas e diálogo com setores diversos da sociedade, acreditamos que ele é representativo e que, portanto, terá caráter informativo aos nossos novos dirigentes e, com isso, esperamos orientar suas ações em relação à biodiversidade, um dos maiores patrimônios do país”, afirma Scarano.
O professor da UNB e ex-secretário nacional de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente, Carlos Klink, salienta a importância do envolvimento dos tomadores de decisão no processo. “Síntese do conhecimento é um passo importante, mas não pode bastar-se em si mesma. A narrativa torna-se mais relevante para os setores quando é escrita com eles, não para eles; deve ser um instrumento de engajamento com os setores. Através da construção de pontes entre a ciência e os tomadores de decisão, surgirão proposição de soluções realistas e factíveis para as questões ambientais tão prementes no mundo de hoje”, comenta.
A Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES, sigla em inglês)é uma iniciativa criada em 2015 que congrega um grupo independente formado por cerca de 120 autores, dentre professores universitários, pesquisadores, gestores ambientais e/ou tomadores de decisão. Seu objetivo é produzir sínteses do melhor conhecimento disponível pela ciência acadêmica e pelos saberes tradicionais sobre as temáticas da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos e suas relações com o bem-estar humano, com foco nos biomas continentais do Brasil (Amazônia, Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Campos Sulinos) e no costeiro-marinho. Para tanto, promove reuniões setoriais de trabalho com grupos de interesses variados – como representantes do governo federal, organizações não governamentais, empresas, etnias indígenas e jornalistas – com o intuito de compartilhar os principais resultados, debater e ouvir críticas e sugestões. A Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES, sigla em inglês)é uma iniciativa criada em 2015 que congrega um grupo independente formado por cerca de 120 autores, dentre professores universitários, pesquisadores, gestores ambientais e/ou tomadores de decisão. Seu objetivo é produzir sínteses do melhor conhecimento disponível pela ciência acadêmica e pelos saberes tradicionais sobre as temáticas da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos e suas relações com o bem-estar humano, com foco nos biomas continentais do Brasil (Amazônia, Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Campos Sulinos) e no costeiro-marinho. Para tanto, promove reuniões setoriais de trabalho com grupos de interesses variados – como representantes do governo federal, organizações não governamentais, empresas, etnias indígenas e jornalistas – com o intuito de compartilhar os principais resultados, debater e ouvir críticas e sugestões. |