Cineasta aborda, em tese e em filme premiado, a necessidade de ver e ser visto na era da web 2.0
Voyeurismo, exibicionismo e vigilância são três conceitos seculares que ganharam centralidade na vida contemporânea. O interesse pela intimidade alheia, a necessidade de auto-exposição e o controle social, já abordados por ciências tão distintas como a psicanálise, a filosofia e a sociologia, foram radicalmente atualizados no início do século XXI. Se até então podiam ser observados separadamente, ainda que inter-relacionados, os avanços tecnológicos das últimas décadas exigiram uma análise sistêmica e complexa.
Aldo Pedrosa, em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, propõe o conceito de tecnoscopia como tentativa de facilitar o entendimento público da questão. “A tecnoscopia faz parte da nossa vida. E, principalmente, da vida dos nativos digitais, que não conseguem imaginar o mundo sem a internet. O conceito tenta de certa forma democratizar esse entendimento e, principalmente, alertar para a necessidade de enfrentamento desse estado de coisas, já instaurado”, explica Pedrosa.
A novidade trazida pelo autor na abordagem dos conceitos é a simultaneidade dos papéis. “A tecnologia faz com que sejamos voyeristas, exibicionistas e vigilantes ao mesmo tempo”, afirma. Se para a psicanálise o exibicionismo é tido como o extremo oposto do voyeurismo, pressupondo um indivíduo que revela sua intimidade e um que se esconde para ver a intimidade do outro, no âmbito das redes sociais, esses papéis acabam sendo complementares. “Na Internet, essa dicotomia foi quebrada. Os antigos voyeuristas, aquelas pessoas que queriam apenas ver, agora também têm necessidade de se mostrar. Voyeurismo e exibicionismo não são opostos, nem contraditórios, são, de certa forma, complementares. Na contemporaneidade, o sujeito que quer ver, também quer ser visto.”
Para que as reflexões desenvolvidas durante a pesquisa pudessem extrapolar os muros da academia, Aldo Pedrosa apostou no cinema. Com uma vasta produção em vídeo e arte computacional, Pedrosa conta que o cinema era um sonho que pôde ser realizado graças à aprovação no Fundo Municipal de Cultura de Uberaba e ao apoio do seu orientador, José Eduardo Ribeiro de Paiva, que topou a proposta do filme como culminância do doutorado.
“Na concepção de Marshall McLuhan, os artistas talvez sejam os únicos que conseguem propor formas de enfrentamento desta realidade”, aponta Pedrosa, que escreveu o roteiro, produziu e dirigiu o longa-metragem intitulado #ninfabebê. “A arte tem esse condão. Muito do que estamos vivendo hoje parecia, há pouco tempo, ficção científica, que alertava para um futuro no qual a barreira entre privacidade e publicidade não era mais definida”, lembra. “Todo diálogo do filme foi escrito para que o espectador reflita sobre esse estado de coisas vivenciado por nós e, principalmente, sobre a superexposição dos adolescentes na rede”, pontua.
“Nossa vida no ciberespaço cria não apenas um duplo da nossa vida real, mas também faz parte da nossa própria vida. Lidar com esses dois universos, o real e o digital, é extremamente complicado. Não temos maturidade para isso, muito menos os adolescentes, que carecem de maturidade social e psicológica para lidar com o mundo”, pondera.
Velocidade e mudanças
O autor chama atenção para a rapidez das mudanças tecnológicas nas últimas duas décadas e suas implicações no comportamento social. “As tecnologias evoluíram tão rápido e de forma tão dinâmica, que a primeira década dos anos 2000 parece ter ficado em um passado distante. A principal revolução nesse sentido foi a web 2.0. A internet passou a ser mais interativa e o usuário deixou de ser apenas receptor, para ser o próprio produtor do conteúdo”, observa.
Segundo ele, a centralidade do usuário na estrutura da comunicação em rede possibilitou o surgimento das redes sociais, nas quais o usuário é o protagonista. “Ele passou a ser um elemento importante na geração da informação. As redes sociais viriam a colocá-lo como grande protagonista da tecnologia e da mídia”, ressalta.
No cerne desta engrenagem, Pedrosa localiza a tecnoscopia: necessidade de ver e ser visto gerada pela mediação tecnológica. “O Facebook é uma mídia que promove o voyeurismo, o exibicionismo e a vigilância em larga escala. É isso que ele propõe. Não é apenas facilitar a comunicação, mas promover a troca de individualidades e intimidades. Ele solicita que você mostre sua intimidade e veja a intimidade do outro”, expõe o pesquisador.
Além das relações interpessoais, empresas, corporações e governos também entram no jogo, apropriando-se da exibição alheia com fins comerciais, estratégicos e políticos. “O conceito de vigilância tem um foco mais prático, formal, sistematizado, empresarial. Eu vejo a intimidade do outro com o fim de manter a segurança, ou com o fim econômico financeiro”, observa. Simultaneamente, as empresas são impelidas a revelarem-se ou, ao menos, aparentar transparência. “Talvez, a tecnoscopia seja a grande mercadoria do capitalismo contemporâneo”, aponta.
Para o pesquisador, não é possível entender o tripé exibicionismo-voyeurismo-vigilância fora da moldura capitalista. “É o capitalismo que promove isso tudo. Ele sabe se apropriar das questões sociais e culturais para girar sua própria máquina. A indústria cultural consumista dominante se vale fortemente da tecnoscopia”, alerta.
#nifabebê
A relação dos adolescentes com a tecnoscopia é o cerne do longa-metragem, provocador desde o título:#ninfabebê. Além da referência às ninfas da mitologia grega, belas jovens objetos da luxúria dos sátiros, “ninfa bebê” indica, na biologia, um estágio do desenvolvimento dos insetos no qual já têm corpo de adulto, mas não têm maturidade para sobreviver no ambiente. Da mesma forma, Cibelle, a adolescente protagonista do filme, exibe seu corpo com sensualidade nas redes sociais, sem ter a maturidade suficiente para compreender essa inserção e lidar com suas consequências. “Ela tem um corpo de mulher, tem toda sensualidade de uma mulher, mas não tem a maturidade necessária para lidar com as consequências de sua superexposição na internet. Isso acaba deflagrando situações terríveis, tanto para ela como para as pessoas que a cercam, sua família e seus amigos”, explica o diretor.
A dinâmica de direção do filme é o mocumentary, uma simulação de captação amadora ou um falso documentário. Além disso, mostra a interação dos usuários nas redes sociais na própria tela, como se estivéssemos diante da tela de um telefone celular. “O celular é um personagem muito importante do filme”, sublinha. A trilha sonora original e a abordagem de terror e suspense também buscam um diálogo direto com os adolescentes. “Apesar disso tudo, ele tem uma linguagem um pouco menos comercial justamente por seu enfoque crítico”, esclareceu.
Selecionado para diversos festivais por todo mundo e com 42 louros entre premiações, indicações e seleções oficiais, #ninfabebê busca agora caminhos para difusão na rede comercial de cinema.
Veja o trailer de #ninfabebê