Fernanda Grigolin escreve sobre projeto gráfico-visual-fotográfico desenvolvido por mexicana e holandês
O que distingue a fotografia das demais imagens técnicas, segundo o teórico da imagem Vilém Flusser, é sua facilidade para circular. A fotografia pode ser distribuída arcaicamente, não necessita muito para existir e pertencer a um lugar, seja ele a parede ou a publicação. No seu primórdio, ela era folha, passada de mão em mão, ou posta em álbuns; hoje ela é compartilhada rapidamente em plataformas virtuais ou em publicações que podem ser de baixíssimo custo. A circulação é o que faz a fotografia e também uma publicação se tornarem públicas e transitarem para além do espaço da arte. E essas constituem a essência do projeto “Nada Que Declarar” [1], uma publicação de artista que vem em um envelope tamanho carta com onze cartazes.
A frase, estampada na capa do envelope, é a mesma que temos que dizer a um agente policial nas fronteiras do mundo quando não temos bens ou itens de valor a declarar (em português nada a declarar). O projeto é uma colaboração da artista Ingrid Hernández (Tijuana, México) com Pieter Wisse (Rotterdam, Holanda). Os artistas criaram uma página no Facebook e pediram para as pessoas compartilharem imagens que haviam realizado enquanto esperavam cruzar a fronteira entre Tijuana e San Diego – a fronteira mais transitada do mundo, cotidianamente são mais de 100 mil pessoas que por ali passam. As imagens foram alteradas, retirando-se delas o entorno; e, quando se entrega a paisagem, ela não é o primeiro plano e sim a mensagem, o conjunto gráfico-visual-fotográfico. Cada trabalho apresentado em folhas apresenta logo de cara as linhas, o trabalho gráfico e textual em preto e tons variáveis de vermelho. Os cartazes exclamam!
Os artistas usaram palavras de anúncios publicitários dando-lhes um sentido questionador e político, talvez o que mais engancha a nós brasileiros ao ler/olha seja o cartaz com a seguinte frase: grand trump border que traduzindo literalmente pode-se entender como: fronteira do grande trunfo (e trump também pode se referir ao presidente dos Estados Unidos Donald Trump e a estética do cartaz também faz alusão a um jogo de videogame chamado grand theft auto, no qual os jogadores podem roubar, matar e muitas coisas ruins), porém o projeto também traz frases ditas por aqueles que transitam a fronteira (cómo está la línea / como está a linha, ou como está a fronteira) ou pelos agentes policiais (a donde va / aonde vai), por exemplo. A proposta também desloca a notícia levada pelo jornaleiro que caminha no tráfego com a publicação rápida e ligeira para um lugar poético, uma quase expectativa de porvir (el futuro no tiene bordo/ o futuro não tem placa – e também se relaciona à palavra border, em inglês, que significa fronteira, borda).
Ingrid Hernández e Pieter Wisse contam que o processo criativo começou analisando a fronteira e as imagens comuns a elas, perguntaram a si mesmos como é a fronteira, como funciona e o que ela apresenta. Para eles, “a loucura, a comercialização, a publicidade foram incorporados nos cartazes juntamente com a crítica e também um teor cômico”.
A base do projeto é fotográfica, mas se utilizam elementos gráficos, visuais e a rapidez que as imagens possuem para se expandirem e se movimentarem, tanto virtual quanto fisicamente. A fotografia, desde o offset, é uma metatecnologia de impressão e é um elemento formador dos processos de impressão contemporâneos. Ela, unida à palavra, no caso a frases curtas, e elementos gráficos bem como a cor são a base da cultura visual das cidades e uma estratégia fortíssima utilizada pela comunicação e pela arte. Isso tudo junto com o envelope, meio facilmente transportável, permitiu ser a publicação a sua própria portabilidade. "Nada que declarar" não necessitou de um elemento externo, (um embrulho, pasta ou caixa, por exemplo) para ser distribuída e devolvida à fronteira, a publicação é o próprio meio, que transita e caminha com aqueles que a recebeu.
Assim, "Nada que declarar" [2] (produzida com imagens feitas por pessoas que transitam a fronteira, unida a frases cotidianas e manipuladas pelos próprios artistas) é uma devolução simbólica às pessoas que por lá transitam como uma ação distribuidora. Retornam às pessoas seus próprios códigos e relações complexas que realizam cotidianamente na fronteira mais conhecida do mundo. Seria esta publicação um ato que potencializa a folha, o impresso, e torna-se um meio que é público, de encontro, um ato de fronteira e com a fronteira.
Fernanda Grigolin é artista e editora. Faz, edita e circula publicações desde 2002. É doutoranda em Artes Visuais na Unicamp, bolsista CAPES.
[1] - Para saber mais sobre o projeto. Para conhecer sobre a artista Ingrid Hernandez e suas ações como artista, gestora e pesquisadora
[2] - A impressão foi feita em risografia, um tipo de impressão que é moda entre os artistas contemporâneos atualmente, pois possibilita realizar um trabalho barato com qualidade gráfica e em uma tiragem que permite a circulação.