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Ileide tem mãos que falam

Trajetória de agricultora que teve projeto incubado na Unicamp dialoga com avanços e limitações da emancipação feminina

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LPAs mãos firmes de Maria Ileide Teixeira não negam: o trabalho no campo é árduo. Agricultora que lida com o processo produtivo do plantio, da colheita à comercialização, a trabalhadora é enfática ao revelar o diferencial em sua produção: “a presença de gente”. O fator humano não é relevante à toa: integra os ideais de Ileide, adepta da agroecologia, técnica que a agricultora vem adotando para a subsistência de sua família e para geração de renda nos últimos anos.

A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica no Brasil, efetivada em 2012, por meio do Decreto nº 7.794, propõe que, mais que considerar a agroecologia uma técnica, é preciso pensá-la como um tipo de produção que leva em conta as condições de trabalho e os impactos gerados no ambiente. Com a redemocratização nos anos 1980, demandas e iniciativas da sociedade civil organizada ganharam espaço para a busca pela formulação e gestão de uma política voltada à promoção do desenvolvimento rural sustentável, culminando na retomada de práticas agroecológicas e sua consequente sistematização nas últimas décadas.

Para a engenheira agrônoma Emma Siliprandi, representante da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a valorização da agroecologia tem a ver com um contexto de luta pelo direito à terra e ao trabalho, e também com debates acerca de saúde, impactos ambientais e segurança alimentar suscitados principalmente na segunda metade do século XX em todo o mundo.

A prática agroecológica foi aos poucos sendo retomada, especialmente por ser um tipo de produção praticada há séculos, que promove o resgate de técnicas pré-industriais menos agressivas aos ecossistemas, por meio principalmente da agricultura familiar.

Hoje, alinhando-se ao moderno conhecimento científico de análise das águas e do solo, assim como dos hábitos e necessidades da fauna local, a agroecologia surge como uma alternativa para o uso intensivo de certos recursos naturais, agrotóxicos e transgênicos, e também para a concentração de vida e trabalho em centros urbanos.

Foto: MB
A agricultora Maria Ileide Teixeira, líder da Associação de Mulheres Agroecológicas: “Saímos do campo sempre querendo voltar” | Foto: Marcos Botelho Júnior

No Brasil, a pauta agroecológica ganha cena especialmente junto às demandas de trabalhadoras rurais, como diagnostica Emma, em seu livro Mulheres e agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas, publicado em 2015. Para a engenheira agrônoma, essas mulheres “se investem da condição de defensoras  de  um  modelo produtivo centrado na produção de alimentos e sustentável ambientalmente, em função de que essas sempre foram tarefas suas na divisão do trabalho. Mas avançam para o questionamento  sobre  as  multinacionais  do  setor,  posicionando-se  quanto  aos  problemas gerados  pela  monopolização  das  sementes,  o  uso  da  terra  para  outros  produtos  que  não  os alimentos,  os  agrotóxicos,  a  alimentação  industrializada”.  

Já era possível notar articulações de grupos de mulheres colocando em pauta a questão ambiental e a soberania alimentar antes mesmo dessas movimentações recentes, como no caso das quebradeiras de coco, que se uniram no Norte e no Nordeste do país por políticas de preservação dos babaçuais e pelos direitos coletivos de uso das palmeiras.

Mas a institucionalização dessas lutas se deu principalmente com a criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), junto ao fortalecimento dos sindicatos e de entidades populares locais, como as Comunidades Eclesiais de Base nos anos 1980, que levantaram pautas acerca da importância do trabalho no campo e do direito de mulheres enquanto trabalhadoras, contribuindo com o fortalecimento de movimentos sociais encabeçados por mulheres em todo o país.

Isso levou, por exemplo, à inclusão de salário maternidade para a trabalhadora rural, entre outras garantias, na Constituição de 1988. Toda essa transformação culminou na Marcha das Margaridas, que desde 2000 se apresenta como um espaço, a cada quatro anos, para diálogos e proposições acerca de demandas principalmente da vida de mulheres no campo, como um resultado e também um próprio catalisador de debates sobre sustentabilidade e também agroecologia.


Volta ao campo

A trajetória da agricultora Maria Ileide, de 62 anos, que hoje lidera a Associação de Mulheres Agroecológicas (AMA) do assentamento de Vergel, em Mogi Mirim, é bastante representativa dessa transição política e da própria movimentação feminina em busca de espaço e legitimação.

Por ter visto seus pais serem expulsos de pequenas propriedades e tentarem ganhar a vida no espaço urbano, Ileide presenciou o grande êxodo rural brasileiro da segunda metade do século XX, impulsionado, entre outros fatores, pela industrialização e a chamada Revolução Verde, que levou diversas famílias a condições precárias na cidade e fortaleceu o agronegócio no espaço rural. “A gente passou por tanta dor e miséria. Saímos do campo sempre querendo voltar. Mas eu, por exemplo, desde cedo tive que trabalhar em casa de família. Fazia de tudo. Lavava, passava, era babá”, relembra.

Mãe de cinco filhos biológicos e 14 adotivos, Ileide casou-se com 14 anos, mas quando o marido ficou descontente com o fato de ela trabalhar fora e de acolher crianças, não hesitou: “É claro que eu escolhi meus filhos. Desde então sempre olho para os jovens com esse cuidado e amor. Foi isso que me levou a me associar primeiramente ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em Campinas, lutando todos os dias para alimentar as crianças e construir uma creche, até ir com muitas outras famílias, também em condições de miséria, ocupar um terreno em Mogi Mirim”, conta.

Ileide, seu segundo marido e seus filhos integraram o grupo de 250 famílias que inicialmente ocuparam um dos hortos desativados da antiga empresa Ferrovias Paulistas S/A (Fepasa), em busca da conquista de habitação e de um espaço para a realização de atividades produtivas no campo. A agricultora lembra que demorou dois anos para que parte daquele grupo fosse cadastrado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que ocorreu em 1997. O Assentamento 12 de Outubro, como foi nomeado, em referência à data da ocupação, conta atualmente com 90 lotes.

“Quando chegamos não havia infraestrutura, tivemos que conseguir tudo. Mas todo mundo trabalhava, fazia bicos. Não estávamos lá porque éramos desocupados. Pelo contrário, é porque trabalhávamos tanto que necessitávamos de um espaço coletivo para que nossas crianças crescessem sem se perder, fossem criadas em grupo. Além disso, há o fato de que a vida na cidade sempre foi extremamente cara para quem não tem estudo”, relata Ileide.

Após a chegada ao assentamento, a necessidade de sobrevivência em um espaço inóspito levou um grupo de mulheres a se relacionar e se articular politicamente. “Tínhamos que alimentar nossas famílias e logo surgiu a necessidade de gerar renda, porque não vivemos só de alimento”, conta a agricultora. Primeiramente, o foco foi dado na criação de uma cozinha coletiva que vendesse marmitas para trabalhadores ainda ligados à Fepasa, que atuavam na região. Com o fechamento das atividades da empresa, Ileide sugeriu às mulheres que fizessem pequenas hortas em suas propriedades, um primeiro passo para a transformação da lógica e perspectiva de trabalho para elas no local.

Com o predomínio do cultivo da mandioca, surgiu a possibilidade de construção de uma “farinheira”, “que é como a gente chamava o local onde fazíamos a farinha para vender. Mas não durou muito tempo porque não sabíamos das regras da Vigilância Sanitária”, conta.

A falta de recursos fez com que o grupo se desmotivasse, até que a possibilidade de recorrer à prefeitura para o recebimento de sementes e um investimento massivo nas hortas, a fim de vender a produção em feiras na cidade, trouxe ao assentamento uma engenheira agrônoma que viu nos terrenos a viabilidade da agroecologia. “Com essa visita e o aprendizado sobre o valor da produção limpa, sem agrotóxicos e viva, sustentável, consolidamos a Associação, e nela já acrescentamos um braço, “Marias da Terra”, formado por parte das mulheres, aquelas dispostas a produzir exclusivamente produtos naturais”.

A Associação de Mulheres Agroecológicas (AMA), gerida apenas por mulheres, atualmente é uma espécie de abertura para diversos outros projetos do assentamento, relativos à educação das crianças, produção de artesanato e cooperativa familiar, além do cultivo e venda de alimentos tradicionais. No quesito agroecológico, o eixo principal são as próprias “Marias da Terra”, que participam de feiras, fazem cestas de verduras e legumes, produzem pães, bolachas, compotas, geleias, biscoitos e também dão oficinas.

O grupo participou da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), órgão da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac) da Unicamp, articulação que inclusive levou a Associação a ser beneficiada com verba da iniciativa privada e a ganhar o Prêmio Santander Universidade Solidária 2012.

 



‘É cansativo, doloroso, mas estamos e vamos continuar aqui”

“É por entendermos como a vida rural é difícil que nos preocupamos com a sustentabilidade daquilo que fazemos. Tem que durar, alimentar, gerar trabalho”. Na fala de Ileide, a família se apresenta como um núcleo fundamental deste tipo de atividade no campo, especialmente pela característica coletiva que a transição para uma produção sustentável exige. Isso tem relação direta com a criação dos filhos e a educação ambiental, mas também assenta uma série de dificuldades que a condição feminina perpetuada dentro de certas concepções patriarcais denota.

A FAO aponta que 70% das mulheres economicamente ativas de países menos desenvolvidos trabalham na agricultura. Em uma “radiografia da agricultura familiar”, elaborada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2009, a partir do Censo Agropecuário de 2006 e de outros levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), comparada ao chamado agronegócio, a agricultura familiar é extremamente dominante em número de geração de empregos. Dos 5 milhões de estabelecimentos que existiam no Brasil em 2014, 4,3 milhões eram de agricultura familiar (84%) e 807 mil (16%) de agricultura não familiar ou patronal. As propriedades menores forneciam emprego para 12,3 milhões de pessoas (74%) e as grandes empresas eram ocupadas por 4,2 milhões (26%).

A pesquisadora e professora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp Márcia Tait aponta que esses números revelam a importância do campo para a segurança alimentar e a empregabilidade. “Nos últimos 30 anos, as ações coletivas no meio rural são parte desta realidade, promovendo mudanças em suas formas de resistir, bem como nos conteúdos, reivindicações e proposições. Além das lutas históricas por direitos básicos – condições de trabalho dignas, aposentadoria e propriedade da terra –, passaram a lutar pelo apoio aos modelos alternativos de desenvolvimento rural, se opondo à agricultura industrial, aos cultivos transgênicos e uso de agrotóxicos”, afirma.

Foto: Marcos Botelho Júnior
A pesquisadora Márcia Tait: novos papeis enfrentam resistência e das próprias mulheres

Autora do livro Elas dizem não! Mulheres camponesas e a resistência aos cultivos transgênicos, lançado em 2015, Márcia questiona o quanto o papel de mulheres nesse tipo de agricultura é realmente valorizado e considerado em termos de equidade de gênero, uma vez que movimentos de luta pela defesa da saúde e da soberania alimentar em oposição ao uso de transgênicos e agrotóxicos são bandeiras levantadas e assumidas por movimentações exclusivamente femininas, muitas vezes.

Para ela, é preciso atenção ao tratar da realidade de trabalhadoras rurais, à “divisão sexual do trabalho e papéis tradicionalmente presentes na cultura camponesa, o reconhecimento em papéis como ‘donas de casa’, como ‘mulheres fortes e guerreiras que aguentam o trabalho pesado’ imposto pela ‘lida no campo’.”

Segundo Tait, esse dilema, vivenciado por mulheres como Ileide, parece ter relação com o fato de o empoderamento no campo – como a luta pela legitimidade e importância do trabalho feminino e a divisão de papéis domésticos – enfrentar resistência dos homens e das próprias mulheres, que acreditam em uma certa “essência” que as destina aos cuidados privados, prioritariamente. Ainda que não neguem a possibilidade do trabalho rural externo, junto aos homens, muitas acreditam que as funções em casa e a responsabilidade pelos filhos são exclusividade de quem assume o papel considerado feminino.

A própria característica de encarar com certa sensibilidade a produção rural parece ter a ver com essa suposta essência, que muitas mulheres assumem por contingências específicas. Com isso concorda Emma Saliprandi, ao afirmar que “os homens, como provedores econômicos, são mais pressionados a priorizar a renda monetária, que lhes proporciona reconhecimento social imediato; enquanto as mulheres são mais propensas a aceitar viver com menos recursos financeiros, desde que a sobrevivência familiar esteja assegurada ao longo do tempo, ainda que seja à custa da exploração do seu trabalho. Não são dilemas fáceis de serem resolvidos, em um contexto de tendência ao empobrecimento e à marginalização da agricultura familiar e de desestruturação das suas condições de sobrevivência”.

As mulheres rurais, portanto, são um paradoxo da própria luta feminista, que em muitas instâncias discute as não essencializações, mas precisa pensar políticas que abarquem mulheres que se veem – e às vezes querem estar – em posições historicamente previstas, ligadas ao lar.

Enquanto isso, mulheres como Ileide continuam as únicas responsáveis pela alimentação e o cuidado dentro de suas casas, com cargas dobradas, ainda que seja significativo que sua atuação no cultivo e comercialização de produtos dê certa autonomia e representatividade a pessoas como ela que por muito tempo tiveram seus trabalhos destituídos de valor e de direitos.

Não é uma tarefa fácil, como afirma a própria agricultora, ao relembrar o quanto “ainda é preciso convencer algumas famílias cotidianamente da importância de virmos à Feira, de investirmos na sustentabilidade, de acreditarmos na agroecologia. Precisamos convencer duplamente, porque somos mulheres, e não era para estarmos aqui do lado de fora. Mas estamos. É cansativo, doloroso, mas estamos e vamos continuar aqui”.

 

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Em área externa, imagem em perfil e plano médio, duas mulheres e um homem, ao centro, entre elas, todos em pé sorrindo e posicionados um ao lado do outro. A mulher à esquerda segura duas frutas com a mão esquerda, projetando-as para frente, e a da direita segura um maço de almeirão dentro de um saco plástico. Eles estão sob um tenda de lona com armação de alumínio, com um banner afixado ao fundo, atrás deles. À esquerda, há um balcão com várias cenouras e hortaliças ensacadas. Imagem 1 de 1.

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