Biblioteca com seis mil obras do crítico, ensaísta e fundador do IEL passa a ser oficialmente da Unicamp
De Guimarães Rosa, a dedicatória em Primeiras Estórias: “A Antonio Candido – o maior! Maior, mesmo, que as palavras possíveis da gente”. De Graciliano Ramos, o comentário na obra Caetés: “se não existisse aquele seu rodapé, talvez não se reeditasse isto”. De Clarice Lispector, uma “sincera homenagem” destacada na primeira página de seu romance O Lustre. De Manuel Bandeira, “eterna gratidão”, no exemplar de Estrela da Vida Inteira. Foram os livros que choraram a morte do professor, ensaísta e crítico literário Antonio Candido (1918- 2017), como ele próprio imaginou em manuscrito até então inédito lançado recentemente pela revista Piauí: “...hão de chorar lágrimas invisíveis de papel e de tinta (...) será o pranto mudo dos livros pelo amigo pulverizado que os amou desde menino”.
Ao longo da vida, Antonio Candido colecionou cerca de 30 mil títulos, mas manteve menos exemplares, em torno de 6 mil, entre os quais as raridades autografadas por alguns dos maiores escritores brasileiros. São os livros que o professor guardou ao longo da vida e que compõem a coleção doada pela família à Unicamp. O termo de doação foi assinado durante uma reunião no Gabinete do Reitor, na última segunda-feira (26), com a presença da historiadora Marina de Mello e Souza, filha do professor. “Ele tinha uma coisa de espalhar os livros, de semeá-los para instituições. Estes [doados à Unicamp] ficaram com ele, são a essência de sua formação e do que ele considerava central, desde coisas que lia quando criança ou adolescente, o que leu a vida inteira e as manias, feito Proust [Marcel]. Estes livros são o retrato da trajetória dele, a seleção que ele fez”, afirmou.
A coleção será catalogada e ficará disponível na Biblioteca de Obras Raras (Bora). “Sabemos que os livros serão tratados com muita competência e muito respeito. Aqui ‘ele’ vai estar perto do pai, da mãe e do amigo fraterno que foi Sérgio Buarque [de Holanda], com quem teve uma interlocução muito intensa”, observou a filha do crítico. Marina quis dizer que a biblioteca estará no mesmo local da coleção “Aristides Candido de Mello e Souza”, composta por livros que eram dos pais do ensaísta, também doados para a Universidade por Antonio Candido, em 1989. A área de Coleções Especiais do Sistema de Bibliotecas da Unicamp também abriga a coleção de Sérgio Buarque de Holanda desde 1983.
A biblioteca de Antonio Candido foi embalada por uma empresa especializada em acervos raros e obras de arte. Foi trazida para a Unicamp em caixas que foram dispostas na Diretoria de Coleções Especiais e Obras Raras. Segundo Maria Helena Segnorelli, diretora da área, a circulação de pessoas no local foi inclusive limitada, visando a segurança dos livros. “A catalogação desse acervo é nossa prioridade. Acreditamos que ele irá revigorar as pesquisas em humanidades. Nosso esforço será disponibilizá-lo ao público o quanto antes. ”
A proposta de aquisição da biblioteca de Antonio Candido foi analisada por outras instituições, como a USP. Houve ainda uma tentativa de compra por uma família no Ceará, como afirmou a filha do professor. Marina ainda informou que a família recebeu um montante em dinheiro de um grupo de empresários financiadores da cultura, como ressarcimento pela herança deixada pelo pai e doada para a Universidade. Os empresários preferiram o anonimato e, de acordo com a historiadora, deram continuidade à negociação com a família quando foi, de fato, acertada a doação para a Unicamp.
“Estamos muito felizes com o desenlace. Realmente, era o que desejávamos. Nós achamos que a Biblioteca da Unicamp, dentro do sistema estadual, é a melhor que temos hoje em dia, em relação à infraestrutura e a todo o trabalho dos bibliotecários”, salientou. O intelectual tinha uma estreita relação com a Unicamp e com Campinas. Seu pai quando criança estudou na cidade. Antonio Candido foi fundador e diretor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, a pedido de Zeferino Vaz. O IEL lhe presta homenagem com o nome da biblioteca do instituto.
Marina destacou a importância da visita técnica feita pelos bibliotecários da Unicamp no antigo apartamento de Antonio Candido, quando a biblioteca ainda estava montada, como o ensaísta deixou. Ela lembrou o papel da sobrinha Laura Escorel, que fez um mapeamento da biblioteca. “Os livros estão nas caixas, mas há um mapeamento bastante preciso de como eles estavam agrupados, quem estava perto de quem”.
Maria Helena Segnorelli revela que ficou impressionada com o que encontrou no apartamento. “Vimos obras raríssimas, como os 16 volumes da Revista Clima [1941-1944], sobre crítica literária, editada entre 1941 e 1944 por estudantes da USP, entre eles Antonio Candido, e também uma edição de 2006, esgotada e limitada, comemorativa dos 70 anos de Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda”.
Durante a assinatura do termo de doação o reitor da Unicamp, Marcelo Knobel, agradeceu a família de Antonio Candido e afirmou que a coleção é uma das mais importantes do acervo da Universidade. “A doação e disponibilização desse patrimônio ao público serão fundamentais para as gerações futuras, ressaltando também o papel da universidade pública para a manutenção da história e da memória de todos os grandes escritores e artistas brasileiros”.
Antonio Candido teria feito 100 anos em 2018. “Nós começamos a perceber uma outra dimensão de um pai, que já era enorme. Ele foi um pai extraordinário, que tinha um enorme tempo para as filhas. A cada seminário, a cada comunicação que a gente assiste, conhecemos um lado novo dele, que circula pela literatura, pelas ciências sociais, pela política”, comentou a filha do crítico.
Marina disse ainda que Antonio Candido teve uma vida múltipla em termos de interesse e de atuação. “Ele sempre foi muito admirado pela coerência, pela integridade, pelas posições muito firmes e por um humanismo, um sentimento de preocupação e respeito ao próximo que marcou a vida dele. Isto fica muito evidente quando as pessoas falam sobre ele”.